26 Janeiro 2015
O resultado da meditação de Primo Levi (foto), em É isto um homem, é um Cogito cartesiano invertido. Tem a força de um cuspe metafísico.
A análise é do historiador italiano Sergio Luzzatto, professor da Universidade de Turim. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 25-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Todos os leitores da obra de Primo Levi sabem como o escritor de Turim era capaz de captar o poder do detalhe. Como ele era hábil em reconhecer e em sopesar até mesmo a menor dose de matéria humana ou desumana dissolvida na massa molar do mundo.
Essa era uma arte que o jovem químico já tinha aplicado nos submundos de Auschwitz e a qual ele tinha valorizado ao voltar entre os vivos. A experiência restituída em É isto um homem também deve ser considerada como um "experimento mental" (como o definiu Massimo Bucciantini) voltado à identificação rosto e à pesagem dos ingredientes constitutivos do campo de extermínio. A narrativa de É isto um homem poderia ser lida, no limite, como nada mais do que uma implacável coleção de detalhes antropológicos.
Assim, chega em um momento oportuno a inclusão de Levi no livro que um linguista e filósofo francês, Jean-Claude Milner, intitulou La puissance du détail. Um capítulo inteiro do livro é dedicado a uma única passagem de É isto um homem: a meia página de encerramento do capítulo onde se relata uma "seleção" em Auschwitz-Monowitz. As 13 linhas de "Outubro de 1944", em que Levi introduz e se despede – entre os sobreviventes da sua barraca na seleção para as câmaras de gás – da figura de Kuhn.
"Pouco a pouco, prevalece o silêncio, e então, do meu beliche que está no terceiro andar, vê-se e ouve-se que o velho Kuhn reza, em voz alta, com o boné na cabeça e balançando o busto com violência. Kuhn agradece a Deus porque ele não foi escolhido. / Kuhn é um insensato. Não vê, no beliche ao lado, Beppo, o grego, que tem 20 anos e, depois de amanhã, irá para o gás, e ele sabe disso, e está deitado e olha fixamente para a lâmpada, sem dizer nada e sem pensar em nada? Não sabe Kuhn que a próxima vez será a sua vez? Não entende Kuhn que aconteceu hoje uma abominação que nenhuma oração propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação dos culpados, nada, em suma, que esteja em poder do homem de fazer poderá curar jamais? / Se eu fosse Deus, cuspiria no chão a oração de Kuhn."
Segundo Milner, essas 13 linhas contêm, na forma breve típica de É isto um homem, o alfa e o ômega do julgamento de Primo Levi sobre a metafísica depois de Auschwitz. E os contêm a partir de uma reflexão que parece modelada sobre as Meditações de Descartes: uma meditação de fim do dia, no silêncio propício à contemplação de Deus, com o caráter de um raciocínio silogístico, e com a assunção de responsabilidade consistente em pensar nas coisas últimas dizendo "eu". Só que o resultado da meditação de Levi é um Cogito invertido. Tem a força (força louca, especifica Milner) de um cuspe metafísico.
Será preciso – mais cedo ou mais tarde – reler todo Primo Levi à luz dos seus pronomes pessoais: buscar um sistema periódico qualquer no uso leviano do "eu", do "tu", do "nós", do "vocês"... E quem se puser à obra terá que fazer as contas, forçosamente, com a meia página sobre o velho Kuhn e com aquele período hipotético, "Se eu fosse Deus": com a impressionante ocorrência de um "eu" que, como Deus consciente da Solução final, cospe no chão a oração do judeu salvo. Por enquanto, é preciso se contentar em seguir Jean-Claude Milner, a sua leitura de 13 linhas entre as mais desafiadoras que Levi jamais escreveu.
O Deus a quem Kuhn eleva, balançando, a sua oração por tê-lo salvo da seleção e, talvez, para que volte a salvá-lo uma próxima vez corresponde ao próprio protótipo do gênio maligno de Descartes. O campo de extermínio, de fato, exclui, ipso facto, uma "dúvida radical" cartesiana. Aquém de toda dúvida possível filosófica, Auschwitz existe. E, como Auschwitz existe, o Deus de Israel não pode existir de outra forma senão como grande enganador.
Kuhn é louco para rezar a um Deus semelhante. E Kuhn é cego ao não ver Beppo, o grego. O que, na interpretação de Milner, não corresponde somente ao protótipo do "submerso": o homem em dissolução, o "muçulmano" que espera, internet, por ir ao gás. Beppo, o grego, vale ao menos tanto quanto a encarnação estoica, figura de 20 anos da sabedoria.
Ninguém mais distante do que Beppo dos outros gregos deportados para Auschwitz quanto o autor de É isto um homem evocou, em um capítulo anterior, com tons de epopeia: "Admiráveis e terríveis judeus Saloniki tenazes, ladrões, sábios, ferozes e solidários, tão determinados a viver e tão impiedosos adversários na luta pela vida".
Na sua imobilidade de morituro, Beppo tem a capacidade de suportar e de se abster de Epiteto. E, além de uma figura estoica, Milner reconhece nele uma figura platônica. Deitado, mudo, o olhar fixo, Beppo é o Sócrates do Fédon. Mas com uma diferença decisiva.
Em Atenas, a morte de Sócrates realiza o cumprimento da filosofia. Em Auschwitz, a morte de Beppo não garante nada em matéria de imortalidade da alma. "Beppo figura a sabedoria amputada do logos".
A animada oração de Kuhn remete a uma fé possível quase unicamente como fé cega e hipócrita, farisaica: enquanto a resignada inércia di Beppo, a sua sabedoria já desprovida de pensamento e de linguagem conserva, ao menos, a dignidade da razão clássica. E, também por isso, Levi escreve É isto um homem, não É isto um judeu: porque "o extermínio afeta a humanidade através dos judeus; mas o ponto da humanidade que o extermínio alcança através dos judeus e nos judeus assume imediatamente o nome de um grego".
Em suma: o pouco ou nada que resta da razão de Atenas revela a Levi, na barraca de Monowitz, toda a loucura de Jerusalém. Kuhn é louco não porque reza, mas porque reza como judeu. Beppo é sábio não porque espera a morte, mas porque a espera como grego.
Outras tantas impressões e conclusões – estas de Jean-Claude Milner – que mereceriam ser atentamente avaliadas e, eventualmente, criticadas por leitores e amantes de Primo Levi.
Aqui, resta ressaltar o interesse de uma leitura "cartesiana" do episódio de Kuhn à luz de uma passagem que Milner curiosamente renuncia a citar, enquanto, na edição de 1958, ela está ali, bem à vista de todos, bem clara, na primeiríssima página de texto de É isto um homem: a descrição que Levi propôs do seu mundo mental de antes da deportação, um mundo "povoado por civis fantasmas cartesianos".
Em 1976, Levi explicaria como os seus fantasmas cartesianos de antes de Auschwitz eram entendidos como "sonhos e propósitos talvez mal realizáveis, mas não confusos, mas sim racionais e lógicos". É uma definição que se encaixa perfeitamente – no fundo – também para o seu Cogito invertido de Monowitz. Ao seu vertiginoso período hipotético, "Se eu fosse Deus", e ao salivar a sua rejeição à oração de Kuhn.
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''Se eu fosse Deus em Auschwitz.'' Artigo de Sergio Luzzatto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU