15 Janeiro 2015
Filósofo devotado à abordagem de sua disciplina como uma forma de buscar respostas para questões práticas vividas pela humanidade, Luc Ferry misturou-se aos parisienses no domingo para protestar contra o que considera uma ameaça tão nociva como o nazismo: o fundamentalismo islamista.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, o autor de A Sabedoria dos Modernos (com André Comte-Sponville) e ex-ministro da Educação expôs sua visão dos recentes acontecimentos na França.
A entrevista é de Luiz Antônio Araujo, publicada pelo jornal Zero Hora, 15-01-2015.
Eis a entrevista.
O ataque à Charlie Hebdo foi um atentado contra a liberdade de expressão? Ou foi um crime de ódio como tantos outros?
Nem um, nem outro. Foi claramente, de maneira explícita, uma vingança contra as caricaturas de Maomé publicadas pela Charlie há três anos. Havia uma fatwa contra eles, e os irmãos Kouachi (Said e Cherif Kouachi) a cumpriram, isso é tudo. Certamente, o ataque visava a liberdade de expressão, mas somente nesse aspecto preciso: a proibição de toda crítica ao Islã. Ora, devemos ter o direito de criticar as religiões, todas as religiões, mas também todos os filósofos. É isso que está em jogo e, bem entendido, trata-se de provocar medo, de jogar com o terror.
O senhor é Charlie?
Eu sou judeu, policial e Charlie se você quiser. O que isso quer dizer? Eu não sou de fato nada disso, nem judeu, nem tira, nem Charlie, mas isso quer dizer que, sem deixar de lado nossas diferenças ou nossas divergências, é preciso saber transcendê-las, transpassá-las às vezes, quando o essencial está em jogo. Criticam-se as “blasfêmias” de Charlie. Isso é grotesco, débil. Tem-se o direito de criticar as religiões, como todas as outras visões do mundo, o liberalismo, o comunismo, não? Ou então é o fim de toda liberdade! Diante da morte, face ao morto e ao terror, somos todos republicanos no sentido literal: a res pública é a coisa comum, o assunto de todos. Nunca gostei particularmente de Charlie, mas, por tomar uma frase que se atribuiu a Voltaire (equivocadamente, mas pouco importa), eu faria tudo por lhes permitir que continuem a publicar, e inclusive contra mim.
O Islã é o problema?
Não. É o islamismo fanático, o Estado Islâmico, a Al-Qaeda. Não se deve confundir muçulmano e islamista, religião e fundamentalismo fanático, e um dos desafios de hoje é justamente evitar o amálgama.
Dito isso, o islamismo fanático se parece muito com o nazismo, ao menos em pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, um formidável sentimento de humilhação, que o fundamentalismo vai buscar na história da colonização, como a Alemanha hitleriana buscou no Tratado de Versalhes.
Em segundo, uma miséria social e humana, a dos países devastados pelas guerras comunitárias, a das banlieues (subúrbios) pobres, análoga em certo sentido ao marasmo que se seguiu à crise de 1929.
Igualmente, uma ideologia forte, cheia de sentido e de porvir radioso, de virgens e de retorno à idade de ouro, diante de Estados laicos desesperadamente neutros, porque voluntariamente desprovidos de ideologia oficial.
Em quarto lugar, o fundamentalismo compartilha com o nazismo uma visão de comunitarismo, ou melhor, “holística” do mundo: o fanático não distingue o indivíduo, mas somente os “membros”, no sentido biológico do termo, ou seja, de partes de uma totalidade orgânica que não possuem nenhuma autonomia pessoal.
Subitamente, a guerra opõe uma comunidade a outra sob uma perspectiva na qual a pessoa não existe mais, não é mais nem mulher, nem criança, nem inocente: é preciso erradicar a comunidade da face da terra “sem poupar os pequenos”, como já diziam os nazis franceses.
Todas essas ideologias culminam em um verdadeiro ódio da Europa do Iluminismo, uma fúria hostil que, sob o nazismo, se enraizava no romantismo alemão, mas que, no fundamentalismo de hoje, se cristaliza contra Israel, braço armado do Ocidente na terra do Islã, um país democrático culpado de todos os pecados que se podem enumerar.
O senhor foi à manifestação de 11 de janeiro?
Sim, claro, todo mundo estava lá, direita e esquerda, judeus, cristãos e muçulmanos, todas clivagens foram ultrapassadas. Vi pessoas que portavam cartazes “Eu Sou Charlie” aplaudir com todas as suas forças os carros de polícia. Honestamente, o que ocorreu no domingo foi grandioso.
O que o senhor pensa sobre a tese de Éric Zemmour segundo a qual “a História é surpreendente” e pode-se imaginar a deportação de imigrantes do Oriente Médio e da África?
Os absurdos não merecem que se fale deles.
A “união sagrada” sob o presidente francês, François Hollande, e seu antecessor, Nicolas Sarkozy, é a resposta?
A “união sagrada” não é nem por um segundo entre Hollande e Sarkozy! Todo mundo, na rua, e fomos 3,5 milhões em toda a França no domingo, utiliza-a como sua primeira camisa. Os políticos não são o centro, é o povo que é o centro, e, uma vez mais, ninguém pensou um segundo nem em Hollande, nem em Sarkô, nem em nenhum político. Eles estavam fora do jogo, e a manifestação foi totalmente espontânea.
A França está doente? Está em guerra?
A França é especialmente visada pelos islamistas fanáticos por três razões: é o país da Europa e talvez mesmo do mundo que tem, ao mesmo tempo em seu território, a maior comunidade judaica (mais de 1 milhão) e a maior comunidade muçulmana (entre 5 milhões e 8 milhões). Igualmente, é o país da laicidade por excelência, nenhum país do mundo tendo sido mais militante que o nosso em relação à separação da religião e do Estado. Finalmente, estamos em guerra no Mali, na República Centro-Africana, mas também contra o Estado Islâmico, e queremos intervir na Síria, depois de intervir na Líbia. Então, sim, a França está em guerra, uma guerra assimétrica, não clássica, não de Estado contra Estado, mas uma guerra de um tipo novo, onde milhares de terroristas fundamentalistas podem desestabilizar todo um país.
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“Sim, a França está em guerra”. Entrevista com Luc Ferry - Instituto Humanitas Unisinos - IHU