10 Julho 2017
É justamente à noite que a fome é mais sentida pelo indivíduo. Rede de solidariedade ameniza falta de dinheiro para a compra de alimentos.
A reportagem é de Daiane Costa e publicada por jornal O Globo, 09-07-2017.
Na última quarta-feira, os seis filhos de Rita de Cássia dos Santos Souza, de 37 anos, não foram dormir com fome. Era noite de festa na casa de Maria Helena Cardoso, que completava 66 anos. O cardápio: feijão tropeiro. Maria Helena mora com o marido e a mãe, de 87 anos, em um casarão no entorno da Praça Redenção, em Paciência, Zona Oeste do Rio. Costuma ser o refúgio das crianças da família Souza quando falta comida em casa. Principalmente na hora do almoço, depois da escola.
— À noite, meus filhos não costumam ter sono cedo e ficam assistindo TV. Daí, quando chega umas 23h, eles pedem: “Mãe, tem biscoito? Mãe, tem leite?” Como eu não tenho nada em casa, tenho de dizer: Vão dormir que a fome passa — conta Cássia, como costuma ser chamada.
É justamente à noite que a fome é biológica e fisiologicamente mais sentida pelo indivíduo, que acaba tendo dificuldades para dormir, explica Maria do Carmo de Freitas, especialista em antropologia da alimentação e autora do livro “Agonia da fome”, sobre uma comunidade pobre de Salvador:
— A fome é tida no campo subjetivo como uma metáfora do fantasma que caminha à noite. O indivíduo externaliza que é o fantasma da fome tomando o corpo.
Cássia diz que Maria Helena é fundamental na vida da família: — A casa dela está sempre cheia, e eu sou um dos quatro filhos de coração dela — completa, enquanto amamenta a filha mais nova, Carolina, de 3 anos.
A cozinheira desempregada amamentou todos os seis filhos por pelo menos três anos. Além de dificilmente ficarem doentes, no caso da mais nova é uma refeição a menos com que se preocupar. Ela também recebe alimentos e roupas da igreja evangélica que frequenta. A família pode não saber, mas faz parte de um contexto classificado por especialistas como estratégias da fome.
— As pessoas acabam se integrando a uma rede de apoio social, que pode vir de amigos, familiares, da igreja e de ONGs. Pede ao vizinho, compra fiado. Quanto maior essa rede, menor a chance de passarem fome — observa a nutricionista Rosana Salles da Costa, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, e pesquisadora sobre segurança alimentar.
Em 2008, em uma pesquisa realizada em cinco mil lares que recebiam o Bolsa Família, foi identificado que um terço deles vivia em segurança alimentar por conta dessas estratégias, conta Rosana.
Edir Dariux Teixeira, de 58 anos, amiga de Maria Helena, integra essa rede de solidariedade. Já dedica mais de duas décadas ao voluntariado. Ajudou Betinho em sua saga pela arrecadação de alimentos nos primeiros anos do Movimento Ação da Cidadania, nos anos 1990, entidade da qual faz parte até hoje. Cansou de pagar as compras de supermercado da Maria de Fátima Ferreira, que passou uma semana comendo só angu. São vizinhas. Não tem dinheiro sobrando para fazer caridade, mas não consegue ver um irmão, como chama, passar necessidade e ficar de braços cruzados:
— Digo que sou uma pobre metida a besta — brinca.
Quando a solidariedade leva à falta de comida na própria casa, recorre à filha, onde dorme algumas noites e se alimenta. A solidariedade parece vocação.
— A primeira vez que fiz isso tinha 12 anos. Comprei fiado na conta da minha mãe na banca para distribuir aos meus colegas na escola. Quando ela descobriu, levei uma surra — conta Edir, rindo. — Eu não quero saber se é pobre, rico, gay, espírita, evangélico. Eu olho para o ser humano. Se a pessoa precisar de ajuda, vou ajudar. Às vezes, ela só quer uma palavra de apoio.
Outro refúgio importante para driblar a fome são as escolas. Segundo Rosana, pesquisas mostram que durante as férias escolares cai a qualidade da alimentação de crianças e adolescentes.
Cássia e o marido, Orlando, estão desempregados. Ele sempre foi o chefe de família. Pedreiro de grandes obras, chegaram a viver por um bom tempo com uma renda mensal de R$ 2 mil. Mas, com a crise paralisando o setor de construção civil, está sem emprego há dois anos. Há oito meses, nem bico aparece. Não foi à festa de Maria Helena porque estava com febre e diarreia. Segundo Cássia, ele tem estado abatido e já emagreceu muito. Sente-se incapaz por não conseguir trazer dinheiro para casa. Cássia é cozinheira. Mas o rompimento de uma artéria na última gravidez limita as oportunidade de trabalho. Para piorar a situação, a família é ameaçada de despejo pelo administrador da casa que alugam em uma comunidade próxima à favela de Antares, em Santa Cruz. Devem R$ 2.500 de cinco meses atrasados de aluguel. A única renda certa do casal são R$ 120 mensais do Bolsa Família.
— Quando você ganha R$ 2 mil e cai para nada é muito difícil se adaptar. É como ganhar na Mega-Sena e de repente perder tudo — diz Cássia.
Admitir a fome não é tarefa fácil. Causa vergonha e desconforto, observa Maria do Carmo. Renata (nome fictício), de 39 anos, recebeu a reportagem no quarto e cozinha erguidos em um terreno que divide com outras duas famílias, todos parentes, em Vendas de Varanda, comunidade de Santa Cruz. É mãe solteira de dois filhos, de 10 e 6 anos. Teve de largar o emprego, há cerca de um ano, porque não conseguia mais pagar uma babá para tomar conta das crianças. Há seis meses, quando teve cortado os R$ 160 do Bolsa Família, passaram a conviver com a fome.
— O mais velho entende um pouco mais. Mas o mais novo, quando é dia de levar lanche para a escola e eu não tenho nada para mandar, não quer ir. Ele sente muita vergonha — conta Renata, que não permitiu ser fotografada. — Não tenho orgulho da minha condição. Não quero que saibam o que eu passo.
No dia em que a reportagem esteve em sua casa, o almoço era arroz, doado pela mãe, e sardinha frita, presente de um amigo. A pesquisadora Maria do Carmo identificou que as pessoas acabam criando outras expressões para se referir à fome, para evitar mencionar a palavra — a chamam de “coisa”, “mulher mulambenta”, “demônio”.
— É muito difícil admitir a possibilidade de fome dentro de casa quando se tem crianças. Na comunidade que estudei, a população explicava a fome como um fantasma, como espíritos, como algo que está fora do corpo. Uma externalidade, porque é duro imaginar a fome dentro do filho, dentro do bebê. Essa comunidade tinha muitas escadas. Tinha muito dessas expressões: “Ela que veio aqui e atacou” ou “derrubou da escada”. Como se a fome fosse do mal — explica Maria do Carmo.
Única refeição do dia
Sentado na ponta da penúltima mesa do Restaurante Popular de Niterói, o único que ainda funciona no Estado do Rio, Francisco Carlos Leite, de 61 anos, come o que deve ser a sua única refeição do dia. Um prato com arroz, feijão, angu, alface, picadinho de fígado e uma banana. Naquele dia, dormiria na rua pela terceira noite, nos fundos do terminal rodoviário, ali perto. O local se tornou refúgio de desempregados e vítimas da violência, como Francisco.
— Eu sou um homem decente, trabalhador. Onde está o Estado? — indaga.
Quando foi visitar amigos em Macaé, traficantes saquearam sua casa. Está impedido de voltar, alertaram vizinhos. Passar fome ainda não parece ser o maior problema. Chora quando lembra que levaram até o cachorro.
— O estado de insegurança alimentar não pode ser medido apenas pelo prato de comida, mas pelo que provoca essa falta de certeza de ter o que comer — explica a especialista Maria do Carmo de Freitas.
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'Mãe, tem leite? Como não tenho nada em casa, digo: vai dormir que a fome passa' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU