Os projetos de Lei 490/2007 e 191/2020 tentam legalizar a exploração mineral e florestal nos territórios indígenas, o que coloca em risco os modos de vida das populações autóctones
A ofensiva contra os povos indígenas tem muitas frentes. Enquanto na floresta grileiros, madeireiros e garimpeiros invadem e destroem os territórios dos povos nativos, em Brasília os ataques ocorrem nos escaninhos do Congresso, sobretudo pelos integrantes da chamada bancada “BBB” – do boi, da bala e da bíblia –, no contínuo processo genocida e etnocida secular que marca a história do Brasil.
No centro do debate jurídico e legislativo, três eventos importantes: 1) o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365 pelo Supremo Tribunal Federal - STF, que ainda não tem data para ser retomado, depois do pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes; 2) a votação no plenário do Projeto de Lei - PL 490/2007; e 3) a votação do Projeto de Lei - PL 191/2020.
“O PL 490/2007 é extremamente grave, (pois) tenta estabelecer diversas limitações e restrições a esses territórios, como se legitimasse a interpretação que busca esvaziar os direitos territoriais indígenas. O PL 191/2020 atende a um velho anseio de favorecer a mineração em terras indígenas. Desde a Assembleia Constituinte, tenta-se a qualquer custo facilitar, promover e viabilizar a mineração em terras indígenas”, avalia Julio Araujo, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj e procurador do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro.
“A concentração fundiária e os impactos que ela gera nas estruturas desiguais em nossa sociedade geram grandes dificuldades na atuação das instituições do sistema de justiça. É necessário coibir a atuação de grupos criminosos, mas também é fundamental assegurar o cumprimento do projeto constitucional na destinação de terras públicas, por meio da efetivação da reforma agrária e da demarcação dos territórios indígenas e demais povos e comunidades tradicionais”, complementa.
Julio José Araujo Junior (Foto: Procuradoria Amazonas)
Julio José Araujo Junior é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj. Foi procurador federal de novembro de 2007 a outubro de 2010 nos municípios de Osasco e Santo André, em São Paulo, e juiz federal em Volta Redonda, Rio de Janeiro, entre 2010 e 2012. Além disso, foi procurador no Amazonas de 2012 a junho de 2014, tratando de temas relacionados a populações indígenas e comunidades tradicionais. Desde junho de 2014, passou a atuar no MPF no Estado do Rio de Janeiro.
IHU – Que riscos os PLs 490/2007 e 191/2020 representam às comunidades indígenas?
Julio Araujo – O PL 490/2007 é extremamente grave, pois tenta reduzir por lei o alcance do conceito constitucional de terras indígenas. Sob o falso argumento de que haveria uma jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal - STF sobre o chamado marco temporal e sobre o alcance da proteção às terras indígenas, o projeto tenta estabelecer diversas limitações e restrições a esses territórios, como se legitimasse a interpretação que busca esvaziar os direitos territoriais indígenas. Isso desconsidera todo o peso que a Constituição conferiu à matéria.
O PL 191/2020 atende a um velho anseio de favorecer a mineração em terras indígenas. Desde a Assembleia Constituinte, tenta-se a qualquer custo facilitar, promover e viabilizar a mineração em terras indígenas. O tema ficou em aberto na Constituição de 1988, necessitando de lei para haver qualquer tipo de autorização ou regulação na matéria. O problema reside na total desconsideração dos impactos que essa atividade econômica gera nas terras indígenas e na tentativa de emplacar um regime que não leva em conta os anseios dos povos indígenas, a consulta prévia prevista na convenção 169 e a autonomia nos territórios.
IHU – Qual a fundamentação jurídica dessas matérias? Elas, em alguma medida, não ferem a Constituição?
Julio Araujo – O PL 490 está na contramão do que diz a Constituição. Tenta consagrar o marco temporal, que é o reconhecimento dos direitos territoriais apenas aos grupos que ocupavam as terras em 5 de outubro de 1988, e busca legitimar restrições e assegurar a exploração dos recursos dos territórios e a presença estatal nos territórios, em claro desrespeito à autonomia.
Fala-se no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, mas o próprio STF já disse que ele não é aplicável a outros casos. Além disso, o próprio tribunal já sinalizou que o seu entendimento não é o do caso Raposa nas Ações Cíveis Originárias - ACOs 362 e 366 e deve revisitar a matéria no Recurso Extraordinário 1.017.365. O que se pretende é converter em lei a fake news de que há uma jurisprudência pacífica na matéria. Com isso, estaria sendo legitimada a omissão da Fundação Nacional do Índio - Funai e a União, que não vêm cumprindo seu papel na demarcação dos territórios, tendo utilizado muitas vezes o parecer da Advocacia-Geral da União - AGU, atualmente suspenso por decisão do STF, que mandou aplicar o entendimento do caso Raposa a todas as situações.
IHU – O senhor acredita que ainda há chance de reversão e não aprovação dessas matérias no parlamento brasileiro?
Julio Araujo – É importante que haja muita mobilização e sensibilização da sociedade para o tema. Os parlamentares são sensíveis a este apelo, e é necessário demonstrar que não é a aprovação de matérias inconstitucionais, em plena pandemia, que irá resolver problemas que possam especificamente ser verificados em cada localidade.
IHU – Como compreender as questões de fundo desses projetos de lei e de outras ações que insuflam ruralistas contra povos indígenas e suas áreas demarcadas?
Julio Araujo – Existe uma reação à efetivação de direitos territoriais indígenas que não começou hoje. Creio que há pelo menos quinze anos existe uma forte mobilização pelo esvaziamento desses direitos, em todos os âmbitos, sobretudo nos poderes. A vetusta PEC 215, que tentava transferir as demarcações ao Legislativo, a tentativa de fazer o acórdão do caso Raposa em todas as situações e diversas tentativas de obstaculizar demarcações no Poder Executivo são estratégias que já vinham sendo apresentadas e que agora se mostram ainda mais fortes.
IHU – Em que medida o Judiciário pode ser um front de resistência a essa ofensiva sobre terras públicas destinadas aos povos originários? Em geral juízes e desembargadores são sensíveis às causas indígenas?
Julio Araujo – O Judiciário tem sido outro âmbito em que a reação aos direitos territoriais indígenas encontra bastante espaço. Como já escrevi em artigo acadêmico, talvez seja um dos espaços mais refratários à efetivação dos direitos territoriais indígenas. Contudo, a evidente omissão inconstitucional do Estado brasileiro nos últimos dois anos e meio tem levado o Supremo Tribunal Federal a ser mais claro na defesa da Constituição, como se deu na ADI 6062, na ADPF 709 e na própria decisão liminar do ministro [Edson] Fachin no Recurso Extraordinário - RE 1.017.365. Com isso, passamos a ter um Judiciário mais atento a essas violações, embora estas se deem em compasso muito mais acelerado que a capacidade de reação da máquina judiciária.
IHU – A grilagem é uma prática presente ao longo da história de conflitos entre ruralistas e povos originários. Por que essa prática persiste há tanto tempo? Quais os maiores desafios para enfrentar essas quadrilhas que, além de se apropriarem de terras públicas, impõem suas leis e suas regras em muitas regiões do Brasil?
Julio Araujo – Falar de grilagem é falar de um problema que tem a ver com a nossa história, nossa formação. A concentração fundiária e os impactos que ela gera nas estruturas desiguais em nossa sociedade geram grandes dificuldades na atuação das instituições do sistema de justiça. É necessário coibir a atuação de grupos criminosos, mas também é fundamental assegurar o cumprimento do projeto constitucional na destinação de terras públicas, por meio da efetivação da reforma agrária e da demarcação dos territórios indígenas e demais povos e comunidades tradicionais.
IHU – Em sua pesquisa de mestrado, o senhor trabalhou com a ideia de que direitos territoriais indígenas passam por uma interpretação intercultural. Em que consiste essa interpretação e como, juridicamente, ela se fundamenta?
Julio Araujo – O objetivo é garantir um aprendizado recíproco, uma relação em igualdade de condições que respeite as formas de vida e de organização dos povos indígenas. Uma relação que não seja pautada pela primazia das formas oficiais de Estado ou que desconsidere toda e qualquer peculiaridade sociocultural desses grupos. É imprescindível que a “diferença”, no caso dos povos indígenas, não seja meramente acomodada, mas que entre para o debate e, sobretudo, para a interpretação constitucional de forma plena, sem amarras e hierarquizações. Defendo a justiça cognitiva, que valoriza a descolonização dos saberes, dos seres e do poder, de forma a viabilizar um diálogo pleno entre modos de vida.
Falo em “uma” interpretação intercultural para dizer que é uma proposta, um caminho apenas, um projeto em construção. É um caminho que ainda não é pleno, pois creio que só haverá diálogo intercultural quando os indígenas ocuparem todos os espaços de poder e puderem efetivamente veicular suas visões sobre a realidade e sobre o texto constitucional sem mediações ou ranços tutelares na relação com ou contra o Estado.