06 Janeiro 2016
“Minerodutos têm um único objetivo: acelerar o processo de expropriação e exportação do patrimônio mineral brasileiro”, diz o representante do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas - Fonasc-CBH de Minas Gerais.
Foto: www.otempo.com.br |
Para analisar os impactos ambientais e sociais dos minerodutos, a IHU On-Line entrevistou, por e-mail, Gustavo Gazzinelli, representante do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas - Fonasc-CBH de Minas Gerais, Gabriel Ribeiro, membro do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais, e Patrícia Generoso, da Rede de Articulação e Justiça dos Atingidos do Projeto Minas-Rio – REAJA.
Crítico aos minerodutos como alternativa para o transporte de minérios no país, Gazzinelli frisa que eles “retiram um grande volume de água das regiões e cabeceiras de rios que precisam dessa água” e informa que a concessão de lavra do projeto Minas-Rio, “de acordo com o Termo de Compromisso/Anexo da Portaria 499/2014, publicada no Diário Oficial da União, estabeleceu uma produção anual de 54,4 milhões de toneladas entre o 15º e o 20º ano de operação da mina”. Contudo, “o mineroduto licenciado pelo Ibama tem capacidade para transportar cerca de 27 milhões de toneladas/ano, metade dessa produção prevista na concessão. Como a outra metade será transportada?”, questiona.
Gabriel Ribeiro pontua ainda que “as captações necessárias às diferentes estruturas de um mesmo projeto minerador, mesmo incidindo sobre afloramentos de água ou aquíferos adjacentes, são tratadas como intervenções isoladas e distintas, prejudicando o exame dos impactos derivados da totalidade das captações e usos”. Como consequência direta, explica, “as outorgas expedidas pelo Estado têm funcionado como um ‘cheque em branco’, um seguro, uma garantia para as mineradoras, que usufruem desse privilégio em regiões com forte carência de água, tanto pela escassez natural dela como pela proximidade de regiões densamente povoadas”.
Segundo Patrícia Generoso, que acompanha a situação dos moradores de Conceição do Mato Dentro, “os impactos ambientais causados pelo mineroduto são facilmente percebidos e vão desde o assoreamento de nascentes e de cursos de água, desmatamento em área de preservação permanente, perdas de conectividade em áreas de relevância ambiental, grandes cortes no solo que funcionam como drenos e estão causando erosões e a supressão das nascentes e cursos d’agua próximos aos locais abertos para a instalação dos tubos. Já os impactos sociais são a fragmentação e divisão de pequenas propriedades, reduzindo sua capacidade produtiva e, até, inviabilizando completamente a produção”.
Gustavo Gazzinelli é representante do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas - Fonasc-CBH de Minas Gerais, Gabriel Ribeiro é graduado em Ciências Socioambientais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e membro do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais, e Patrícia Generoso é integrante da Rede de Articulação e Justiça dos Atingidos do Projeto Minas-Rio – REAJA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais os principais problemas acerca do licenciamento de minerodutos em Minas Gerais? Como esse tipo de licenciamento tem sido feito e que aspectos são desconsiderados ao fazer os licenciamentos?
Imagem: Portal Metalica
Gustavo Gazzinelli - Penso que o mineroduto é por si uma imbecilidade, pois retira água boa e necessária para diferentes atividades de uma região que precisa dela. Os últimos projetos de minerodutos que vi, no site do Ibama, transportam continuamente volumes capazes de abastecer cidades de 300 a 500 mil habitantes, considerando a média de consumo de água brasileira de 155 litros/dia por habitante no Brasil.
A Samarco estava instalando seu terceiro mineroduto e buscando água em outra sub-bacia hidrográfica a 40 km de distância da sua mina. Para obter a outorga para essa captação, a Samarco e o governo Aécio praticamente esgotaram o volume outorgável da principal fonte de abastecimento do município de Santa Bárbara. Ou seja, ao fazer essa concessão, queimaram parte do futuro de Santa Bárbara para outras perspectivas de investimentos e negócios que possam demandar água. Monopolizando a água, a mineração monopoliza as perspectivas de desenvolvimento. Blinda lugares de outros projetos e perspectivas econômicas.
Na verdade, os minerodutos são licenciados pelo Ibama. É sempre assim quando um empreendimento acontece em mais de um estado. No caso de um estado interiorano como Minas Gerais, de acordo com a lei atual, o Ibama será o órgão licenciador de qualquer estrutura (mineroduto ou ferrovia) destinada a escoar produtos para exportação a partir de um porto no litoral.
Contudo, o governo estadual participa do arcabouço legal ou da engenharia jurídica para a viabilização do negócio. Tomando o exemplo do projeto Minas-Rio, o ex-governador Aécio Neves assinou um protocolo de intenções com Eike Batista. No mesmo dia da assinatura desse protocolo, 5 de março de 2008, Aécio editou um decreto declarando de utilidade pública os terrenos por onde passaria o mineroduto da MMX, cujo projeto foi depois adquirido pela Anglo American. Coube, como cabe também ao governo estadual, no caso das bacias ou sub-bacias hidrográficas de domínio do Estado, a concessão da outorga para uso da água.
Minerodutos
Parte desses papéis (outorgas, decretos, licenças), com valor formal, burocrático, ajudou a valorizar o negócio que alavancou o enriquecimento bilionário de Batista. Questionamos então, em representação ao Ministério Público Federal, como o Ibama poderia licenciar um mineroduto antes que a mina (atividade que motivaria a instalação do mineroduto) tivesse sua "viabilidade ambiental" analisada e a licença prévia concedida. Como um governador poderia assinar um decreto declarando utilidade pública de terrenos para mineroduto, cuja mina não estava licenciada? Nove meses após a publicação do decreto declarando a utilidade pública dos terrenos do mineroduto, o Estado, numa reunião repleta de policiais civis e militares, e com assédio explícito de autoridades públicas e representantes empresariais contra votos de servidores públicos [1], fez passar um dos projetos mais escandalosos de mineração no país.
“Como um governador poderia assinar um decreto declarando utilidade pública de terrenos para mineroduto, cuja mina não estava licenciada?” |
Minerodutos têm um único objetivo: acelerar o processo de expropriação e exportação do patrimônio mineral brasileiro. O capital inicial para a instalação de um mineroduto é bem menor do que o necessário para a construção de uma ferrovia. Quando um mineroduto é licenciado, a região que fornece a água não é informada que logo à frente terá que assegurar mais água, para um segundo e até um terceiro mineroduto. Tomemos o exemplo do projeto Minas-Rio novamente. A concessão de lavra, de acordo com o Termo de Compromisso/Anexo da Portaria 499/2014, publicada no Diário Oficial da União, estabeleceu uma produção anual de 54,4 milhões de toneladas entre o 15º e o 20º ano de operação da mina. Por sua vez, o mineroduto licenciado pelo Ibama tem capacidade para transportar cerca de 27 milhões de toneladas/ano, metade dessa produção prevista na concessão. Como a outra metade será transportada?
Para agravar o quadro, a cerca de 20 km de Conceição do Mato Dentro, outra empresa – Manabi (renomeada MLog) –, pretendia instalar outro mineroduto. Sabemos que o Ibama vetou o mineroduto, devido ao ponto de chegada (Linhares-ES) estar diretamente associado à região também conhecida como banco de Abrolhos. O Ibama, porém, não teve olhos para o ponto de partida, Morro do Pilar, bacia hidrográfica do rio Santo Antônio, que, por ser a sub-bacia com mais espécies de peixes de toda a bacia do Doce (mais de 85%), será vital para seu repovoamento após o desastre da Samarco.
No seminário Águas de Minas, promovido este ano pela Assembleia Legislativa, oito dos nove encontros regionais elegeram a proibição da instalação de novos minerodutos no Estado como objetivo fundamental. A proposta foi ratificada na plenária final do seminário, ocorrida em 2 de outubro em BH.
IHU On-Line - Por quais razões defendem que os minerodutos não são a melhor alternativa para o transporte de minério de ferro no país? Quais são os argumentos de quem é favorável e de quem é contrário à instalação dos minerodutos? O que seria uma alternativa aos minerodutos?
Gustavo Gazzinelli - Especialmente, porque minerodutos retiram um grande volume de água das regiões e cabeceiras de rios que precisam dessa água, quer do ponto de vista ecológico, quer para consumo humano, e para diversas atividades econômicas. A água é um insumo econômico e um bem cultural e natural de que todos precisamos cada vez mais. Não há sentido em transferir seu uso para objetivos que só servem a um interesse específico e contrário a outros usos da água.
Argumentos
O argumento dos que são favoráveis a minerodutos é que é mais barato e contribui menos para os gases de efeito estufa. Acho o segundo argumento muito raso. Não sei se ele passa por uma conta que leve em consideração as perdas implicadas na subtração de água de uma região que precisa dela para manter sua qualidade ambiental.
A alternativa aos minerodutos precisa ser encarada de dois pontos de vista. Por um lado, é a ferrovia, que leva e traz. Por outro lado, deve ser pensada sob a ótica do ritmo ou velocidade e do destino da produção da mineração que deveríamos defender. Hoje, o minério de ferro é o carro-chefe da mineração brasileira e se destina a outros países. Se tivéssemos maior visão estratégica e preocupação com o futuro do país, teríamos, por um lado, que reduzir o ritmo da produção de minérios como o de ferro, para preservar jazidas para as futuras gerações, e, por outro ângulo, transformar a maior parte da produção, que adquira uma condição equilibrada, aqui no país. Com isso, mudamos a lógica da produção e freamos o volume de riscos, impactos e soluções malucas como essa de transportar minério com água. Antes de analisar, portanto, qual a alternativa tecnológica, é preciso considerar a quais interesses servem a instalação de minerodutos no país. O modo de transportar e o ritmo e volume de produção a que este modal objetiva atender não são sustentáveis. Do ponto de vista estratégico, social e territorial é um contrassenso.
IHU On-Line - Como esses minerodutos funcionam?
Gabriel Ribeiro - A tentativa de implantação de minerodutos vem para agilizar e baratear a implantação de novos complexos minerários, constituídos de lavras a céu aberto, sistema de dutos para escoamento e terminal portuário para filtragem, estocagem e exportação. No contexto brasileiro, a exportação de minérios sem valor agregado fez-se a mola propulsora da obtenção de lucro fácil pela intensificação da produção de nossa principal commodity mineral que é o minério de ferro. Nestes últimos dez anos, a rápida elevação do valor do minério de ferro propiciou a guinada neoextrativista em busca da exploração de jazidas itabiríticas, dotadas de teores mais baixos de ferro, frente à crescente escassez dos minérios hematíticos, de melhor qualidade, na região do Quadrilátero Ferrífero. Desta forma, novos municípios foram inseridos numa lógica extrativista de maior escala, mais ameaças e impactos socioambientais – quanto menor o teor de ferro, maior o território impactado e a produção de rejeitos e estéreis.
Os novos grupos mineradores tentam, na mesma lógica, buscar a implantação de estruturas de escoamento mais baratas, mas também mais prejudiciais para as regiões de onde a água é retirada. O modelo brasileiro de concessão ferroviária, por sua vez, é um entrave ao compartilhamento de linhas, atualmente sob o monopólio de poucas empresas, especialmente a Vale e algumas de porte inferior, como CSN e Gerdau, do grupo controlador da MRS Logística.
Minerodutos constituem-se em um sistema composto basicamente por tubos subterrâneos ou superficiais para transporte de pó (minério com granulometria superfina, os chamados pellet feed, com diâmetro inferior a 0,15mm) transformado em polpa de minério, cuja locomoção é impulsionada por estações de bombeamento (no caso de Minas Gerais, normalmente uma no ponto de partida e outra no meio do caminho), para que se garanta um jato de água contínuo e submetido a forte pressão. O que se observa nos projetos de engenharia é que as estruturas de escoamento compreendem dutos articulados em angulações não superiores a 30°. Portanto, a declividade dos relevos guia a diretriz do traçado, e muitas vezes os empreendedores optam pela seleção de trechos situados à beira-rio, em planícies ou baixadas.
Os métodos para a escolha dos pontos atendem prioritariamente a parâmetros físicos em detrimento dos arranjos fundiários, produtivos e naturais coexistentes no território, vindo assim a atingir fragmentos florestais de mata atlântica e de transição, pastagens e terras férteis utilizadas por médios e pequenos agricultores. Em termos logísticos, a opção por mecanismos de transporte com capacidade de otimizar distâncias por baixos custos operacionais são argumentos usados para a defesa da “viabilidade econômica” e para convencer acionistas sobre o potencial de lucratividade dos projetos, intentando “colocar o produto, no lugar e no tempo certo”, com o custo mais baixo para o investidor.
“Quando a exploração de minério de ferro colocar em risco o abastecimento humano, o empreendimento minerário não poderia entrar em operação” |
IHU On-Line - Que destino é dado à água utilizada nos minerodutos?
Gabriel Ribeiro - Nos casos dos minerodutos já em operação, normalmente a água, após a filtragem da polpa na região portuária, é direcionada para um emissário que a despejará diretamente no oceano. Parte dela chega a ser utilizada para o resfriamento de máquinas, mas o destino do volume maior é o mar.
Gostaria de frisar dois pontos acerca da questão dos recursos hídricos necessários para o funcionamento dessas estruturas. Primeiramente, grandes tubulações encarregadas pelo transporte de minério diluído em água poderiam ser facilmente questionadas sob o argumento da insegurança hídrica, situação desconsiderada com recorrência nos licenciamentos de novos projetos minerários em Minas Gerais, com aval de pareceres do Instituto Mineiro de Gestão de Águas - IGAM e aprovação de outorgas de direito ao uso da água, sem quaisquer dificuldades ou ponderações por parte dos comitês de bacias hidrográficas onde o poder das mineradoras tem se mostrado considerável.
Para a advogada Marcilene Ferreira, o princípio da precaução raramente é utilizado no licenciamento destes projetos, pois, se aplicado, quando a exploração de minério de ferro colocar em risco o abastecimento humano, o empreendimento minerário não poderia entrar em operação. Neste ponto, é possível concluir que as captações necessárias às diferentes estruturas de um mesmo projeto minerador, mesmo incidindo sobre afloramentos de água ou aquíferos adjacentes, são tratadas como intervenções isoladas e distintas, prejudicando o exame dos impactos derivados da totalidade das captações e usos.
Como consequência direta, as outorgas expedidas pelo Estado têm funcionado como um ‘cheque em branco’, um seguro, uma garantia para as mineradoras, que usufruem desse privilégio em regiões com forte carência de água, tanto pela escassez natural dela como pela proximidade de regiões densamente povoadas. Em tempos de crise hídrica e de desastres ambientais de alta magnitude, como o ocorrido em Mariana, não há possibilidade de esse sistema ser sustentável.
IHU On-Line - Quais os impactos ambientais evidenciados em Conceição do Mato Dentro por conta do mineroduto?
Patrícia Generoso - Em Conceição do Mato Dentro os impactos ambientais causados pelo mineroduto são facilmente percebidos e vão desde o assoreamento de nascentes e de cursos de água, desmatamento em área de preservação permanente, perdas de conectividade em áreas de relevância ambiental, grandes cortes no solo que funcionam como drenos e estão causando erosões e a supressão das nascentes e cursos d’agua próximos aos locais abertos para a instalação dos tubos. Já os impactos sociais são a fragmentação e divisão de pequenas propriedades, reduzindo sua capacidade produtiva e, até, inviabilizando completamente a produção.
Vários pequenos proprietários rurais que possuíam tanques de peixes tiveram seus tanques inviabilizados em razão da redução da água ou até mesmo do completo ressecamento dos tanques. Além disso, o fluxo de veículos aumenta a poeira e inviabiliza a produção artesanal de polvilho, uma vez que parte do processo produtivo, tradicional na região, sempre se realizou com o secamento da polpa da mandioca. A redução da água está inviabilizando a criação de galinhas e porcos e também a manutenção de quintais (pomares e hortas) utilizados para produção de diversos itens da alimentação das comunidades rurais e que, nas palavras da antropóloga e professora Ana Flávia Santos (UFMG), são verdadeiras dispensas das comunidades rurais.
A agricultura familiar das propriedades do entorno do mineroduto Minas-Rio, próximas a Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim, foi também inviabilizada em razão de degradação da água. A produção de queijo, cachaça, farinha, polvilho, hortaliças foi muito impactada na região.
Pequenos produtores reclamam que prepostos da empresa, quando trataram da indenização da servidão de passagem do mineroduto, falaram que passaria um cano de 50/80 centímetros e que tudo voltaria ao normal, sem restrições de uso. Muitos pequenos proprietários imaginavam que a empresa não usaria mais do que pequenos utensílios para instalação dos canos. Foram, contudo, surpreendidos com máquinas de grande porte nos seus quintais para instalação de canos e a abertura de cortes no solo, muitas vezes de 30 a 50 metros, para instalação e passagem dos dutos. Alguns proprietários adoeceram ao perceberem os estragos realizados em suas pequenas glebas de terras. Algumas foram reviradas de ponta-cabeça e houve grande revolta dos pequenos produtores que não tinham sido avisados dos efeitos perversos que a instalação do tal “cano” causaria a sua propriedade.
“Os tremores (vibrações) ocorrem sempre que o mineroduto encontra-se em funcionamento e continuam frequentes até a presente data. Além da vibração, a comunidade da Cabeceira do Turco é impactada com um barulho também produzido pelo mineroduto” |
IHU On-Line - Com que frequência ocorrem tremores em Conceição do Mato Dentro por causa dos minerodutos?
Patrícia Generoso - Os tremores (vibrações) ocorrem sempre que o mineroduto encontra-se em funcionamento e continuam frequentes até a presente data. Além da vibração, a comunidade da Cabeceira do Turco é impactada com um barulho também produzido pelo mineroduto.
A empresa já ofereceu aluguel social para quatro famílias em razão de estarem mais próximas dos tubos do mineroduto e convivendo com as vibrações mais intensas. Além disso, a nascente que abastecia estas famílias foi extinta, uma vez que a água foi drenada com as obras de construção do mineroduto. Apenas uma família aceitou o aluguel social, embora não tenha sido possível transferir suas criações para o local proposto pela empresa.
As demais famílias não aceitaram o aluguel social uma vez que a medida proposta pela empresa era em caráter provisório e não previa a possibilidade de transferência dos animais e tampouco permitia a continuidade da produtividade. Várias famílias tiveram suas casas avariadas por rachaduras e trincas causadas pelas vibrações do mineroduto. Há relato de vazamento do mineroduto que provocou mortandade de peixes em razão da utilização de produtos adstringentes para o transporte de minério. No caso da mortandade dos peixes, a atuação dos órgãos ambientais foi vergonhosa, tal a morosidade em se fazer os registros e a coleta de amostras de água e sedimentos que poderiam detectar os responsáveis, por todos conhecidos na região.
IHU On-Line - Existem projetos de instalação de outros minerodutos em Minas Gerais? É possível estimar quantos são e qual a atual situação dos projetos desses minerodutos?
Gabriel Ribeiro - Estados como Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia têm autorizado a implantação de labirínticas infraestruturas de extração e exportação de minério de ferro, constituídas de lavras a céu aberto, sistema de dutos ou ferrovias para escoamento e terminais portuários, multiplicando a quantidade de instalações de alto impacto local e translocal. Enquanto cada cava projetada ou plano de lavra objetiva uma produção de cerca de 25 milhões de toneladas/ano (Mtpa), valores muito acima da média histórica por empreendimento, os minerodutos visam acelerar o processo de transferência do patrimônio mineral do Sudeste e do Nordeste do Brasil para países mais industrializados. Se não bastasse a perda e transposição de água das regiões mineradas, a lógica perversa deste modo de exploração e comércio ameaça transformar o litoral de estados como Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia em grandes aparatos de armazenamento e urbanização industrial – com graves consequências nas áreas de segurança pública, fluxos viários, especulação e disputas imobiliárias e impactos socioambientais, culturais e paisagísticos.
Se esta tendência for mantida, a zona portuária brasileira será drasticamente alargada. Assim, os impactos modificarão os meios físico, biótico e socioeconômico, com alteração da paisagem, retirada de vegetação, supressão de cursos d’água, nascentes e propriedades rurais, caracterizando uma maior amplitude dos efeitos de sua instalação e operação.
O mapa abaixo, elaborado pelo GESTA-UFMG, ilustra a abertura de procedimento administrativo para licenciamento de cinco empreendimentos desta natureza, sinalizando o surgimento de uma nova fronteira minerária nas regiões Sudeste e Sul do Nordeste.
Mapa cedido pelos entrevistados |
No momento presente, dois complexos minerários com uso de minerodutos estão em funcionamento: o primeiro é o projeto consorciado das multinacionais Vale e BHP Billiton, por meio da Samarco, que explora duas jazidas (Germano e Alegria) nas cidades de Ouro Preto e Mariana, Quadrilátero Ferrífero, berço do primeiro grande rush da mineração no mundo. Como se sabe, as atividades da Samarco estão embargadas após o recente desastre da barragem Fundão, no subdistrito de Bento Rodrigues. Os minerodutos da Samarco levam a produção até Anchieta, no sul do Espírito Santo, onde está instalado o Porto de Ubu e usinas pelotizadoras. Com 396 km de extensão, os três minerodutos da Samarco cortam ao todo 25 municípios mineiros e capixabas. Eles são alimentados pelas baterias de poços subterrâneos da Samarco e Vale e por corpos de água superficiais. Nos últimos anos, a Samarco compensou a redução da vazão de córregos e ribeirões da região pelo aumento da captação de águas subterrâneas e, para instalar o terceiro mineroduto, obteve outorga para captar água de qualidade em um município vizinho.
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“Se esta tendência for mantida, a zona portuária brasileira será drasticamente alargada” |
O segundo empreendimento em operação, o projeto Minas-Rio – da corporação Anglo American –, é propagandeado como responsável pela criação do “maior mineroduto do mundo”. Há um ano em atividade, o Minas-Rio pretende explorar uma cava de 12 km a céu aberto ao longo da Serra da Ferrugem – nos municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, no Médio-Espinhaço mineiro e no trecho alto da bacia do rio Santo Antônio (a sub-bacia de número 3 do rio Doce em Minas Gerais). Adquirido por uma operação financeira iniciada pela MMX, o projeto Minas-Rio é composto pelo mineroduto de 525 km, que percorre 32 municípios mineiros e fluminenses até o Porto de Açu, em São João da Barra, norte do Rio de Janeiro. O mineroduto é hoje administrado pela Prumo, controlada pela Anglo American e o fundo de investimentos EIG, que adquiriu a parte da LLX/EBX nesta linha.
O negócio da MMX-Anglo American demandou forte esquema político para sua aprovação, acompanhada de grande especulação fundiária e conflitos sociais no período da alta do minério de ferro, e expectativas de revenda do negócio para outros interessados no momento de baixa atual. Tornou-se um case de insustentabilidade social e ambiental, documentada em vários estudos e denúncias trazidas a público. Revelou a fragilidade do neoextrativismo e, juntamente com conflitos causados por outros projetos minerários em Minas Gerais, tem motivado articulações de mineradoras, autoridades públicas e bancas de advogados interessados em desconstruir a legislação mineral e ambiental mineira e brasileira.
Apoiados no precedente formado, projetos de complexos de mineração das holdings Votorantim, Ferrous Resources e Manabi S.A. já pleitearam licenças para a implantação de novos minerodutos.
O Projeto Vale do Rio Pardo - PVRP, da Sul Americana de Metais – SAM, grupo Votorantim, pretende ligar a região montanhosa e semiárida de Grão Mogol, cadeia do Espinhaço no norte de Minas Gerais, até a costa de Ilhéus, utilizando-se do estoque hídrico armazenado na represa da Usina Hidrelétrica - UHE de Irapé, controverso projeto implantado no Vale do Jequitinhonha. Caso seja licenciado, o mineroduto terá 482 km seccionando o Norte de Minas e o Centro-Sul baiano em 21 municipalidades.
Localizada na região do Alto Rio Paraopeba, ao sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Congonhas tem na mineração de ferro sua principal atividade. Mesmo o município contando com extensa malha ferroviária controlada pela MRS Logística, empresas como a Ferrous Resources do Brasil tentam escapar dos valores de fretes cobrados, mediante a construção de estruturas próprias para transportar sua carga. O projeto de mineroduto da Ferrous prevê a construção de um duto de 400 km até Presidente Kennedy-ES. Contudo, a administração de Paula Cândido-MG e Viçosa-MG vêm incentivando outros 20 municípios atingidos a iniciarem um movimento de resistência ao empreendimento, buscando maiores adesões à “Campanha Pelas Águas e Contra o Mineroduto da Ferrous”, organizada por núcleo de pesquisa da Universidade Federal de Viçosa - UFV. Por enquanto, a opção pelo modal dutoviário está em suspenso pela companhia.
O terceiro complexo minerário seria operado pela Manabi ou MLog, em área próxima à já afetada pelo projeto Minas-Rio, na mesma sub-bacia do Rio Santo Antônio, palco de empreendimentos e projetos hidrelétricos, e na contravertente das minas da Vale S.A. em Itabira. O mineroduto proposto pela Manabi atravessaria a bacia hidrográfica do rio Doce, inclusive áreas de reivindicação da etnia indígena Krenak e comunidades pomeranas. Conflitos entre pequenos proprietários e a empresa se verificaram em parte dos 512 km projetados entre Morro do Pilar-MG a Linhares-ES, que compreende 23 municípios mineiros e capixabas. Após a obtenção da licença prévia da mina, no final do governo do PSDB-PP em Minas Gerais, a Manabi praticamente desapareceu de Morro do Pilar. Segundo as informações que circularam em outubro de 2015, a reestruturação administrativa e acionária da empresa estaria focando no projeto da instalação do complexo portuário em Linhares.
Gustavo Gazzinelli - No auge da crise hídrica no início de 2014, o Instituto Brasileiro de Mineração - Ibram tentou rebater as manifestações da sociedade civil que criticavam o emprego de minerodutos em Minas Gerais. Segundo gráfico publicado pela entidade, Minas Gerais seria responsável pela produção de 280 dos 400 milhões de toneladas de minério de ferro produzidos no país. Desse total, informou o Ibram, apenas 25 milhões de toneladas eram transportadas por minerodutos, o que representaria 8% da produção do Estado. O Ibram também argumentou “que os minerodutos em operação em Minas Gerais não utilizam os mesmos recursos hídricos destinados ao abastecimento urbano da Região Metropolitana da capital mineira. Simplesmente porque os minerodutos não estão localizados nas bacias dos rios Velhas e Paraopeba, os principais sistemas de abastecimento daquela região. As captações dos minerodutos ocorrem na bacia hidrográfica do rio Doce”. Como é frequente, o Ibram confunde localização em bacia hidrográfica com potencialidade de uso da água pela região metropolitana que está a cerca de 50 km dos pontos de captação de água para os minerodutos da Samarco. Mas, agora, depois do rompimento da barragem sobre o rio Doce, é de se perguntar se sua recuperação prescindirá da água retirada da bacia hidrográfica pelos minerodutos da Vale/BHP, Anglo American ou Manabi/MLog.
“Depois do rompimento da barragem sobre o rio Doce, é de se perguntar se sua recuperação prescindirá da água retirada da bacia hidrográfica pelos minerodutos da Vale/BHP, Anglo American ou Manabi/MLog” |
Gabriel Ribeiro - As estatísticas do Ibram seriam peças de ficção, caso realizadas as intenções dos projetos neoextrativistas, que propõem o modal mineroduto como meio de transportar sua produção. Caso os projetos mencionados consigam obter as licenças ambientais dos minerodutos, haveria uma mudança significativa nestes percentuais e um volume absurdo de água transposta para outros estados. Logo começariam a dizer que a “vocação” é transportar por minerodutos.
IHU On-Line - O que é o Projeto Minas-Rio? Como se deu esse projeto?
Patrícia Genoroso - O Minas-Rio é um projeto de mineração no formato do tripé: mina, mineroduto e porto. Foi concebido pelo Sr. Eike Batista através da então MMX, vendida posteriormente para a Anglo American. As estruturas do empreendimento foram licenciadas por órgãos ambientais distintos e tiveram os impactos ambientais e sociais analisados de forma fragmentada, o que impediu a avaliação sinérgica de todos os impactos.
As principais estruturas são a mina de lavra a céu aberto de minério de ferro em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, que deverá alcançar 55 Mtpa (conforme licenciado pela Unidade Regional Jequitinhonha do Conselho de Política Ambiental de MG – URC Copam Jequitinhonha) – a Anglo American fala em chegar a 90 Mtpa; o mineroduto de 529 km que passa por 25 municípios mineiros e sete fluminenses, captando 2.500 m³/h (licenciado pelo Ibama); e o porto Açu, projetado para também funcionar como distrito industrial (licenciado pelo Instituto Estadual do Ambiente/Inea-RJ).
Desde o início, o Estudo de Impacto Ambiental - EIA foi apresentado sem identificar os atingidos pelo projeto. Desde o licenciamento prévio e mesmo após a concessão da licença de operação, no final de 2014, a lista de atingidos foi e continua a ser objeto de controvérsias e de condicionantes que são precariamente cumpridas, em muitos casos. Para se ter uma ideia, o tópico “Área considerada a jusante da barragem de rejeitos” do estudo de Ruptura Hipotética da Barragem, apresentado pela Anglo American (então Anglo Ferrous Brazil) e pela empresa de consultoria Pimenta de Ávila, omitiu, nas projeções que fez, a comunidade da Água Quente habitada por várias famílias e aquela mais próxima da barragem. Essa omissão pode ter trazido implicações formais na avaliação da periculosidade da barragem e quanto à necessidade de reassentamento das famílias primeira e mais gravemente atingidas por eventual ruptura.
A desapropriação de terras para construção do Porto e do Distrito Industrial do Açu também foi realizada por meio de decreto do governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro. Grande extensão de área foi desapropriada em São João da Barra, distrito de Açu, por meio de um processo violento que utilizou liminares concedidas pela justiça para expulsar os pequenos proprietários de suas terras. Até fevereiro de 2015, o porto funcionava com apenas 10% de sua área ocupada (Estadão).
O projeto contou com o financiamento do BNDES para obras do mineroduto e com decreto, de 5 de março de 2008, do então governador Aécio Neves, declarando a utilidade pública das terras para passagem do mineroduto, antes mesmo da licença prévia da mina. Como se vê, a dinâmica do licenciamento fragmentado e atropelado revela ser o mineroduto parte da engrenagem para acelerar a obtenção de resultados financeiros ou especulativos, que na proporção inversa da poupança de investimentos e cuidados resultaram na apuração de impactos e violações de direitos socioambientais e na insegurança ou intranquilidade pessoal e jurídica das comunidades atingidas. Em outras palavras, difícil separar de forma rígida o processo do licenciamento do mineroduto, daqueles relativos à mina e ao porto.
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“Com a construção do mineroduto Minas-Rio as comunidades rurais passaram a ser monitoradas pela mineradora Anglo American” |
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Patrícia Genoroso - Com a construção do mineroduto Minas-Rio as comunidades rurais passaram a ser monitoradas pela mineradora Anglo American, que, além de fazer uso de olheiros, também instalou câmaras de monitoramento nas comunidades.
Em julho de 2015, as comunidades do Turco, Água Quente, Cabeceira do Turco e Sapo fizeram manifestação na rodovia MG-10, uma vez que as promessas de solução das interrupções de abastecimento de água e o problema das vibrações e rachaduras nas casas não haviam sido solucionados. Na ocasião, a empresa utilizou de expediente que se tornou corriqueiro: marginalizou os que faziam a manifestação e propôs uma ação de interdito proibitório, contra três membros da comunidade do Turco – Elias, Denis e Ricardo. A ação de interdito proibitório, com pedido de urgente liminar, tinha ainda por objetivo incluir, no polo passivo, “DEMAIS TURBADORES/INVASORES que porventura venham a ser encontrados e identificados na área [rodovia e área de acesso à mina] quando do cumprimento do mandado de citação e do interdito” (parte extraída da petição inicial).
Portanto, a ação, além de buscar a criminalização de pessoas “certas e determinadas (Elias, Denis e Ricardo)”, objetivou o uso da força contra qualquer outra que fosse identificada na companhia dos mesmos. O juiz indeferiu, porém, a liminar, observando que a atuação do Judiciário se justificaria, somente, “caso o movimento em questão tomasse proporções consideráveis, escapando do controle do Poder Público”. Na visão dele, não seria este o caso da “realização de movimento pacífico com aproximadamente 20 manifestantes”.
A obra da Anglo American foi alvo de fiscalização do DRT e em 2013 foram resgatados em Conceição do Mato Dentro 172 trabalhadores em condições análogas às de escravo, vítimas do tráfico de pessoas e submetidas a condições degradantes.
Sobre esta última informação, sugerimos acessar: Fiscalização volta a flagrar escravidão em megaobra da Anglo American e Imigrantes haitianos são escravizados no Brasil.
Por Patricia Fachin
Nota:
[1] O exemplo mais contundente do assédio na escandalosa reunião, além da presença ostensiva de forças policiais, foi o sofrido por um funcionário do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), ao receber, por meio de um representante do SindiExtra (o sindicato estadual das mineradoras), um telefone celular, com seu chefe na outra ponta da linha. De acordo com a ata da 29ª reunião ordinária da URC-Copam Jequitinhonha (11/12/2008, Diamantina/MG) – linha 199 e seguintes: “Paulo Sérgio Costa Almeida – DNPM: Inicia sua apresentação conceituando a função da licença prévia. Em seguida, relata suas considerações quanto ao empreendimento, como a barragem de rejeito, que será de alta intensidade devida a ruptura de conexões e fragmentos florestais existentes e sugere uma avaliação da disposição do rejeito em forma de pasta. Quanto à hidrografia, hidrogeologia, meio socioeconômico, saúde, educação e emprego, diz que estas questões mencionadas constam no parecer técnico de forma superficial e pouco aprofundada e levanta uma série de questionamentos a respeito. Conclui que se trata de um projeto de grande porte em uma região de alta vulnerabilidade ambiental e social, potencial gerador de grandes conflitos. Portanto, os estudos ora apresentados possuem lacunas, não oferecendo a segurança necessária para o julgamento da licença solicitada. Relata assim, que tais deficiências deverão ser previamente sanadas antes da concessão da licença prévia”.
Mas após o tal telefonema (linha 356 da ata) “Paulo Sérgio Costa Almeida - DNPM: Vota favorável ao parecer único do SISEMA e alega que não se encontra devidamente esclarecido, mas que está seguindo orientações do seu órgão”. (Nota do entrevistado)
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Minerodutos: um cheque em branco para o desenvolvimento do país. Entrevista especial com Gustavo Gazzinelli, Gabriel Ribeiro e Patrícia Generoso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU