02 Mai 2014
“O Brasil tem uma epidemia de hipertensão, e como o consumo de sódio é um dos fatores de risco, é necessário diminuí-lo para enfrentá-la”, frisa a nutricionista.
O acordo voluntário para reduzir a quantidade de sódio dos produtos industrializados, realizado entre o Ministério da Saúde e associações que representam as empresas da indústria alimentícia no Brasil, “não parece ser eficiente para ter um impacto na saúde, que é o grande objetivo do contrato”, avalia a Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec, responsável pela pesquisa que analisou a rotulagem de 95 produtos a partir de nove categorias alimentícias.
De acordo com Ana Paula, as metas para redução gradativa da quantidade de sódio nos produtos foram estipuladas não segundo a média de sódio encontrada em cada categoria alimentícia, mas em relação aos índices mais elevados de sódio encontrados em cada categoria. Esse cálculo, acentua, possibilitou “um favorecimento para indústria porque, primeiro, o acordo é voluntário, então as empresas podem ou não aderir a ele e, segundo, porque o estabelecimento das metas, tal como foi feito, fez com que grande parte dos produtos já estivesse adequada ao acordo”. E acrescenta: “A proposta de reduzir o consumo do sódio não significa a implicação direta na redução do sódio dos produtos”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ela assinala que a “definição das metas não é muito clara”, porque o Idec não teve acesso aos estudos para identificar quais produtos foram analisados e em que dados o Ministério da Saúde se baseou para estipulá-las. “A maioria desses produtos, mesmo com a estipulação das metas, permanece com altas quantidades de sódio”, informa. E dispara: “Os acordos voluntários não parecem trazer os benefícios em relação à redução de sódio para melhorar a saúde da população brasileira. (...) Não basta ter apenas uma meta mais rigorosa, mas é preciso uma normativa para que as empresas sejam obrigadas a cumprir uma quantidade mínima de sódio nos alimentos”.
Alimentação e nutrição é o tema do XV Simpósio Internacional IHU “Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”, de 05 a 08 de maio de 2014.
Ana Paula Bortoletto é graduada em Nutrição pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutora em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é pesquisadora em alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde - NUPENS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que consiste o acordo firmado entre a indústria alimentícia e o Ministério da Saúde com o objetivo de diminuir gradativamente o uso de sódio nos produtos?
Ana Paula Bortoletto – Esse acordo é voluntário e realizado entre o Ministério da Saúde e várias associações que representam os setores da indústria de alimento no Brasil. Ele tem o objetivo de estabelecer metas de redução do sódio para as diversas categorias de alimentos processados. O primeiro acordo foi aprovado em 2010 e, desde então, o Ministério da Saúde vem publicando metas para categorias de alimentos diferentes.
A intensão do acordo é reduzir o consumo de sódio da população brasileira e faz parte de uma estratégia de redução de sódio que não inclui apenas esses acordos, mas outras ações do Ministério da Saúde, como campanhas de educação da população, a questão da rotulagem nos produtos e outras ações que fazem parte dessa estratégia.
No Brasil e no resto do mundo, o excessivo consumo de sódio é um problema e está associado ao surgimento de doenças cardiovasculares e hipertensão. Hoje, o Brasil tem uma epidemia dessas doenças, e como o consumo de sódio é um dos fatores de risco, é necessário diminuí-lo para enfrentá-la.
IHU On-Line – Por ser um acordo voluntário, como a indústria recebeu essa proposta?
Ana Paula Bortoletto – A indústria alega que já estava reduzindo, gradativamente, a quantidade de sódio dos produtos. De todo modo, da maneira como as metas foram estabelecidas, houve um favorecimento para a indústria, porque, primeiro, o acordo é voluntário, então as empresas podem ou não aderir a ele e, segundo, porque o estabelecimento das metas, tal como foi feito, fez com que grande parte dos produtos já estivesse adequada ao acordo. A proposta de reduzir o consumo do sódio não significa a implicação direta na redução do sódio dos produtos.
IHU On-Line - Qual a quantidade de sódio estipulada pela meta do acordo?
Ana Paula Bortoletto – Para cada uma das nove categorias, há uma meta estipulada. Esse cálculo foi feito a partir de uma análise do mercado, com amostragem de várias categorias, para mostrar qual é a média de sódio presente nos produtos. Por exemplo, no caso do macarrão instantâneo, foram analisadas algumas marcas e verificou-se que a média do mercado era um valor “x”, o valor mais alto era “a” e o mais baixo era “b”. Dessa maneira, é possível identificar a variabilidade do teor de sódio dos produtos.
Entretanto, a meta da quantidade de sódio foi estabelecida de acordo com os valores mais altos presentes nos produtos disponíveis no mercado, porque a intenção é de que somente os produtos com valores mais altos tenham as taxas de sódio reduzidas. Assim, a definição das metas não é muito clara, porque não tivemos acesso aos estudos para saber quais foram os produtos analisados e quais são os dados que basearam a elaboração das metas, e isso é um problema. O acordo foi pactuado diretamente com as indústrias e o Ministério da Saúde e, portanto, as metas apenas irão servir para que os valores mais altos de sódio dos produtos sejam reduzidos.
IHU On-Line – É possível saber qual é a variabilidade de sódio dos alimentos?
“Se reduzirmos apenas um pouco o valor do sódio dos alimentos, não terá um impacto significativo nos casos de hipertensão no país”
Ana Paula Bortoletto – Temos algumas informações divulgadas pela Anvisa desde 2010, mas ela não avaliou todas as categorias de alimentos, e a amostragem desses alimentos é muito pequena. Mas tenho um exemplo para ilustrar: em 29 marcas de batatas fritas analisadas, os teores de sódio variavam de um mínimo de 126 miligramas até 716 miligramas a cada 100 gramas. A meta estabelecida para 2012, a partir desses dados, é de 650 miligramas, ou seja, está bem próximo do valor máximo encontrado no relatório da Anvisa. Para 2016, a redução é para 529 miligramas. Diante disso, esse acordo não nos parece eficiente para ter um impacto na saúde, que é o grande objetivo do contrato. Se reduzirmos apenas um pouco o valor do sódio dos alimentos, não terá um impacto significativo nos casos de hipertensão no país.
Na última pesquisa realizada pelo Idec, analisamos as categorias estabelecidas no final de 2013 e buscamos avaliar os rótulos de 95 produtos, que são os embutidos, como mortadelas, salsichas, presuntos, hambúrguer, empanados, queijo mozzarella e sopa pronta. Desses produtos, a maior parte deles já possui um valor de sódio considerado alto pela avaliação que fizemos pelo Semáforo Nutricional. As linguiças têm em média mais de mil miligramas de sódio a cada 100 gramas, a salsicha tem 899 miligramas de sódio por 100 gramas, as sopas instantâneas tiveram 328 miligramas. Segundo o parâmetro do Semáforo Nutricional — que é uma proposta de avaliação dos valores dos nutrientes de acordo com a quantidade —, acima de 600 miligramas de sódio por 100 gramas é considerado um valor alto de sódio, e a rotulagem dos produtos tem a cor vermelha para identificar. A maioria desses produtos, mesmo com a estipulação das metas, permanece com altas quantidades de sódio.
IHU On-Line - Qual é a quantidade de sódio recomendada para ser ingerida diariamente e, em média, quanto os brasileiros consomem?
Ana Paula Bortoletto – A pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, realizada pelo IBGE, mostra qual é o consumo de sódio no Brasil. O consumo recomendado pela Organização Mundial da Saúde – OMS é de 2 mil miligramas por dia, ou seja, dois gramas. Mas o brasileiro consome aproximadamente cinco gramas de sódio, mais que o dobro do recomendado.
IHU On-Line – Por que pizzas semiprontas, lasanhas congeladas e salames foram retirados do acordo para reduzir a quantidade de sódio?
Ana Paula Bortoletto – Segundo investigamos com o Ministério da Saúde, alegou-se que as lasanhas e as pizzas já terão uma redução indireta do sódio por conta da redução do teor de sódio dos ingredientes, como é o caso do queijo. Essa justificativa não é suficiente, porque lasanhas e pizzas prontas têm uma quantidade de sódio muito alta e a redução da quantidade de sódio do queijo não irá resolver o problema do alto teor de sódio nesses produtos.
No caso do salame, uma das empresas alegou uma dificuldade tecnológica para reduzir o sódio, porque ele tem função não só de dar sabor aos alimentos, mas de conservá-los por mais tempo. Não temos como garantir se, de fato, é essa a razão.
IHU On-Line - Pode comentar sobre a pesquisa realizada pelo Idec, a qual analisou o rótulo de 95 produtos de nove categorias?
“O brasileiro consome aproximadamente cinco gramas de sódio, mais que o dobro do recomendado”
Ana Paula Bortoletto – O Idec fez essa pesquisa para verificar como os produtos que fazem parte deste último acordo voluntário estão em relação ao sódio. Nas avaliações anteriores, verificamos que muitos dos produtos já estavam dentro das metas para a redução. Os produtos analisados recentemente fazem parte do acordo de 2013, que têm meta de redução da quantidade de sódio para 2015 e 2017. As categorias são queijo mozzarella, linguiça, salsicha, hambúrguer, empanados, mortadela, presuntos, requeijão e sopas instantâneas individuais. Dessas categorias, a maioria está dentro das metas estipuladas. No caso da salsicha, das oito analisadas, todas estão dentro das metas e não precisaram se adequar aos acordos. No caso dos hambúrgueres e empanados, dos oito analisados, seis já estão dentro das metas estabelecidas. No caso do requeijão, analisamos 24 marcas, das quais 16 estão dentro das metas para 2015 e 14 para as metas de 2017. Ou seja, somente uma pequena parcela de produtos precisará reduzir as quantidades de sódio. Uma categoria que terá uma redução mais significativa será a mortadela, já que nenhum dos produtos avaliados está de acordo com as metas, e também o queijo mozzarella, porque metade dos avaliados também precisa reduzir a quantidade de sódio.
Observamos, com a pesquisa, que essas são categorias de produtos que possuem uma quantidade de sódio alta e que a grande maioria está dentro da meta, ou seja, os acordos voluntários não parecem trazer os benefícios em relação à redução de sódio para melhorar a saúde da população brasileira.
IHU On-Line – A meta estipulada pelo acordo é equivocada?
Ana Paula Bortoletto – A maneira de calcular a meta tem problemas. A questão é que, se estipularem uma meta mais rigorosa e o acordo continuar sendo voluntário, a empresa poderá não querer aderir a ele e não haverá punição. Não basta ter apenas uma meta mais rigorosa, é preciso uma normativa para que as empresas sejam obrigadas a cumprir uma quantidade mínima de sódio nos alimentos.
Existem alguns estudos na Argentina que mostram a redução gradativa do valor de sódio do pão de padaria e a população nem percebeu, porque se usa tanto sódio que nosso paladar nem percebe a redução. Até 20% da redução do valor do sódio é imperceptível ao paladar.
Seria importante ter uma meta rigorosa em relação a essa questão, porque aí todas as empresas teriam de se adequar. Não temos a informação de quais empresas participam do acordo e quais não. As associações dizem que representam a maior parte do mercado, mas não temos essa informação para saber se as empresas que se comprometeram estão cumprindo o acordo. Esse processo de construção do acordo deveria ser melhorado.
IHU On-Line – Qual seria a meta ideal para diminuir a quantidade de sódio dos produtos?
Ana Paula Bortoletto – Seria necessário reduzir 20% do valor médio do mercado. Essa é uma sugestão razoável. A redução vai depender da categoria dos alimentos, porque, de acordo com a característica de cada produto, alguns permitem uma redução maior da quantidade de sódio e, outros, menor.
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Acordo para redução de sódio nos produtos industrializados não é eficiente. Entrevista especial com Ana Paula Bortoletto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU