21 Agosto 2012
“Até hoje nós vemos os trópicos através do espelho do Norte. Nós conhecemos a Índia pelo que é publicado na imprensa europeia, ou seja, pelas percepções culturais dos europeus”, aponta o médico.
Confira a entrevista.
Para compreender a crescente proliferação das doenças tropicais, é fundamental “estudar a saúde nas favelas e nas grandes cidades tropicais. Esse é um passo importante a ser dado para compreendermos esse problema, que é gravíssimo, mas que ainda não temos conhecimento da sua dimensão”, assinala o médico e professor da Universidade Federal do Piauí, Carlos Costa à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone. Segundo ele, embora ainda não seja possível identificar o que “está por trás dessa proliferação das doenças tropicais”, sabe-se “que esse fenômeno está de certo modo relacionado com a superpopulação”.
Costa enfatiza que as doenças tropicais estão diretamente relacionadas com as más condições de saneamento básico nas comunidades e com a precarização da vida urbana. Em sua avaliação, a globalização econômica não favoreceu “uma globalização social, porque o capital procura ambientes em que exista mão de obra mais barata para se desenvolver, e não considera as condições de vida das pessoas e dos trabalhadores. Como o Estado não taxa as empresas, ele não arrecada. Nesse processo de globalização, a arrecadação é restrita à indústria, que oferece emprego, mas o Estado não tem condições de proteger as populações. Essa é a raiz do 'enfavelamento' e também, de certo modo, da proliferação de algumas doenças”.
Também em sua avaliação, Costa diz que a erradicação das doenças perpassa pelo desafio de os países tropicais superarem a dependência das indústrias farmacêuticas dos países do Norte, que têm uma ótica “assistencialista”, e tampouco se preocupam em “erradicar o problema principal, que é a pobreza”. “Está na hora de reverter esse quadro. Brasil, Índia, Austrália, Arábia Saudita e México já têm riquezas suficientes para fazer um grande consórcio de pesquisa voltado para essas doenças e liderar a pesquisa da malária, da leishmaniose, da dengue”, salienta.
Carlos Henrique Nery Costa é médico, formado pela Universidade de Brasília – UnB. É mestre em Medicina Tropical e doutor em Saúde Pública Tropical pela Harvard University. É professor da Universidade Federal do Piauí, médico do Instituto de Medicina Tropical Natan Portella, e Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que são as doenças tropicais e quais estão em maior evidência no país?
Carlos Henrique Nery Costa (foto) – As doenças tropicais têm uma definição bastante ampla, tratando-se de doenças que ocorrem exclusivamente ou, com mais frequência, nos trópicos ou onde não foram devidamente controladas. Entre as doenças tropicais mais importantes hoje em dia, destaca-se a Aids, surgida na África. Entre as doenças tropicais existem outras muito sérias como a tuberculose, ligada às condições precárias nas grandes cidades e nas favelas. Por outro lado, ao contrário da Aids e da tuberculose, a malária é uma doença rural, transmitida por mosquitos, e hoje está restrita aos trópicos. Essa é uma doença gravíssima que, na África, por exemplo, ainda mata milhares de crianças. Outra importante doença tropical reemergente nos trópicos é o cólera, uma doença que se desenvolve onde não existe saneamento básico adequado ou onde a vulnerabilidade das pessoas é muito grande. As principais epidemias por conta dessa doença ocorrem no Haiti, na Índia e na África, ao sul do Saara. Mais de 10 mil pessoas morreram de cólera nos últimos dois anos no Haiti. Existem outras doenças, como a de Chagas, que é uma doença brasileira, a febre amarela, a leishmaniose, a verminose, que proliferam entre populações em situação de vulnerabilidade, geralmente aquelas abandonadas pelo Estado.
IHU On-Line – Alguns pesquisadores evidenciam que o mundo vive uma transição epidemiológica de muitas doenças que estão deixando as áreas rurais e se urbanizando. Em que consiste essa transição e por quais motivos ela está acontecendo?
Carlos Henrique Nery Costa – Entre o final do século XIX e início do século XX, quando a Inglaterra era uma potencia colonial, além da independência dos países da África e da Ásia, houve uma grande diáspora rural, o que aconteceu mais cedo nos países desenvolvidos, depois na Índia, no sudeste da Ásia, na China e, posteriormente, de forma exuberante, na África. Só que, além do processo de atração das migrações, como acesso a emprego, outros fenômenos acompanharam esse processo de urbanização: nos anos 1980 os países em desenvolvimento tiveram um crédito provisório e depois tiveram uma cobrança monetária, que deu origem, por sua vez, à crise no Terceiro Mundo. Posteriormente, o que arruinou a África foi a revolução verde, iniciada pela descoberta dos fertilizantes químicos. Mas mais importante do que isso foi o fato de os países desenvolvidos começarem a subsidiar fortemente a agricultura, porque dispunham de uma produção tecnológica avançada. A partir do momento em que os produtos agrícolas começaram a entrar no terceiro mundo, a agricultura de subsistência ficou mais cara, as pessoas passaram a perder qualidade de vida e deram início a um processo de migração para as cidades. Com esse processo migratório, o cenário das doenças tropicais mudou da zona rural empobrecida para as cidades, e surgiram novas doenças, como Aids, tuberculose, cólera, malária urbana e leptospirose. Pode-se dizer que houve uma série de fenômenos de natureza econômica, geopolítica, social e cultural que levaram as populações para as cidades. Ocorre que esse processo migratório gerou um excedente populacional, que não encontrou local de habitação adequada. Evidentemente, as pessoas mais pobres foram abandonadas pelo Estado e passaram a se aglomerar em favelas. Para se ter ideia, ainda hoje de 10 a 15% da população brasileira vive em favelas. Na África e na Ásia, esse percentual deve ser ainda maior. Esse é um cenário novo que os países dos trópicos têm de encarar.
IHU On-Line – Por que doenças como a febre amarela, que já se considerava erradicada, encontram terreno fértil para se desenvolverem nas favelas e grandes centros urbanos?
Carlos Henrique Nery Costa – Alguns fenômenos nós ainda não compreendemos. Entre o ressurgimento de novas doenças tropicais, o mais surpreendente é a urbanização do calazar. Essa doença entrou no Brasil na década de 1980, nas cidades de Teresina e São Luís, onde surgiram epidemias que se espalharam para o resto do país. 90% dos casos de calazar no Brasil são oriundos da zona rural do Nordeste. A doença também se espalhou para cidades do Sudeste e Centro-Oeste, como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, São Borja (Rio Grande do Sul) e parece que está chegando a Uruguaiana em breve, e possivelmente em Buenos Aires, também.
Ainda não sabemos o que está por trás dessa proliferação das doenças tropicais, mas sabemos que esse fenômeno está de certo modo relacionado com a superpopulação. Veja o caso das favelas: elas são habitadas por dezenas de pessoas que vivem em um mesmo ambiente. Então, doenças como tuberculose proliferam em ambientes em que as pessoas estão mais vulneráveis, onde não há saneamento básico. As doenças infecciosas também estão nesses lugares. Por exemplo, a leptospirose é uma doença que ocorre no mar, por causa da urina dos ratos, mas na época das chuvas, ela se espalha nas favelas.
IHU On-Line – Muitos pesquisadores enfatizam que, sem reduzir as desigualdades sociais, o Brasil não resolverá o problema das doenças tropicais. Que relações estabelece entre a proliferação de doenças e as más condições de saneamento básico? Em que medida as melhorias no saneamento também representam a prevenção destas doenças?
Carlos Henrique Nery Costa – É surpreendente como o Brasil não se interessa por questões fundamentais da vida social, como ainda não existem no país escolas públicas de turno integral, por exemplo. Por que o Estado ainda delega ao traficante a gestão das favelas, e por que não saneia esses ambientes? As populações que vivem nesses locais são completamente marginalizadas pelo Estado.
Por que razão o Estado não investe e não melhora as condições de saneamento, não sei. Realmente existe um excedente populacional, que a economia industrial não foi capaz de absorver. Não existe emprego para todos, e o Estado não é forte o suficiente para proteger a população e reverter esse quadro. Mas essa não é a realidade apenas do Brasil. Acontece também em Jacarta, na Indonésia, em Nairóbi, no Quênia, entre outras cidades.
Houve uma globalização econômica, mas não houve uma globalização social, porque o capital procura ambientes em que exista mão de obra mais barata para se desenvolver, e não considera as condições de vida das pessoas e dos trabalhadores. Como o Estado não taxa as empresas, ele não arrecada. Nesse processo de globalização, a arrecadação é restrita à indústria, que oferece emprego, mas o Estado não tem condições de proteger as populações. Essa é a raiz do “enfavelamento” e também, de certo modo, da proliferação de algumas doenças. O Brasil precisa investir em uma política voltada para a saúde na favela, que é um problema grave.
Além das doenças tropicais, a poluição das grandes cidades também tem gerado inúmeros problemas de saúde; os acidentes de motocicletas talvez sejam um dos problemas mais graves de saúde pública do Brasil hoje. A saúde não encara esse fato como problema de saúde pública; ela ainda delega esse caso ao trânsito, aos legisladores, aos engenheiros.
IHU On-Line – É possível diagnosticar em que estados brasileiros o saneamento básico enfrenta maiores desafios?
Carlos Henrique Nery Costa – Essa situação não está mapeada, mas sabe-se que as condições de saneamento básico são mais frágeis em regiões do Norte e Nordeste. Entretanto, nas favelas do Sul e do Centro-Oeste também inexiste saneamento, e doenças como tuberculose aparecem, porque há um ambiente tropical propício para elas se desenvolverem.
IHU On-Line – Como as doenças tropicais são abordadas no sistema de saúde brasileiro? Elas são negligenciadas?
Carlos Henrique Nery Costa – Existe um esforço para preveni-las, mas ainda são bastante negligenciadas. O conceito negligenciado surgiu nos anos 2000 a partir de uma publicação holandesa que denunciava a negligência da indústria farmacêutica com algumas doenças. As doenças negligenciadas são aquelas que ocorrem em pequenas quantidades, em países remotos, com pessoas pobres, que não participam ativamente do mercado de medicamentos. Depois, algumas pessoas começaram a falar de doenças tropicais para as populações negligenciadas, ou seja, para aproximadamente um bilhão de pessoas que vivem em situação muito precária. E, por fim, passou-se a mencionar as doenças que são pouco pesquisadas.
No Brasil, existe uma preocupação maior com duas doenças tropicais: a dengue e a leishmaniose, que é o calazar. Essas doenças continuam se expandindo e nós não temos perspectiva de controle. Estão providenciando vacinas para essas doenças, e talvez isso gere algum resultado, porque a solução tradicional, de educar as pessoas para a retirada do foco da dengue, por exemplo, não tem funcionado. O calazar é ainda pior, porque, além de matar mais pessoas por ano – entre 200 e 250 –, segue inexorável a despeito de qualquer medida de saúde pública. Matam-se os cães contaminados para tentar controlar a expansão da doença. Embora isso tenha sido eficaz, não foi capaz de erradicá-la.
Tem havido um esforço para erradicar as doenças tropicais, mas ele ainda é muito tímido, comparado com a China, por exemplo, que se livrou desse problema de saúde pública há 40 ou 50 anos. O Brasil continua sendo uma nação negligente com seu próprio povo; uma nação rica com o povo pobre. O investimento em saneamento, educação e outros benefícios sociais acabariam resultando na prevenção dessas doenças.
Os médicos estão razoavelmente treinados para lidar com as doenças tropicais, mas enfrentam outros problemas, como a fragilidade da terminalidade do SUS, que é a atenção médica. Como o Estado é fraco, não existe uma política de excelência, não existe uma política de integridade. Então, o que prolifera é a negligência do serviço público, que se manifesta através da fragilidade de diagnósticos, a realidade do tratamento etc.
IHU On-Line – E o fato do SUS ter uma política tímida de prevenção à saúde também contribui para a proliferação dessas doenças?
Carlos Henrique Nery Costa – Geralmente, a qualidade da vacinação está bem montada no Brasil, e a rede de vacinação funciona bem. Mas ainda faltam vacinas para doenças complexas, como malária, a doença de chagas, leishmaniose, dengue – para esta parece que terá em breve uma vacina. Se tivéssemos as vacinas, seria mais fácil intervir na área da saúde sem mexer nas condições sociais. As doenças que podem ser prevenidas com a vacinação estão controladas, como a varíola, a hepatite e a meningite.
IHU On-Line – É possível estimar qual o índice de mortalidade por conta das doenças tropicais?
Carlos Henrique Nery Costa – Depende da doença. Os índices de morte por causa da doença de chagas e da esquistossomose continuam altos. O índice de mortalidade por causa do calazar é de 5 a 10%, mesmo com o diagnóstico feito e a doença tratada. Não tenho ideia de quantas pessoas morrem, porque ninguém conhece de fato a realidade das favelas. A discussão que estamos promovendo das doenças tropicais voltada para as cidades ainda encontra muita resistência, porque quase todos os médicos são treinados a tratar doenças infecciosas e parasitárias. Os médicos não sabem lidar com outros fatores externos, como a violência que também gera problemas de saúde. Por isso é importante desenvolver um trabalho com as diversas especialidades médicas em conjunto com os urbanistas, sociólogos, arquitetos, antropólogos para colocarmos em discussão as doenças tropicais que predominam nas favelas. É isto o que estamos propondo para a Sociedade Brasileira para o Progresso e a Ciência – SBPC: estudar a saúde nas favelas e nas grandes cidades tropicais. Esse é um passo importante a ser dado para compreendermos esse problema, que é gravíssimo, mas que ainda não temos conhecimento da sua dimensão.
IHU On-Line – Como as doenças tropicais são abordas em outros países? Além do Brasil, onde mais podemos perceber a proliferação dessas doenças?
Carlos Henrique Nery Costa – A Aids é um exemplo de como as doenças tropicais se proliferaram. Os países desenvolvidos, de modo geral, reagem com muita tecnologia e conhecimento. Doenças como a de Chagas, que é recorrente em cidades do interior, migraram da América Latina para os EUA e a Espanha junto com os trabalhadores. Geralmente, a transmissão acontece através da doação de sangue contaminado. Como nesses países não existe a triagem para a doença de Chagas, porque ela é uma doença característica do Brasil, acaba-se criando um grande problema de saúde pública nos países devido à transmissão da doença. A tuberculose também voltou a crescer depois da Aids.
Os países ricos lidam com as doenças tropicais através da ação das indústrias farmacêuticas. A ótica deles é assistencialista, ou seja, não é uma ótica de erradicação do problema principal, que é a pobreza, situação que é causada pela política econômica internacional. Por isso eles não enxergam os problemas oriundo dessa situação econômica, não comentam e nem gostam de comentar.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios do Brasil para erradicar as doenças tropicais?
Carlos Henrique Nery Costa – O Brasil por ser, em minha opinião, o mais proeminente das nações tropicais, por ser a maior nação tropical, o quinto maior país do mundo e por ter um parque tecnológico razoavelmente desenvolvido, apesar das precariedades, tem condições de liderar a investigação e o combate das doenças tropicais no mundo. Até agora, todo o conhecimento a respeito das doenças tropicais é oriundo do Norte. As descobertas em relação aos tratamentos vêm dos países ricos, juntamente com a ótica deles, lógico, de consumir medicamentos.
Mas está na hora de reverter esse quadro. Brasil, Índia, Austrália, Arábia Saudita e México já têm riquezas suficientes para fazer um grande consórcio de pesquisa voltado para essas doenças, liderar a pesquisa da malária, da leishmaniose, da dengue. Esses países têm condições de estabelecer políticas que sejam realmente eficazes para os planos urbanos. O Brasil pode liderar as políticas para lidar com as favelas e criar novos mecanismos de combate à Aids. O país pode aparecer pela sua proeminência e unificar os trópicos dando uma unidade cultural e climática a eles. Essa reapropriação dos trópicos por tropicais é fundamental. Até hoje nós vemos os trópicos através do espelho do Norte. Nós conhecemos a Índia pelo que é publicado na imprensa europeia, ou seja, pelas percepções culturais dos europeus.
Um dos aspectos mais agravantes é não só a distância entre os centros produtores de ciência e tecnologia, mas principalmente a “inapropriedade” das criações biotecnológicas do Norte, que são aplicadas nos trópicos. Temos de priorizar os nossos problemas a partir da nossa ótica e tentar encontrar soluções adequadas para a nossa realidade. No reviver e renascer dos trópicos, a partir de uma conjunção de todos os trópicos, poderemos resolver vários problemas nas diversas áreas (saúde, agricultura, arquitetura etc.).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O desafio de superar as doenças tropicais. Entrevista especial com Carlos Henrique Nery Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU