24 Outubro 2009
“Acredito que o suposto flerte adolescente não é exatamente com a morte, mas com o sentido da vida. É isso que ele quer saber: colocar-se a questão do suicídio é apenas a versão terrorista para perguntar aos seus adultos sobre uma boa razão para viver. Ocorre que, na adolescência, muitas questões sobre a vida, seu valor e para o que mesmo vale a pena viver, são colocadas de maneira dura e não encontram nem respostas, nem sequer adultos querendo falar disso”. A reflexão é do psicanalista Mário Corso, em entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Para ele, “a morbidez é só aparência, ou algum que outro adolescente que queira aparecer para dizer que não tem medo de nada, afinal, fica caminhando na borda do precipício. Essa coragem também faz parte desse drama, na verdade, coragem mesmo precisamos para viver, não para ir embora, isso é fácil”.
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA, Mário Corso é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Escreveu os livros Monstruário (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2002) e Fadas no divã (Porto Alegre: Artmed, 2006), este em parceria com Diana Lichtenstein Corso.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como entender o fascínio que alguns jovens têm pela morte? Que aspecto da morte pode fascinar um ser no auge da vida? É possível falar em flerte entre suicídio e adolescência?
Mário Corso - Não acredito que o fascínio pela morte seja maior na adolescência, apenas este encontro mais perigoso. Uma psicanalista francesa, F. Dolto (1), usa uma imagem para falar da adolescência que me parece muito precisa. Ela fala de complexo de lagosta. As lagostas, por possuírem um exoesqueleto, têm a necessidade de trocá-lo para poder seguir crescendo, e então, durante um tempo em que abandonam a carapaça, e até que a nova endureça, estão desprotegidas de ataques de certos predadores, estão mais vulneráveis. A imagem é perfeita para descrever a adolescência. São eles que estão mais frágeis e, então, são presas mais fáceis de tudo, logo, também da morte. Um dos mecanismos mais comuns usados quando estamos fracos é a soberba, a arrogância e um pouco de violência. Isso denota não uma força, mas uma fragilidade. Os adolescentes usam isso para compensar seu momento frágil e nos parecerem mais fortes. Nos enganam direitinho. Dentro desse quadro, está também a onipotência, a certeza (quase delirante, claro) de que nada vai me acontecer, que tenho sorte ou o corpo fechado. Esse comportamento aumenta as chances de risco nessa idade da vida. Se você observar crianças brincando, jogando videogame, verá que a questão da morte também está colocada. É possível morrer muitas vezes num jogo. Esse jeito de brincar é uma forma rebaixada de filosofar sobre a vida e a morte. A criança usa os mecanismos básicos do qual dispõe, mas a questão sobre o que é a vida e a morte já está sendo colocada, basta saber ouvir. Na idade adulta, alguns neuróticos obsessivos vivem para evitar a morte, enquanto que, para os hipocondríacos, atrás de suas questões com o corpo e a doença, está a morte. Não há idade privilegiada para ocupar-se dela. Acredito que o suposto flerte adolescente não é exatamente com a morte, mas com o sentido da vida. É isso que ele quer saber: colocar-se a questão do suicídio é apenas a versão terrorista para perguntar aos seus adultos sobre uma boa razão para viver. Ocorre que, na adolescência, muitas questões sobre a vida, seu valor e para o que mesmo vale a pena viver, são colocadas de maneira dura e não encontram nem respostas, nem sequer adultos querendo falar disso. Mas, quando vocês, na pergunta, colocam que a adolescência é o auge da vida, estão falando de quê? Será que não existe um equívoco entre o auge físico e outras coisas? Certamente de sabedoria podemos dizer que não é o auge. Eles podem ter boas perguntas, o que não é pouco, mas só engatinham em respondê-las.
IHU On-Line - Como o tema da morte aparece nas discussões virtuais, nas redes sociais da Internet, entre os jovens?
Mário Corso - Aparece justamente da pior forma, porque não existe outro espaço para falar disso. A escola não é um lugar de reflexão (ou pelo menos raramente), apenas um lugar de transmissão de um saber pré-determinado pelo que vai cair num vestibular ou num Enem futuro. Quando falam da volta da filosofia nas escolas espero que seja algo mais que uma cadeira de história do pensamento filosófico, mas de um espaço em que adultos topem filosofar sobre questões que os jovens queiram falar. Não adianta reclamar que eles vão ficar falando sobre suicídio na Internet se nós não falamos com eles sobre a morte e o sentido da vida. Além disso, falar sobre suicídio não é necessariamente falar sobre a morte, mas pode ser uma maneira indireta e rebaixada de falar do valor da vida. Falta alguém com mais experiência e sabedoria que conduza as questões. A morbidez é só aparência, ou algum que outro adolescente que queira aparecer para dizer que não tem medo de nada, afinal, fica caminhando na borda do precipício. Essa coragem também faz parte desse drama, na verdade, coragem mesmo precisamos para viver, não para ir embora, isso é fácil.
As famílias também não estão num momento que consigam falar com os jovens, justamente por idealizarmos essa idade da vida como auge, temos dificuldade de falar com eles. O homem atual é meio perdido de valores e de certezas, por isso se encolhe nas discussões. Precisamos incentivá-los, afinal, a transmissão da dúvida eu já acho grande coisa, as pessoas que duvidam geralmente são mais sábias e fazem menos bobagens do que as que têm certezas.
IHU On-Line - O medo da morte aumenta nos jovens da sociedade atual, marcada pela violência e pela insegurança?
Mário Corso - Vou dar uma resposta que serve menos para o Brasil, mas que de alguma forma nos alcança. Ser jovem num país sem guerra é mais fácil. Na Europa da virada do século XIX e depois nas duas guerras mundiais, os adolescentes eram a massa dos soldados e morriam aos milhares. Especialmente a primeira guerra mundial matou uma parcela enorme da sua juventude, uma geração foi mutilada. Será mesmo que a nossa época é difícil para os jovens? Aqueles sim que tinham pavor de morrer à toa, boa parte da contracultura começou num protesto para não ir à guerra do Vietnam, quem ia às passeatas eram os jovens que não queriam ir morrer lá por uma causa bem abstrata. As civilizações sempre usaram os jovens para soldados por não terem laços para frente, não são pais ainda, temem menos a morte, por isso se arriscam mais, sabem que não deixam ninguém dependendo deles. De certa forma isso vale também para a situação civil, os jovens têm menos laços de compromissos e podem arriscar mais.
IHU On-Line - Como o jovem reage diante da morte de outro jovem?
Mário Corso - Não existe uma resposta padrão pelo adolescente. Cada um faz como pode, desde o desencadeamento de síndrome do pânico até uma indiferença, que na verdade é uma impossibilidade de elaborar, e que joga para frente, para quando conseguir. O que parece frieza, na verdade, é uma impossibilidade de digerir, como se não houvesse um software que decodificasse a situação. Vejo adultos em análise finalmente conseguindo chorar a perda de amigos da adolescência que se foram. De qualquer forma, para os que cercam o falecido, sempre é um balde de água fria na onipotência a ideia de que as coisas acontecem para todos.
IHU On-Line - Por que é ainda tão difícil falar sobre o fim da vida?
Mário Corso - Vocês são otimistas com o “ainda”. Quer dizer que um dia vai ser mais fácil? Creio que quanto menos transcendência, mais difícil de falar. Se o que temos é essa vida, e vivemos para nossas pequenezas, como que iria ser fácil falar? Acho que, para abordar com tranqüilidade, é necessário ter uma vida mais ampla, com algumas realizações maiores do que o horizonte do consumismo que vivemos.
IHU On-Line - O que a concepção da morte pelos jovens fala sobre a forma como eles vivem a vida na sociedade atual?
Mário Corso - Pessoalmente eu acho que é o contrário. Acho que é a vida que levamos que nos faz ter uma concepção da morte. A vida é uma experiência, e com ela podemos aprender, a morte é uma abstração que, aos poucos, tentamos circunscrever. Vivemos uma época diferente, a pós-modernidade, tal como a entendo, significa a queda das grandes referências (incluindo as religiões), dos grandes discursos dominantes, o que faz com que cada um de nós tenha que montar a sua síntese particular. Acho isso um desafio, algo que dá uma liberdade, mas pede muito. Logo, não existe um grande sentido da vida a priori, e é relativo a esse sentido que uma vida vai ter valor, sobre esse valor que uma morte terá sentido. Exemplo prático: as estatísticas de suicídio nos mostram que elas são maiores onde o valor da vida é maior, afinal ali esse ato tem um grande sentido. Onde a vida humana não vale grande coisa, os índices são baixíssimos, afinal, lá esse ato não vai comover ninguém. Por isso é mais fácil um suicídio numa família pequena, ao estilo filho único, do que numa grande, onde há muitos irmãos.
Nota:
1.- Françoise Dolto (1908-1988): médica e psicanalista francesa, defendeu tese em Medicina sobre o tema das relações entre a psicanálise e a pediatria. Em 1938, conhece Jacques Lacan, que acompanhou ao longo da sua carreira de psicanalista. Durante 40 anos, Lacan e Dolto seriam o casal "parental" para gerações de psicanalistas franceses. Publicou diversos livros, todos eles ligados à psicanálise de crianças e adolescentes e fez vários estudos e tratamentos longitudinais de adolescentes com problemas. Entre suas obras citamos Psicanálise e pediatria: as grandes noções da psicanálise; Como educar os nossos filhos: compreensão e comunicação entre pais e filhos; Transtornos na infância: reflexões sobre os problemas psicológicos e emocionais mais comuns na criança; e o polêmico A Psicanálise dos Evangelhos.
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O flerte dos adolescentes e jovens com a morte. Entrevista especial com Mário Corso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU