07 Fevereiro 2009
Quando nasce, de fato, a vida humana? Quem tem direito a esta vida, em caso de aborto: a mãe ou o filho? Quando este mesmo direito interfere na autonomia e liberdade de escolha de alguém? Estas questões se tornam frequentes, quando o assunto é a legalização a favor ou contra a prática do aborto. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a doutora Carmen Fusco discute o tema, mostrando-se favorável à legalização do aborto.
Autora da tese “Aborto Inseguro em uma população em situação de pobreza”, ela fundamenta sua opinião com os casos de morte de mulheres que se tornam vítimas da clandestinidade. “No Brasil, estima-se a ocorrência anual de 1.300.000 abortos inseguros”, destaca. Além disso, ela considera que o aborto é um procedimento médico e que a morbidade e a mortalidade são maiores nas populações em situação de pobreza. Segundo Carmen, o aborto é a primeira causa de mortalidade materna na América Latina e a terceira no Brasil.
Carmen Fusco é médica e advogada. Possui mestrado e doutorado em Epidemiologia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o seu posicionamento em relação à legalização do aborto? Há casos em que esta prática deva ser aceita? Em que se fundamenta a sua opinião?
Carmen Fusco - A legalização do aborto, ou sua descriminalização, é necessária por várias razões. O aborto é uma realidade; ocorrem cerca de 43 milhões de abortos induzidos anualmente no mundo, sendo que, desses, 19 milhões são abortos ilegais, clandestinos, inseguros, em condições de risco. No Brasil, estima-se a ocorrência anual de 1.300.000 abortos inseguros. Todos estes oferecem risco de morbidade e de mortalidade às mulheres que os sofreram ou praticaram. Esta já seria uma razão mais do que suficiente para a legalização do aborto com a finalidade de tornar esses procedimentos seguros, realizados por médico e em local adequado (centro cirúrgico ou obstétrico), conforme orientação da própria Organização Mundial da Saúde (OMS). O aborto é um procedimento médico. Afora esta primeira ponderação, a partir de 1994, com a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, que considerou o aborto uma questão de saúde pública, ficaram bem estabelecidos os direitos reprodutivos que asseguram à mulher, ou ao casal, o direito de planejar sua prole, resolvendo quantos filhos deseja ter, quando e com que intervalo ou espaçamento, em número de anos. Esses direitos preservam os princípios éticos da autonomia e da livre escolha pertinentes a todo ser humano.
IHU On-Line - Independente da classe econômica, quais as consequências da ilegalidade do aborto, não somente para a mulher, mas, também, para a sociedade como um todo?
Carmen Fusco - As consequências, na verdade, estão atreladas à questão da má distribuição de renda, ou se preferir, à classe econômica à qual a mulher pertença. A morbidade e a mortalidade são maiores nas populações em situação de pobreza. Para a sociedade como um todo, o fato da ilegalidade do aborto promover uma situação de clandestinidade que leva ao aborto inseguro já é um grande peso e uma grande responsabilidade. O aborto é a primeira causa de mortalidade materna na América Latina e a terceira no Brasil. Neste contexto, cidadãs morrem sem necessidade ou ficam doentes com sérias complicações relacionadas ao aborto. Utilizam a rede hospitalar, com média entre 250.000 e 300.000 internações hospitalares anuais pelo SUS, o que gerou um custo estimado pelo Ministério da Saúde de 17 milhões de dólares em 2008. Além disso, devido à clandestinidade, existe um mercado paralelo do qual fazem parte as clínicas clandestinas para as mulheres que puderem pagar pelo procedimento.
IHU On-Line - As condições precárias em que muitas vezes são realizados os abortos não deveriam ser uma forma de coibir esta prática?
Carmen Fusco - As condições de realização do procedimento, historicamente, jamais “coibiram” a prática do abortamento voluntário. Aliás, não se trata de coibi-la, mas, sim, de promover o Planejamento Familiar previsto em lei, na tentativa de se prevenir a gestação não-planejada que dá origem ao aborto induzido. No entanto, mesmo assim, este continuará a existir, embora em menor escala. O que se deve eliminar e, para isso, é necessária a legalização do aborto, é a ocorrência do aborto inseguro, ou seja, aquele realizado em condições precárias, por pessoal não qualificado ou em locais não adequados à segurança do procedimento.
IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre a pergunta "quando surge a vida?", recorrente em discussões sobre a legalização ou não do aborto?
Carmen Fusco - Nesta pergunta fica clara a confusão de atribuições da questão aborto a três instâncias da organização social: Direito, Medicina e Religião. Já me posicionei quanto ao fato de achar que o abortamento é matéria médica. Como é sabido, em todos os países em que o aborto é legal, o limite ou prazo para sua realização varia de 10 a 12 semanas de gestação, isto é, quando o embrião deixa de ser embrião e torna-se feto. Se quisermos ser mais rígidos, podemos pensar em atrelar esse prazo, e esta é uma tendência no meio médico atual, ao que se considera o início da vida de um ser pensante, ou seja, o homem. Esta tendência é seguida quando se pensa no final da vida desse mesmo ser, por exemplo, no caso da doação de órgãos. Considera-se a extinção de vida quando o cérebro deixa de funcionar, quando deixa de possuir atividade elétrica, mesmo que o resto do organismo ainda se mantenha vivo e funcionando. Pensando-se no sentido contrário, o sistema nervoso daria início a sua atividade ao redor da 7ª ou 8ª semana de gestação. O funcionamento cerebral me parece uma forma objetiva de pensar o início e o fim da vida do ser humano para decisões médicas. Frisando: para decisões médicas, apenas, e por consenso. Não tenho, e a maioria dos médicos não tem, a pretensão de fazer uma afirmação sobre “o início da vida” em qualquer outra dimensão.
IHU On-Line - Os maiores índices de natalidade correspondem à faixa da população em condições econômicas desfavoráveis. Neste sentido, é possível pensar que o aborto poderia ser uma forma de controle da natalidade?
Carmen Fusco - Quando você fala em controle de natalidade, penso estar se referindo a controle da fecundidade. As taxas atuais de fecundidade no Brasil tornaram-se similares às dos países desenvolvidos, para todos os tipos de população. A Taxa de Fecundidade Total caiu 70% nos últimos 40 anos, sendo que a taxa de fecundidade brasileira (o número de filhos que cada mulher gera, em média) encontra-se em 1,8 filhos por mulher, abaixo do nível de reposição populacional que é de 2,1, conforme dados de 2008 do Ministério da Saúde, e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O que ainda ocorre é que em termos individuais as mulheres, principalmente aquelas pertencentes a populações em situação de pobreza, acabam lançando mão do aborto provocado para controle da própria fertilidade, sobretudo, quando já ultrapassaram o número de filhos desejado. Ou quando se encontram solteiras ou sozinhas diante de uma gestação não planejada. Estes últimos dados ficam muito claros, do ponto de vista estatístico, em minha Tese sobre “Aborto Inseguro em uma população em situação de pobreza.”
O aborto no mundo
Na Ásia, temos os principais exemplos de aborto controlado pelo Estado. Em 1948, o aborto foi legalizado no Japão com o nome de "Lei da Proteção Eugênica". O principal objetivo dessa lei seria a utilização do aborto como medida eficaz para os problemas da superpopulação e aceleração da taxa de crescimento populacional. Na República Popular da China, aprovou-se uma lei sem restrições ao aborto em 1975 e, desde então, esse método tornou-se muito popular. Graças à insistência atual do governo chinês para que as famílias tenham apenas um filho, o que gerou uma severa política de controle da fecundidade, além das sanções econômicas e sociais ditadas para esse fim, o planejamento familiar já não é um assunto pessoal, e sim controlado pelo Estado.
IHU On-Line - Como entender que uma lei "a favor da vida", no caso da proibição do aborto, seja, também, a favor da morte de muitas mulheres em situação de pobreza que acabam se submetendo a tal prática?
Carmen Fusco - Essa legislação é de 1940. O que você aponta é realmente um contra-senso. É um sinal de que essa lei não consegue dar conta de todos os fatos pertinentes a uma realidade bem mais complexa.
IHU On-Line - Como lidar com uma legislação que, ao impedir o aborto, também interfere na liberdade de escolha dos indivíduos?
Carmen Fusco - O único meio de se lidar com tal legislação é promovendo sua mudança através da legalização do aborto e com a manutenção do respeito aos princípios de autonomia e ao de livre-escolha, em relação às questões privadas, particulares de cada um.
IHU On-Line - Como atuam os Direitos Humanos, a partir do momento em que o aborto se torna a negação do direito de vida da mãe ou do filho?
Carmen Fusco - Parece-nos que o aborto, enquanto procedimento, não tem a intenção de negar direito algum. É necessária a desmistificação do termo aborto se quisermos estudá-lo, ou tratar dele, em termos médicos. O aborto inseguro é que provoca mortes evitáveis. E isto é inadmissível. Os Direitos Humanos, infelizmente, nem sempre são tomados em consideração; se o forem, devem ser preservados, inclusive, os direitos citados acima que fazem parte de seu corpo de princípios. Gostaria de ressaltar que os Direitos Humanos, cuja finalidade seria a de serem aplicados a todos os cidadãos do mundo, de forma resumida fazem parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, por sua vez, afirma em seu Artigo I: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Referem-se, portanto, à pessoa humana. Este conceito percorre todo o corpo da Declaração Universal, o que deixa claro serem esses os direitos pertinentes às pessoas existentes, que já nasceram, dotadas de personalidade – não tratando, da vida em potencial ou da vida embrionária. No caso, devem ser garantidos e aplicados à mulher.
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Aborto. O duplo sentido do direito à vida. Entrevista especial com Carmen Fusco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU