26 Março 2008
Não obstante os enrijecimentos dos últimos dias, a campanha eleitoral italiana parece unir Berlusconi e Veltroni no esforço de apresentar-se cada um como o verdadeiro intérprete de uma estação a pleno título pós-ideológica: na qual o conflito não teria mais necessidade de ser "representado", enquanto pertencente a uma idéia novecentesca e, portanto, superada da sociedade. Solicitamos ao filósofo da política Giorgio Agamben que nos fornecesse uma moldura teórica para ler esta crise. A entrevista é de Roberto Andreotti e Federico De Melis e publicada pelo jornal Il Manifesto, 17-03-2008.
Giorgio Agamben tem vàrios dos seus livros traduzidos para o português, como, entre outros, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I (Belo Horizonte: Ed. UFMG). Na Itàlia pela Einaudi està sendo publicado o livro "A linguagem e a morte. Um seminàrio sobre o lugar da negatividade". Sobre G. Agamben, pode ser lida a revista IHU On-Line, disponível nesta pàgina.
Eis a entrevista.
O líder do Partido Democràtico - inspirando-se, até mesmo nos slogans, em Barak Obama - faz apelo à possibilidade concreta, ao alcance da mão, de superar a emergência da política e os recentes fracassos da esquerda através de uma vontade de coexistência "além de todo conflito", um pouco "new age". O que parece definitivamente em crise é, então, o princípio de representação...
A idéia de que a política seja a representação - e, portanto, a mediação - dos conflitos sociais certamente tem dominado a tradição recente da esquerda. Mas, absolutamente não basta para definir a política e a democracia. é necessàrio precisar qual seja a relação entre a mediação e o conflito. De fato, atualmente, hà muitas décadas a idéia dominante - e não só na Itàlia - é que cada conflito pode ser governado, que não existe conflito que não possa encontrar sua mediação. Neste sentido, pode-se dizer que, pelo menos a partir do fim da segunda guerra mundial, existe somente social-democracia. E esta não podia senão encontrar-se antes ou depois com o modelo liberal que era, por excelência, portador de uma instância de mediação dos conflitos. O modelo de pensamento que hoje domina a política é o da governabilidade. Deve ficar claro, no entanto, que governar (o termo deriva do grego kybernes, o piloto de uma nave) não significa determinar despoticamente os eventos; ao contràrio, trata-se de deixar que os eventos se produzam para depois orientà-los na direção mais oportuna. é neste sentido que hoje tudo pode ser governado, gerido e normalizado. Deriva daqui o primado da economia e do direito sobre a política: onde tudo é normalizado e tudo é governàvel, o espaço da política tende a desaparecer. A democracia tornou-se assim sinônimo de uma gestão radical da conceituação política: as guerras se tornam operações de polícia, a vontade popular uma sondagem de opinião, as escolhas políticas uma questão de gerenciamento, cujos modelos de referência são a casa e a empresa, e não a cidade.
Então uma silenciosa destinação à morte do modelo democràtico ocidental...
Sim, porque a tradição democràtica repousa, ao invés, sobre o princípio de que a política é possível somente se houver em qualquer parte um conflito que não pode ser mediado e governado. Não se trata de nenhum modo de um modelo de desordem ou de guerra civil permanente, ao contràrio: estão em questão os próprios princípios que tornam possível a democracia. Nicole Loraux mostrou, assim, que em Atenas a "stasis", a guerra civil, funciona como uma espécie de exterioridade, cuja possibilidade fundamenta e mantém a democracia. Mas, também a tradição da democracia moderna se funda sobre a idéia de um poder constituinte que deve ser necessariamente externo ao poder constituído, e sem o qual a vida política perde vitalidade. Hà, sim, democracia quando o sistema jurídico-político se mantém em relação dialética com uma exterioridade que não é simplesmente excluída. Se o poder constituído pretende, ao invés, governar o poder constituinte e incluí-lo em si, a própria base da democracia fraqueja. Um caso flagrante é o da constituição européia que, rejeitada pelos povos, foi recentemente aprovada quase escondidamente em Lisboa, na forma de um acordo entre governos. Uma constituição sem poder constituinte é de todo priva de legitimidade, mas, na perspectiva governamental, legitimidade e legalidade tendem a confundir-se.
A crise de representação comporta, então, sempre mais um "deslocamento" dos conflitos: os quais, inevitavelmente, acabam por assumir outras formas - ou de aberta rebelião ou de fechamentos corporativos ou também de derivas espiritualistas; enquanto no "interior", na classe política, se afirma a cultura do "voto útil". Em todo o caso, quem vence são sempre mais os espíritos animais do Mercado. Existiria ainda um modo de restituir centralidade à política?
A tendência irrefreàvel da màquina governamental, esteja ela nas mãos da direita ou da esquerda, é que a atividade da màquina não encontra outros limites senão aqueles internos à própria màquina. Ademais, na perspectiva da governabilidade, direita e esquerda não podem senão perder os seus caracteres distintivos e tender, como de fato ocorreu por toda parte no Ocidente, para uma zona de indiferença e de opacidade. Que isto tome a forma de uma grande coalizão, como ocorreu na Alemanha e como se anuncia na Itàlia, ou de uma alternativa entre dois partidos quase indistinguíveis, não faz muita diferença. A cultura do "voto útil" inscreve-se nesta perspectiva. Naturalmente a negação da exterioridade deixa uma sombra, ou, como vós dizeis, produz um deslocamento dos conflitos. Estas sombras inadmissíveis são o terrorismo de uma parte e o integralismo religioso da outra, os quais tendem idealmente a coincidir. Embora o terrorismo se apresente à primeira vista como algo de absoluta ingovernabilidade, ele não é exterior ao sistema governamental, mas constitui, por assim dizer, o seu centro secreto. Creio que uma anàlise da política interna italiana durante os anos de chumbo e da política externa dos Estados Unidos após o 11 de setembro forneceria para isso uma prova eloqüente. O governo do terrorismo - isto é, a inclusão do ingovernàvel - é, neste sentido, a forma limítrofe do sistema governamental. A obsessiva insistência na segurança, que se tornou hoje quase o único slogan político, é vista nesta perspectiva. E é significativo que a sombra do terrorismo termine por cobrir o próprio corpo social no seu complexo, no sentido de que os governos tendam hoje a tratar cada cidadão como um terrorista em potencial, sujeitando-o de modo normal àqueles dispositivos de segurança de tipo biométrico que tinham sido inventados para os criminosos reincidentes.
A esquerda, politicamente representada, de fato, somente por Bertinotti, como pode responder no plano estratégico àquilo que o senhor chama de o problema da governabilidade? Que reservas culturais "boas" ela deveria atingir?
Convém que esteja claro que o processo que conduziu a sociedade ocidental ao modelo governamental é agora um fato consumado, e que deste processo a esquerda tenha sido parte essencial, e não surpreende que ela hoje o aceite sem reservas. De outra parte, o poder governamental é algo de que sabemos pouco e que ainda devemos aprender a conhecer. A tradição do pensamento político ocidental havia preferido concentrar-se nos grandes temas da soberania, do Estado, do povo, liquidando o problema do governo sob a rubrica de "poder executivo", cuja importância é unicamente instrumental e que, em si, não levanta grandes problemas teóricos. As minhas pesquisas, como de resto aquelas de Foucault, mostram, ao invés, que o verdadeiro arcano da política não é a soberania, mas o governo, não o rei, mas o ministro, não Deus, mas o anjo, não a lei, mas a polícia.
Professor Agamben, o senhor, no decurso dos anos, tem teorizado aquele gênero de transformações que conduzem em primeiro plano à "vida nua", abatendo todo tipo de mediação: perdoe, mas como se posiciona Veltroni com a biopolítica? O que esperar, em fim de contas, de um governo light da "transformação" da vida?
No que diz respeito à biopolítica, o fato que, em sentido lato, a colocação em jogo no poder seja hoje a gestão da vida biológica dos cidadãos e não sua vida política, não muda as coisas. A biopolítica inscreve-se perfeitamente no paradigma governamental, conquistando mesmo seu verdadeiro e próprio sentido nesta perspectiva. O fato de que o governo atual tenha emanado leis que prevêem a constituição de um arquivo do Dna vai nesta direção. é um erro crer que a nua vida signifique somente Auschwitz e o estado de exceção, muito mais interessante é que ela se torne hoje uma experiência e uma economia cotidiana, e que uma dimensão política deva ser reconquistada também através de um corpo a corpo com ela.
O pontificado de Bento XVI lançou um preciso desafio filosófico aos princípios da organização da sociedade: e exerce uma grande hegemonia, pelo menos na Itàlia, também pela falta de um perfil de pensamento laico "forte". O que comportarà esta disparidade de valores em campo, no plano não tanto político-institucional, quanto no próprio campo da filosofia política?
é preciso esclarecer, a este propósito, um equívoco da tradição laica. O verdadeiro problema não é que a Igreja intervenha na vida pública, mas que ela o faça demasiadamente pouco, e que se tenha por assim dizer especializado na tutela da vida biológica e da família (duas coisas, entre outras, que, segundo a tradição cristã das origens, o cristão deve estar pronto a sacrificar sem reservas). Ao invés de indignar-se porque o papa intervém na esfera pública - uma coisa que é seu dever -, se lhe deveria perguntar por que não toma posição com a mesma energia pelas infâmias cotidianas, as guerras, as injustiças, a miséria, pelas quais ele se limita a declarações genéricas. é significativo que precisamente quando o Estado abandonou a dimensão política pela biopolítica, a Igreja também pareça querer limitar o exercício do poder espiritual à esfera biológica.
- Dados biobibliogràficos:
O moderno e pós-moderno num aluno de Heidegger
Giorgio Agamben (Roma, 1942) ensina Iconologia junto ao Instituto Universitàrio de Arquitetura de Veneza. é um dos mais agudos pensadores italianos da política, com base sobretudo em Heidegger, Foucault, Benjamin, Warburg, Schmitt: linha que indica o caràter proeminente de uma reflexão orientada às emergências sócio-culturais do mundo moderno e pós-moderno, lidos através de categorias como "biopolítica" e "estado de exceção". Organizador da edição italiana de Benjamin, entre seus livros encontram-se: "A comunidade que vem" Einaudi, 1990; "Homo sacer", Einaudi, "95; "O que resta de Auschwitz", Bollati Boringhieri, "98; "O estado de exceção", Bollati Boringhieri, 2003; "O Reino e a Glória", Néri Pozza, 2007. A sair na Einaudi "A
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Democracia e pós-ideologia se elidem. Entrevista com Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU