07 Janeiro 2008
As pesquisas com células-tronco embrionárias se transformaram na grande esperança de médicos e cientistas do mundo todo. Entretanto, por lidarem com embriões, elas também viraram alvo de polêmica. Esses estudos, destaca o pesquisador Hugh Lacey, professor emérito do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA) e pesquisador visitante freqüente no Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), “evocaram grandes expectativas de que várias doenças, anteriormente incuráveis, podem ser curadas ou ter seus efeitos reduzidos”.
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador sugere que as pesquisas tecnocientíficas sejam realizadas “sob a égide do ‘princípio da precaução’”. Esse método, explica, “recomenda adiamentos na implementação de inovações tecnocientíficas - e possivelmente das pesquisas que as produzem - enquanto se conduzem pesquisas empíricas adicionais sobre seus riscos potenciais e sobre alternativas que não envolvam o mesmo tipo de risco”.
Embora seja favorável a autonomia na atividade científica, Lacey argumenta que os cientistas devem realizar estudos de tal maneira que sustem “problemas de metodologia científica” e sugere que “as instituições devem ser constituídas de modo a resistir às interferências externas”.
Lacey é graduado e mestre em Filosofia, pela University of Melbourne, da Austrália, e doutor em Filosofia, pela Indiana University, nos Estados Unidos. Atuou como professor na University of Sydney e na University of Melbourne, ambas na Austrália.
Confira mais detalhes na entrevista a seguir.
IHU On-Line - Como lidar, de maneira ética, com duas questões que estão em torno do debate das pesquisas com células-tronco embrionárias: o progresso tecnocientífico e os sentimentos religiosos?
Hugh Lacey - Objeções à pesquisa com células-tronco embrionárias certamente levantam questões sobre os valores gerais sociais e éticos do progresso tecnocientífico desimpedido. Elas não precisam derivar, entretanto, de sentimentos religiosos reacionários. Eu escrevi o seguinte num artigo na Folha de S. Paulo: “Os que propõem restrições éticas às pesquisas com células-tronco embrionárias não precisam estar em oposição ao progresso tecnocientífico legítimo. Porém, eles contestam a extensão em que problemas urgentes, ligados ao bem-estar humano, estão abertos a soluções tecnocientíficas e só a elas e, assim, contestam a legitimidade imediata normalmente concedida à implementação de inovações tecnocientíficas. Eles também contestam o imperativo ético presumido de priorizar soluções tecnocientíficas, além da insinuação de que seria deficiência ética lançar dúvidas sobre a legitimidade de pesquisas que possam conduzir a tais soluções.
Essa contestação não está em oposição à ciência e pode nem sequer fundamentar-se imediatamente em preocupações com os direitos dos embriões. As pesquisas tecnocientíficas podem ser realizadas sob a égide do `princípio da precaução`. Este recomenda adiamentos na implementação de inovações tecnocientíficas - e possivelmente das pesquisas que as produzem - enquanto se conduzem pesquisas empíricas adicionais sobre seus riscos potenciais e sobre alternativas que não envolvam o mesmo tipo de risco”.
Note que o princípio da precaução mesmo agora ainda é aplicável - segundo os resultados recém-publicados de Shinya Yamanaka e James Thomson de que células epiteliais adultas podem ser transformadas com sucesso em células-tronco equivalentes às embrionárias - quando parece que pesquisas com célúlas-tronco podem ser capazes de seguir adiante sem depender de células-tronco embrionárias.
IHU On-Line - Quais são os desdobramentos político-sociais do desenvolvimento de pesquisas com células-tronco embrionárias?
Hugh Lacey - Politicamente, nos Estados Unidos, pesquisas com células-tronco embrionárias têm sido uma questão dividida e polêmica. O presidente Bush, seguindo a recomendação do comitê consultivo indicado por ele, limitou severamente o uso de fundos governamentais para essa pesquisa e vetou algumas propostas legislativas para mudar suas políticas. Entretanto, a pesquisa com células-tronco embrionárias não é proibida e vários governos estaduais e universidades continuam a patrocinar essa pesquisa. Agora que a pesquisa com células-tronco pode continuar sem a destruição de embriões humanos, nós esperamos que a divisão polêmica política diminua. Bush até tem a presunção de se gabar de que suas políticas foram um estímulo à descoberta de novos métodos de pesquisas em células-tronco, enquanto seus opositores ainda insistem de que as políticas de Bush representam uma invasão ilegítima do governo na ciência.
Socialmente, as pesquisas em células-tronco evocaram grandes expectativas de que várias doenças, anteriormente incuráveis, podem ser curadas ou ter seus efeitos reduzidos. Muito foi prometido pela comunidade científica e popularizado pela imprensa. Mesmo assim, tem havido muito exagero. Apesar de toda a empolgação, nenhum cientista espera que tratamentos úteis do ponto de vista prático surgirão das pesquisas com células-tronco a curto prazo. Na minha opinião, as polêmicas políticas têm sido fomentadas em grande parte pelas expectativas sociais enganosas. (Eu não irei tentar comentar sobre as questões políticas e sociais surgidas no Brasil.)
IHU On-Line - Sendo a bioética uma ciência regida pela metafísica e pela razão, os parâmetros religiosos de quando começa a vida perdem sentido?
Hugh Lacey - Bioética é uma disciplina racional, mas eu não a chamaria de científica, pois considero uma disciplina “cientifica” apenas se seus apelos podem ser (em princípio) respondidos no curso da investigação empírica sistemática. Embora a bioética revele resultados para tais investigações, ela também lida com questões como direitos e justiça que não podem ser reduzidos aos resultados da pesquisa científica. Sim, a metafísica deve desempenhar um papel importante na bioética, mas a metafísica não tem maior autoridade do que compromissos religiosos. Devemos lembrar que, por exemplo, a metafísica materialista está em contradição com a maior parte das crenças religiosas fundamentais - mas nem a metafísica materialista nem as crenças religiosas são propostas confirmadas pela pesquisa científica; e nenhuma delas têm autoridade obrigatória na deliberação bioética. Para mim, no presente contexto, a questão fundamental é “o que constitui uma vida humana”, e não “quando começa uma vida humana”. Eu não excluo, antecipadamente, qualquer contribuição (metafísica, religiosa ou outra) para a discussão dessa questão.
IHU On-Line - O senhor percebe contradições no uso de células-tronco embrionárias para pesquisa?
Hugh Lacey - Quando células-tronco embrionárias humanas são adquiridas para pesquisa, um embrião humano é destruído; e então é pressuposto que esse ser não é portador de direitos humanos. Por outro lado, a ciência nos diz que o genoma distinto de um ser humano maduro está presente tão logo o embrião do qual ele se desenvolve é formado. Isto não é uma “contradição”, mas levanta questões éticas sérias.
Utilizar células-tronco embrionárias em pesquisa afronta a maioria das pessoas hoje, provavelmente uma grande minoria, que pensa (e nem sempre por razões “religiosamente reacionárias”) que embriões humanos são seres humanos vivos, portadores de direitos humanos. Pesquisadores, que usam estas células-tronco, é claro, sustentam que o valor dos resultados antecipados das suas pesquisas (curas médicas) justifica ignorar as objeções éticas de uma minoria. Agora que parece haver outras maneiras de se engajar na pesquisa, a qual não envolve o uso de células obtidas da destruição de embriões, parece existir pouca justificativa para ignorar essas objeções éticas.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a interação ou a não interação entre ética e valores sociais nas pesquisas científicas? O diálogo entre ciência e ética está avançando?
Hugh Lacey - Essas são questões complexas, e eu tenho escrito vários livros sobre elas. Ninguém duvida de que valores sociais e éticos sejam essenciais para as deliberações sobre a aplicação do conhecimento científico, e também de que os métodos científicos devem estar ligados a padrões éticos, como a proteção dos direitos humanos. Eu tenho argumentado que os valores sociais e éticos estão freqüentemente em jogo no início da pesquisa, influenciando prioridades e mesmo as abordagens metodológicas que são adotadas. A maior parte da pesquisa tecnocientífica é conduzida de acordo com o princípio ético, o qual (em uma apresentação feita no congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Belém, neste ano) expressei assim: “Normalmente, a menos que exista evidência científica forte de que há sérios riscos, é legítimo implementar – sem atraso – aplicações eficazes do conhecimento científico objetivamente comprovado”.
Esse princípio tem diferentes implicações para as prioridades para a pesquisa e para as escolhas metodológicas do que o Princípio Precaucionário, o qual “recomenda atraso na implementação das aplicações tecnocientíficas - durante o tempo necessário para conduzir pesquisa sobre (entre outras coisas) os riscos ecológicos e sociais de longo prazo das implementações”, e “a recomendação está baseada em parte em juízos éticos concernentes (entre outras coisas) os direitos humanos, a responsabilidade ambiental, o desenvolvimento sustentável, a eqüidade inter-geracional, e a democracia participativa”.
Em anos recentes, tem havido uma discussão considerável sobre essas questões, envolvendo o diálogo entre a ciência e a ética, em grandes organizações cientificas e em comissões internacionais, lidando com questões como aquecimento global, biodiversidade e o impacto das inovações tecnocientíficas.
IHU On-Line - Os cientistas devem ter autonomia para continuar as pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias? Como deve se estabelecer essa relação de autonomia e “auto-controle”, por exemplo?
Hugh Lacey - A autonomia tem sido, por muito tempo, aclamada como um valor das atividades científicas modernas. Tradicionalmente ela tem sido entendida para sustentar: “(1) Problemas de metodologia científica e critérios para a avaliação do conhecimento científico encontram-se fora da esfera de qualquer perspectiva ética (religiosa, política, social e econômica) e não dependem de preferências pessoais; (2) as prioridades da pesquisa, para o empreendimento científico como um todo, não devem ser moldadas por alguma perspectiva valorativa particular; e (3) as instituições científicas devem ser constituídas de modo a resistir às interferências externas (não científicas)”.
Hoje em dia, entretanto, a autonomia tende a ser entendia em termos mais individualistas, então muitos cientistas esperam ser autônomos no sentido de que eles são livres para fazer qualquer pesquisa que eles queiram, por quaisquer razões, e que eles podem contar com o fomento necessário para fazê-la. Eu acredito que isto é importante para as comunidades científicas se esforçarem para ganhar autonomia no sentido tradicional. No sentido contemporâneo, autonomia freqüentemente serve como uma cobertura para submeter as prioridades da pesquisa de alguém aos interesses corporativos, uma violação da autonomia tradicional.
Eu sou a favor da tentativa de reafirmar a concepção tradicional de autonomia (talvez com uma nova interpretação), e da condução de todas as pesquisas cientificas, incluindo as pesquisas com células-tronco, em instituições que estão se esforçando para atingir este tipo de autonomia. Eu penso que o maior dos obstáculos à prática da autonomia da ciência não são as intrusões religiosas reacionárias, mas a aliança da ciência com as corporações e projetos militares.
IHU On-Line - Podemos dizer que a ciência é livre de valores?
Hugh Lacey - Esta também é uma questão muito complexa e não permite uma única resposta não-qualificada. Em vários livros, como, por exemplo, Valores e atividade científica (São Paulo: Discurso Editorial, 1998), eu tenho argumentado que a idéia de que a ciência é livre de valores é o bastante para sustentar três idéias para as atividades cientificas. Uma é autonomia, a qual já foi discutida; as outras duas são objetividade (imparcialidade) e neutralidade. Objetividade: “Uma reivindicação torna-se aceita como conhecimento científico apenas quando se julga que ela está bem suportada pela evidência empírica disponível, à luz de critérios estritamente cognitivos (por exemplo, a adequação empírica e o poder explicativo e preditivo), que não refletem valores sociais e éticos particulares, e apenas após ter sido testada no curso de um apropriado e rigoroso programa de pesquisa empírica (experimental)”. Neutralidade “(1) Os resultados científicos, considerados como um todo, não favorecem a algumas perspectivas éticas em prejuízo de outras, seja através de suas implicações lógicas, seja através das conseqüências decorrentes de suas aplicações; (2) no contexto de aplicação (tecnológica), a totalidade das teorias bem estabelecidas, em princípio, podem servir eqüitativamente os interesses promovidos por um amplo leque de perspectivas éticas - isso implica que os resultados científicos estabelecidos podem ser usados para servir a fins ‘bons’ ou ‘maus’”.
Através da maioria das modernas tradições científicas, esses valores têm sido considerados ideais, nem sempre bem implementados de fato nas atividades científicas atuais. No entanto, com o passar do tempo, é esperado que eles ganhem uma implementação crescente. Eu tenho argumentado que, na ciência contemporânea, neutralidade e autonomia não são bem implementadas (ver a discussão sobre “autonomia” na questão anterior), a partir do fato de que a pesquisa cientifica tem se tornado subordinada aos valores do progresso tecnológico (assim como aos valores do capital e do mercado que o reforça) - e, se esta subordinação continuar, estes dois ideais serão efetivamente reduzidos à irrelevância. Entretanto, isso não precisa continuar. Eu tenho argumentado que, por exemplo, aquele comprometimento que o Princípio Precaucionário provê um contexto no qual esses dois ideais podem ser rearticulados e promovidos. Então, eu quero dizer que a ciência pode ser conduzida mais integralmente sob esses ideais de neutralidade e autonomia, mas, dadas as tendências dominantes correntes, não é provável que isso aconteça. Objetivamente, por outro lado, permanece um ideal para qualquer atividade que reclama o rótulo de “ciência”.
IHU On-Line - Qual é a sua principal crítica às pretensões da ciência, que tenta, através das nanotecnologias e outras tecnologias, por exemplo, construir uma forma de conhecimento universal ao mesmo tempo em que alega o progresso material e futuro da humanidade?
Hugh Lacey - A tecnociência leva ao conhecimento objetivo de muitos fenômenos, como, por exemplo, em biotecnologia, biologia molecular e nanotecnologia, e o entendimento deles em termos de suas estruturas subjacentes, processos, interações e leis. Entretanto, a pesquisa que leva a ganhar este conhecimento é incapaz de endereçar adequadamente questões sobre o risco das implementações tecnocientíficas (especialmente a longo prazo e onde os mecanismos socio-econômicos estão envolvidos) e alternativas práticas que podem possuir mais benefícios e poucos riscos - para o tipo de entendimento que se busca ganhar separa o fenômeno do seu contexto humano, social e ecológico. Em vários escritos, eu tenho contrastado o tipo de pesquisa que leva ao desenvolvimento de transgênicos com aquelas que informam sobre agroecologia e que não se desassociam do contexto. A pesquisa científica, que limita a sua abordagem metodológica àquelas da tecnociência (por causa da dissociação do contexto), nunca proverá o conhecimento necessário sobre os riscos e alternativas para justificar a legitimidade da sua implementação. Eu sustento que a pesquisa seriamente influenciada pelo Princípio Precaucionário e suas variações oferece as melhores perspectivas para a ciência ao contribuir com o bem-estar da humanidade e para a proteção do meio ambiente, assim como continua a gerar novos conhecimentos objetivos.
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Ética e ciência: o dilema das pesquisas com células-tronco embrionárias. Entrevista especial com Hugh Lacey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU