24 Janeiro 2008
As novas práticas agrícolas estão mais dependentes de insumos químicos, biotecnológicos e energéticos. “Esta agricultura é insustentável a longo prazo, pois depende principalmente de recursos não renováveis e produz uma enormidade de externalidades negativas, as quais se fossem consideradas no preço final, inviabilizariam a produção.” A opinião é de Marcos Borba, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) de Bagé.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Borba avalia a opção do governo gaúcho pelo desenvolvimento baseado em monoculturas. Para ele, o plantio exclusivo de qualquer espécie “é a expressão de uma racionalidade instrumental que somente visa à maximização dos valores de troca dos recursos apropriados”. O cenário agrícola atual revela que o Rio Grande do Sul, ao invés de avançar, está revivendo uma situação típica da década de 1970. A Região da Campanha, por exemplo, “está sendo invadida também pela soja, além do eucalipto, com a substituição do campo e conseqüente perda de diversidade”, denuncia o pesquisador. “Ao promover incondicionalmente a produção de agroenergia, os governos revelam que são destituídos de qualquer espírito critico quanto a questão verdadeiramente importante, ou seja, o modelo de desenvolvimento”, complementa Borba.
No que se refere à produção de soja transgênica, o especialista alerta que, neste tipo de plantio, “o produtor não passa de marionetes na mão da indústria, que é quem decide o que se planta, qual semente, qual insumo etc. Ao produtor cabe viabilizar os recursos para a aquisição do `pacote` e rezar para não haver frustração de safra, pois significa endividamento”. Ao invés de insistir em competir e trabalhar com grandes empresas, os agricultores devem produzir alimentos orgânicos, aproveitando suas características e potencializando sua diferenciação com relação a produção capitalista, aconselha Borba. “Isso significa outros estilos de produção baseados em energias renováveis, com formatos tecnológicos menos dependentes e com menor impacto sobre o ambiente físico”, afirma.
Marcos Borba é graduado em Medicina Veterinária, pela Universidade da Região da Campanha, mestre em Ciências Veterinárias pela Faculdade de Veterinária, e doutor em Sociologia, Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, pela Universidade de Cordoba. Atualmente, é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a sua avaliação das distintas atividades agrícolas, em geral monoculturas, que vêm incrementando o desenvolvimento econômico regional no Rio Grande do Sul?
Marcos Borba - A pergunta encerra um viés muito comum, que, apesar de amplamente debatido, continua em voga. O de que o desenvolvimento é uma questão meramente econômica. Trata-se de um reducionismo perigoso, pois reforça as estratégias hegemônicas do capitalismo global de ideologia neoliberal que impõe a maioria dos países periféricos o que Richard Peet chama de as "práticas de bom governo". Essas, entre outras medidas, incluem o aumento do setor privado e a retirada de qualquer barreira aos investimentos privados (domésticos ou estrangeiros) associados ao livre comércio. Esta noção, de que o crescimento da economia é condição para o desenvolvimento e inclusive para a sustentabilidade, como afirma o famoso informe Brundtland (com sua visão ecotecnocrática), percebe a agricultura como portadora de importante papel na economia como produtora de commodities. Uma situação que reserva a países como o Brasil e ao estado do Rio Grande do Sul o papel de atender as demandas por matérias-primas (soja, farelo, celulose etc.) do centro da economia mundial, ou seja, uma posição submissa, neocolonial.
IHU On-Line - Quais são as principais implicações da monocultura de soja, no Rio Grande do Sul?
Marcos Borba - A monocultura, seja ela de soja, árvore, seja de tomate, traz todo tipo de implicações. É a expressão de uma racionalidade instrumental que somente visa à maximização dos valores de troca dos recursos apropriados. A aplicação desta lógica à agricultura, associada às pequenas margens de ganhos que exigem escala, transforma-a em atividade de alto risco, cobrando redução de custos a qualquer preço como forma de torná-la viável. Neste contexto, ganha força uma agricultura cada vez mais dependente de insumos químicos, biotecnológicos e energéticos, além de crescente mecanização. Desse modo, há, cada vez mais, uma agricultura sem "homens" e distante da natureza. Isso redunda em enorme dependência dos agricultores, sejam familiares, empresariais ou capitalistas, tanto antes da porteira quanto depois da porteira, com relação à insumos e ao mercado, respectivamente. Esta agricultura é insustentável a longo prazo, pois depende principalmente de recursos não renováveis e produz uma enormidade de externalidades negativas, as quais se fossem consideradas no preço final inviabilizariam a produção. Na verdade, parte dos verdadeiros custos das monoculturas são pagos pela sociedade, ainda que os lucros sejam privados.
Graças à monocultura da soja, estamos assistindo, no Rio Grande do Sul, uma situação típica dos anos 1970, o avanço de uma nova fronteira agrícola. A região da Campanha está sendo invadida também pela soja, além do eucalipto, com a substituição do campo e a conseqüente perda de diversidade. Esta questão tem dois aspectos muito interessantes. Um é o fato dos produtores de soja defenderem ideologicamente um modelo que contraria frontalmente seus interesses de classe, que favorece a enorme transferência de poder e capital para a indústria. E o outro é a permanente reclamação por parte dos produtores com relação aos custos de produção, fazendo que a cada ano a dívida da agricultura tenha que ser renegociada. Cabe perguntar como pode uma atividade econômica que necessita anualmente renegociar dívidas ser sustentável.
IHU On-Line - E no que se refere à soja transgênica? Ela é prejudicial, economicamente, para pequenos agricultores?
Marcos Borba - A transgenia como a máxima expressão do reducionismo científico (antes era: uma praga uma formulação química, hoje uma praga, um gen) representa a definitiva apropriação da indústria sobre o processo produtivo da agricultura. Neste modelo, o produtor não passa de marionetes na mão da indústria, que é quem decide o que se planta, qual semente, qual insumo etc. Ao produtor, cabe viabilizar os recursos para a aquisição do "pacote" e rezar para não haver frustração de safra, pois significa endividamento. Ainda que a agricultura familiar em algumas situações se diferencie da agricultura capitalista apenas pelo uso predominante de mão-de-obra da família, pois opera na mesma racionalidade de dependência e orientação ao mercado, em geral aquela categoria social se caracteriza historicamente por um elevado grau de auto-suficiência, onde a semente representa, juntamente com o solo, uma grande riqueza. A nova revolução verde, biotecnológica, rompe com isso, colocando agricultores e "produtores" na mesma situação, o que representa um prejuízo muito maior para os agricultores familiares, já que estes são obrigados a disputar os mesmos mercados com os mesmos riscos.
Defendo que a agricultura familiar deveria aproveitar suas características e potencializar sua diferenciação com relação à produção capitalista de grande escala. Isso significa outros estilos de produção baseados em energias renováveis, com formatos tecnológicos menos dependentes e com menor impacto sobre o ambiente físico. Ou seja, uma agricultura realmente sustentável, que se seja reconhecida pela qualidade não dos produtos apenas, mas do processo produtivo como um todo. A agricultura familiar deveria distanciar-se do mercado de commodities e produzir algo que somente esta categoria pode fazer, produzir alimentos e serviços ambientais de alta qualidade, algo que a agricultura industrial e capitalista jamais poderia fazer.
IHU On-Line - Como o senhor avalia os subsídios oferecidos pelo governo para os investimentos em produção de agroenergia, tendo em vista que um dos maiores problemas do Brasil é a vulnerabilidade ante a fome? Que conseqüências a produção exacerbada trará, em específico para o Rio Grande do Sul?
Marcos Borba - O que subsidiar sempre revela a linha de pensamento dos governos. Ao fazer isso, nossos governos estadual e federal apontam que modelo de desenvolvimento defendem. Ao promover incondicionalmente a produção de agroenergia, os governos revelam que são destituídos de qualquer espírito crítico quanto à questão verdadeiramente importante, ou seja, o modelo de desenvolvimento. Não se questiona a insustentabilidade dos atuais padrões de consumo. A questão de fundo não se trata de se é ou não possível substituir a matriz energética. Trata-se, sim, de reavaliar se é possível manter um modelo em que o número de automóveis produzidos é utilizado como indicador de eficiência econômica. Nos últimos 20 anos, provavelmente consumimos mais combustível que em toda a história anterior da humanidade.
Ora, se adotarmos um pensamento em termos exponenciais vamos rapidamente concluir que o importante não é a taxa de crescimento anual de uso de combustível, mas sim o tempo necessário para que esta dobre 100%. Assim, pode-se perceber que, ao se manter a idéia de que o crescimento do consumo, além de desejado, será eternamente possível, cada vez menos tempo será requerido para que este consumo duplique. Portanto, a troca de petróleo por biocombustíveis, ao se manter a racionalidade hegemônica, não resolve o problema. Em breve, estaremos discutindo a troca da agroenergia por outra fonte e assim sucessivamente. Precisamos revisar é a noção de infinitude, de crescimento ilimitado que assola o pensamento humano. Nossa arrogância, com certeza, irá cobrar um preço.
Quanto à produção de alimentos, não há dúvidas que o incentivo a uma agricultura orientada à produção energética acabará influenciando negativamente pela redução de área cultivada ou pelo aumento de preços. A agricultura familiar poderia se beneficiar dessa situação e consolidar definitivamente a sua identidade de "produtora de alimentos", algo que a sociedade precisa urgentemente valorizar.
IHU On-Line - Com a implantação de grandes monopólios no estado, a identidade cultural regional pode estar ameaçada?
Marcos Borba - Sem dúvidas. Vamos tomar como exemplo a chamada Serra do Sudeste. Uma região historicamente definida como pobre e atrasada em função das formas de produção predominantes, das relações com o mercado e das condições ecológicas de relevo (solos rasos e declivosos) e vegetação (mosaico de campo e mato). Se, no entanto, analisarmos esta realidade desde uma perspectiva alternativa, vamos verificar que aquilo que o olhar mais convencional chama de atraso encerra, na verdade, algumas formas de produção com elevados índices de renovabilidade (alta dependência de recursos naturais renováveis) ou uma característica de "produção camponesa". Situando tal realidade dentro de um contexto regional, identificamos que existe uma vasta região envolvendo, pelo menos, seis municípios que possuem um conjunto de características produtivas, culturais e ecológicas bem marcantes, ao ponto de isso poder constituir uma forte identidade territorial, a partir da qual se poderia constituir uma estratégia de desenvolvimento territorial endógeno, mediante a transformação das suas potencialidades em valores, fazendo com que tal território viesse a ser reconhecido por suas diferenças. Claro que para isso se faz necessário que os atores locais tomem consciência e reconheçam o valor de seu território com vistas a assumir o controle sobre este processo. Não necessariamente este é um processo fácil ainda que plenamente possível, desde que se avance neste sentido. Mas, enfim, constitui uma possibilidade de futuro concreta para esta região.
Infelizmente, neste momento, esta é uma das regiões mais visadas pela expansão das lavouras de árvores, um processo que ao contrário do anteriormente comentado, desterritorializa, rompe com o processo coevolutivo entre a cultura e a natureza do território estabelecido ao longo da história pelos seus atores. A presença destes monopólios, ao contrário do que se diz, retira as melhores perspectivas de futuro para esta região, pois, ao simplesmente implantar estratégias de desenvolvimento descontextualizadas, estabelecidas a priori, que não contribuem para a construção de redes sociais nem valorizam culturas e recursos locais, negam o mais elementar sobre a possibilidade de desenvolvimento, ou seja, que o desenvolvimento se constrói e não se importa.
IHU On-Line - Tendo em vista a indispensabilidade da energia, de que maneira ela pode ser trabalhada sem esquecer e pôr em risco a soberania alimentar, obtendo, assim, uma sustentabilidade econômica?
Marcos Borba - No caso da agricultura familiar, é só seguir a estratégia histórica, isto é, estabelecer sistemas diversificados nos quais a produção de energia seja um dos elementos deste sistema. Que a agroenergia possa primeiramente ser uma questão de auto-suficiência energética. Cada vez que o agricultor familiar se organizar para a produção orientada apenas ao mercado, este estará aumentando sua fragilidade, pois competirá de forma desigual com grandes conglomerados econômicos. A agricultura familiar deveria perseguir a soberania alimentar e energética, sem que isso seja empecilho para que participe dos mercados através da colocação de excedentes de qualidade diferenciada.
IHU On-Line - Com o crescimento da agroenergia, quais são os principais prejuízos para a agricultura familiar? Ela pode ficar refém dos grandes monopólios?
Marcos Borba - Os produtos da agroenergia já nascem como commodities, dentro de um modelo de agricultura intensiva em insumos e capital, de grande escala e sustentada pela mesma racionalidade instrumental da ideologia neoliberal. Sempre que a agricultura familiar participar disso estará em condições de desigualdades e perdendo a possibilidade de se diferenciar, de produzir produtos diferentes, em processos alternativos e para mercados exclusivos. Outro grande prejuízo para a agricultura familiar é que o atual discurso sobre a potencialidade brasileira como produtor mundial de combustíveis "sustentáveis" reforça a ideologia que promove o agronegócio, segundo a qual a agricultura familiar é um resíduo anacrônico que deveria desaparecer, pois não tem potencial de crescimento, a menos que incorpore a sua lógica.
IHU On-Line - O senhor percebe relações entre a produção de agroenergia e a silvicultura? A energia produzida a partir da soja, por exemplo, beneficiaria diretamente as papeleiras, no Rio Grande do Sul?
Marcos Borba - Ambas atividades são caras da mesma moeda. São expressões máximas da agricultura como negócio, de um modelo de economia que vê apenas o ganho com lucro de uma elite com fortes influências sobre o estado, a política (grande parte dos legisladores brasileiros e gaúchos foram eleitos com apoio financeiro do agronegócio) e a economia, sem nenhuma preocupação com as conseqüências sociais e ambientais deste processo. Ambas são concentradores de terra e capital, socialmente excludentes e de grande impacto sobre os recursos naturais. Não saberia dizer se o combustível da soja poderia beneficiar as papeleiras, mas o que concretamente pode acontecer é as papeleiras aproveitarem o boom dos biocombustíveis através da produção de etanol a partir da madeira, ampliando seu poder.
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"Desenvolvimento se constrói e não se importa". Uma avaliação do modelo agrícola gaúcho. Entrevista especial com Marcos Borba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU