20 Fevereiro 2014
"O jovem acorrentado ao poste e o que atirou o rojão são parte de uma juventude ignorante empurrada para a sociedade de consumo. Todos nós temos que começar a refletir sobre qual país criamos e qual país queremos. Já é hora. Infelizmente, isso não parece ser uma preocupação dos brasileiros", escreve Yvonne Bezerra de Mello, doutora em filologia e linguística, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 19-02-2014.
Eis o artigo.
Os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro e em outros grandes centros urbanos não foram suficientes, pelo menos não ainda, para que parássemos e pensássemos sobre as causas da crescente violência, especialmente entre jovens.
Nunca se matou tanto, nunca se excluiu tanto, nunca foi tão grande a intolerância contra minorias, etnias e crenças religiosas. Hoje vivemos em cidades do medo, nas quais estar seguro é estar em casa.
Aceitamos e aplaudimos jovens torturados em plena rua, aceitamos e aplaudimos execuções sumárias e demonizamos aqueles que tentam, de uma forma ou de outra, mudar esse quadro. Achamos que a barbárie é mais forte do que as leis, muito porque existe de fato uma desobediência e ignorância civil. O Brasil vive um vácuo institucional. Instalamos a estrutura do caos.
A cidadania não é objeto da discussão e ainda não faz parte do processo educacional brasileiro. Posicionada no final dos rankings internacionais, a escola brasileira não educa nem instrui. E mais: a deterioração dos padrões de comportamento da política brasileira repercute em todas as classes sociais. Não temos uma orientação de conduta ética.
Nesse estado de coisas, os grupos sociais ficam sem a resposta das instituições a seus anseios, deterioram-se, agrupam-se em verdadeiros guetos de justiceiros, paladinos da justiça para os quais a aplicação da lei se traduz na eliminação de pessoas. Assim, permitimos, em nome da nossa segurança, violações inaceitáveis de direitos para um país que se diz democrático.
Existe diferença entre o jovem ensanguentado acorrentado ao poste que encontrei no bairro do Flamengo, no Rio, há cerca de duas semanas e o jovem que atirou um rojão durante uma manifestação e acabou matando o cinegrafista Santiago Andrade? Não existe.
Ambos desconhecem o conjunto de regras, códigos e estruturas que devem permear uma sociedade organizada. O acorrentado, com só um ano de escolaridade, assaltava por tostões. O outro, com um pouco mais de estudo e um emprego, vendeu-se por R$ 150 (valor que seu advogado diz que ele recebeu para participar do protesto). E é somente isso que vale uma vida.
Uma juventude ignorante empurrada para a sociedade de consumo que o governo procura estimular.
A estrutura do caos inverteu valores, subtraiu a nossa cordialidade, tornou-nos vulneráveis e medrosos. Os dois jovens escancaram a falência das políticas sociais vigentes. Sentimos raiva da população da qual eles fazem parte, queremos aniquilá-la sem nos preocuparmos com as causas que nos fizeram chegar a esse ponto.
Mas as causas são também a nossa negligência ao acharmos que o problema só passa a ser nosso quando somos assaltados ou temos parentes mortos. Só então pensamos em ações emergenciais que nos protejam, cansados que estamos da leniência das leis e da impunidade.
A reflexão sobre a violência no Brasil deve passar pelos nossos problemas de governabilidade, de falta de gestão, de corrupção e de concentração demasiada de renda. Deve passar pelos bolsões de miséria, pela educação e instrução deficientes que persistem no país, a despeito da TV de 42 polegadas que as comunidades de baixa renda agora colocam em suas salas de estar.
Esse é o quadro atual, que pode ser revertido por ações e pelo voto consciente. Educar nossas crianças e jovens e instruí-los com qualidade é o único caminho para o desenvolvimento. Eu faço isso todos os dias e garanto que é possível.
O programa de salvação nacional do caos inclui todos nós. Se isso não for feito, teremos brevemente uma guerra civil. É isso o que queremos?
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