17 Mai 2023
O que está em jogo não é apenas o preço de energia, mas também a enorme dependência do Brasil de uma energia que não é mais tão renovável assim.
A reportagem é de Maurício Brum, publicada por Extra Classe, 16-05-2023.
É no Anexo C que está definida a divisão da energia produzida por Itaipu, em partes iguais: Brasil e Paraguai têm, cada um, direito a 50% do que é gerado.
Após 50 anos da assinatura do tratado que definiu as bases da operação de Itaipu, a construção da usina está finalmente paga. Ao longo das últimas cinco décadas, foram mais de 63,5 bilhões de dólares (cerca de R$ 315 milhões) para bancar as obras da própria hidrelétrica e da infraestrutura ao redor, além dos juros dos empréstimos.
Mas, no fim de fevereiro, uma dívida contraída quando os dois países-sócios passavam pela fase mais brutal de suas ditaduras teve sua última parcela quitada.
Agora, uma realidade inédita obriga ambos os governos a sentarem novamente à mesa de negociações.
Sem débitos, o tratado precisa ser revisto, e o Paraguai está ansioso para “corrigir” o que julga ser uma injustiça histórica, que permite ao Brasil adquirir o excedente energético por preço diferente do praticado no mercado aberto.
“Seja na esquerda, no centro ou na direita paraguaia, hoje existe uma certeza de que o tratado precisa ser modificado”, argumenta o professor Aníbal Orué Pozzo, coordenador do curso de especialização sobre relações bilaterais entre Paraguai e Brasil na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu, onde também fica o lado brasileiro da usina.
“É uma unanimidade o entendimento de que o Paraguai foi subalternizado pelo acordo e teve pouquíssimos benefícios com os termos atuais. É uma questão tão forte e tão clara que só as opiniões sobre a Guerra da Tríplice Aliança têm um consenso parecido na sociedade paraguaia”, compara o pesquisador, citando o trauma histórico do país com a invasão, ocupação e genocídio promovidos pelas forças aliadas de Brasil, Argentina e Uruguai ao final do conflito que, por aqui, é mais lembrado como a Guerra do Paraguai (1864-1870).
O que está em discussão agora não é o Tratado de Itaipu como um todo, mas uma parte específica dele conhecida como Anexo C.
É ali que está definida a divisão da energia produzida pela hidrelétrica, em partes iguais: Brasil e Paraguai têm, cada um, direito a 50% do que é gerado.
Segundo os especialistas ouvidos pelo Extra Classe, essa parte seria dificilmente alterada em uma renegociação. O problema começa quando a discussão chega ao excedente da energia produzida, já que o Paraguai nunca utilizou toda a sua porcentagem.
Pela interpretação atual do acordo, essa eletricidade é necessariamente vendida ao Brasil, por um valor predefinido que os paraguaios consideram desvantajoso – um estudo feito em 2019 pelo Centro para a Democracia, a Criatividade e a Inclusão Social, um think tank sediado no Paraguai, alega que o país havia deixado de ganhar US$ 75,4 bilhões com a venda de energia, desde que a usina começou a operar de fato, em 1985.
Ao todo, cerca de 80% do que é produzido por Itaipu acaba utilizado pelos brasileiros.
O que o Paraguai busca é garantir a possibilidade de fazer seu próprio preço, escolhendo o comprador.
Nesse cenário, o Brasil continuaria tendo a opção de compra, porém teria de concorrer com os preços oferecidos por outros vizinhos interessados, como Argentina e Bolívia.
O uso do excedente pelos próprios paraguaios também seria uma opção, mas, hoje, esbarra na falta de infraestrutura.
“Existe uma discussão na sociedade paraguaia de que o país não fez os investimentos necessários para usar da própria energia, não fez as linhas de transmissão, nem utilizou o dinheiro para construir infraestrutura e atrair indústrias”, aponta o economista José Luis Rodríguez Tornaco, ex-vice-ministro da Indústria e Comércio do Paraguai.
“Mas, independentemente disso, não há dúvidas de que a visão de ‘parceiro’ com o Brasil não existe. Como um irmão maior, um império na região, o Brasil encontrou terreno fértil para obter benefícios muito maiores com Itaipu.”
Há meio século, o Acordo de Itaipu é um tema central na política paraguaia, mas nem sempre a contrariedade pôde ser exibida publicamente.
Se naquele 26 de abril de 1973 em que o tratado foi assinado o Brasil estava sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, na fase mais repressiva da ditadura civil-militar por aqui, a situação não era muito melhor no lado paraguaio – que estava bem no meio dos quase 35 anos em que Alfredo Stroessner dominou os rumos do país.
À primeira vista, inclusive, pode parecer um bom negócio: a energia é abundante e barata para os paraguaios e, mesmo com um enorme excedente, Itaipu ainda resolve a imensa maioria das necessidades do país.
Enquanto no Brasil apenas 8% da eletricidade consumida provém da usina binacional, no Paraguai essa proporção chega a 85%.
Só que essa situação também gera dependência.
“Itaipu é muito mais importante para o Paraguai do que para o Brasil. É tão relevante para a economia paraguaia que, se há qualquer tipo de sinalização relacionada ao acordo, isso dá um abalo na estrutura política”, explica o advogado Eduardo Iwamoto, professor de Direito da Energia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Foi o que ocorreu em 2019, quando o presidente Mario Abdo Benítez aceitou secretamente um acordo pelo qual seu país abriria mão de parte da energia barata que vinha utilizando, o que encareceria a conta de luz para os paraguaios.
Abdo, que deixa o cargo no próximo dia 15 de agosto, quase sofreu impeachment em função disso.
Na ocasião, entrou em cena o outro lado das reclamações sobre uma suposta parceria injusta: se os paraguaios dizem que o Brasil paga menos do que deveria, os brasileiros acusavam os vizinhos de usar uma “artimanha” para baratear ainda mais seus custos e tentar receber essa diferença na marra.
À época, o preço médio da energia de Itaipu consumida pelo Brasil ficava em torno de US$ 41,45 por megawatt-hora (MWh), contra US$ 26,16 por MWh no Paraguai.
O argumento do então governo Jair Bolsonaro era que o Paraguai estaria dando uma espécie de golpe contábil: oficialmente, utilizava a energia considerada “excedente”, menos onerosa por não incluir os juros dos empréstimos históricos, e revendia ao Brasil a eletricidade produzida segundo o contrato original, com esses custos embutidos.
Além dos desacordos financeiros, a imposição da usina pelas duas ditaduras também teve consequências ambientais. A mais óbvia foi a destruição do Parque Nacional do Salto das Sete Quedas, engolido pelo lago artificial de Itaipu em 1982.
Desde a virada do século, produtores rurais de municípios vizinhos também vêm buscando indenização na Justiça por supostas mudanças no microclima regional causadas pela barragem, que teria afetado o regime de chuvas – a usina sempre tem vencido os processos em função da falta de comprovação de uma queda na produtividade agrícola.
Mesmo que Itaipu não tenha necessariamente prejudicado as chuvas, ela própria enfrenta as consequências das mudanças climáticas.
Especialistas já argumentam que não convém mais chamar uma hidrelétrica de “limpa”, pois a construção traz pesados impactos ambientais e sociais, mesmo que a produção de energia em si não envolva a queima de combustíveis fósseis.
Agora, a nova realidade também coloca em xeque a ideia de ser um sistema com produção renovável relativamente estável. A bacia do Rio Paraná, onde está a binacional, sofre com estiagens cada vez mais graves, um fator que também deve entrar na conta – em 2021, o rio enfrentou sua pior seca em pelo menos 91 anos.
A renegociação também abre margem para o Brasil repensar a enorme dependência desse tipo de energia: em 2022, cerca de 73,6% da eletricidade renovável consumida veio de fontes hidráulicas, com as usinas eólicas em um distante segundo lugar, abaixo de 15%.
Estudiosos do setor apontam a necessidade de investir em modais renováveis que não dependam dos recursos hídricos cada vez mais incertos, como o próprio vento e o sol, responsável atualmente por apenas 4% da geração nacional.
“Hoje, a precificação é uma das matérias mais difíceis, pois a produção depende de um recurso que nos anos 1970 não era escasso e hoje é: a água. As oscilações na precipitação têm um impacto na geração de energia e, se for adotado um conceito moderno na definição do preço, não teremos mais um valor pré-fixado, e sim flutuante conforme a produtividade e a demanda ano a ano”, resume Iwamoto.
O Brasil acha que paga demais, o Paraguai acredita que recebe pouco.
Certo é que, na mesa de negociações, será preciso chegar a um novo acordo a partir deste ano.
No cenário visto como ideal pelos paraguaios, o excedente poderia ser “leiloado” no mercado aberto, com o Brasil enfrentando concorrência.
Mas também é possível que, mesmo que o valor pela energia em si aumente, o fim da dívida – até agora embutida na tarifa – faça com que a conta não mude tanto assim para o consumidor brasileiro, ou até barateie em um ano com bom volume de chuvas e produção abundante.
Quando a renegociação chegar, os dois países estarão com governos em seu primeiro ano, já que o Paraguai elegeu seu novo presidente em 30 de abril.
Embora tanto o partido governista quanto a oposição devam apresentar demandas parecidas, a relação pessoal do futuro mandatário com Luiz Inácio Lula da Silva também poderia influenciar o acordo.
Em 2009, quando Fernando Lugo era o primeiro presidente de esquerda em Assunção, e Lula ainda cumpria seu segundo mandato, a afinidade entre os dois garantiu uma revisão do tratado com uma série de pontos que aumentaram – pelo menos no papel – a autonomia paraguaia.
Agora, a esquerda não estará no poder no Paraguai, mas as memórias daquele acordo trazem esperança do lado de lá da fronteira.
“As expectativas são altamente positivas porque se espera uma visão muito mais desenvolvimentista de Lula a respeito do Paraguai. (No acordo de 2019) Bolsonaro encontrou um Abdo Benítez complacente, que cedeu à maioria das exigências do Brasil”, entende Rodríguez Tornaco.
Ainda não existe uma linha do tempo para concluir as conversas. Enquanto o Anexo C não é modificado, devem seguir valendo os termos atuais, a menos que os países concordem com uma regra de transição temporária.
Em março, durante a posse do novo diretor-geral brasileiro da usina, Enio Verri, Lula prometeu “um tratado que leve muito em conta a realidade dos dois países e o respeito que o Brasil tem por seu aliado”.
Para Orué Pozzo, é inevitável que as relações extrapolem a situação da Itaipu propriamente dita.
“É preciso pensar em um entendimento amplo, em como esse tratado afetará as relações bilaterais, o comércio, as tensões e as fronteiras simbólicas que cercam a usina, além das necessidades energéticas dos dois países e até de seus vizinhos”, afirma o pesquisador.
“O Itamaraty deve entender que o Paraguai é um país soberano e essa negociação afeta toda a geopolítica regional. E isso nem sempre esteve presente”, conclui.
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50 anos depois, renegociação de Itaipu estremece parceria Brasil-Paraguai - Instituto Humanitas Unisinos - IHU