28 Fevereiro 2023
"Participar da Campanha da Fraternidade 2023 não consiste em apenas enviar recursos para aplacar a fome de comunidades como a dos Yanomami, mas lutar por reforma agrária, valorizar a agricultura familiar, a economia solidária e as cooperativas populares. Como dizia Josué de Castro, a fome não decorre da má vontade de São Pedro, culpado da falta de chuvas. É uma questão política. E pela política deve ser erradicada", escreve Frei Betto, escritor, autor de “Fome de Deus – fé e espiritualidade no mundo atual” (Paralela/Companhia das Letras), entre outros livros.
“Fraternidade e fome” é o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, que se iniciou na Quarta-feira de Cinzas. Promovida há 60 anos pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), coincide com uma das prioridades do governo Lula – retirar, de novo, o Brasil do Mapa da Fome da ONU, reincluído após o golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma, em 2016.
Você já passou fome? Talvez tenha se privado de um café da manhã para fazer exame médico. Eu sim, na greve de fome de 36 dias, quando preso político sob a ditadura militar. Apenas tomava água e, a partir do 12º dia, o médico da penitenciária aplicava soro na veia.
No clássico “Quarto de despejo”, a escritora e favelizada Carolina Maria de Jesus descreve que “a fome é um soco no estômago”. E, também, pancada no crânio, porque a dor de cabeça chega a ser insuportável. O mais difícil é resistir à privação de alimentos na primeira semana. O organismo “grita” como fera indomável. Após a tempestade, vem a bonança. Aquietado o instinto, experimenta-se intensa exuberância espiritual. Deve ser esta a razão por que monges antigos faziam prolongados jejuns.
Hoje conhecemos a fome pelas fotos dos Yanomami desnutridos por culpa da devastação da floresta promovida pelo garimpo ilegal. Nem o governo Bolsonaro escondeu que há 33,1 milhões de famintos crônicos no Brasil, e 125,2 milhões em insegurança alimentar.
Como alertam os bispos no documento da Campanha da Fraternidade, “a fome é uma realidade no Brasil. E este fato não pode ser negado. Ela é o flagelo de uma multidão de brasileiros. Mas no Brasil não falta alimento. A cada ano, o país bate recordes de produção de milho, soja, trigo, cana-de-açúcar, carne etc.” (29).
Não falta comida no Brasil e no mundo. Falta justiça. Vemos frequentes campanhas de doações de alimentos para socorrer populações carentes. Raras as que apontam as causas da fome em um país considerado celeiro do mundo. Os bispos não se omitem. Ressaltam que “uma das principais causas da fome no Brasil é a sua estrutura fundiária” (46).
A falta de reforma agrária; a devastação de nossos biomas para ampliar pastos e áreas de monoculturas; a mineração predatória e o garimpo ilegal, figuram entre as causas. “Some-se a isso, uma política agrícola perversa, que coloca o sistema produtivo a serviço do sistema econômico-financeiro” (47).
Jesus não ficou indiferente diante do povo faminto. Promoveu a partilha dos pães e dos peixes, conforme descrito nos evangelhos de Mateus (14,13-21), Marcos (6,31-44) e João (6,1-15). Em vez de dar dinheiro para que a multidão comprasse comida, como sugeriram os discípulos, fez o povo se organizar “em grupos de cem e cinquenta” e socializar as provisões que possuía. Ao contrário do que muitos pensam, não houve “multiplicação” de pães e peixes, houve sim partilha, conforme explico em meu livro “Jesus militante” (Vozes).
Em suma, havia ali - onde se encontravam Jesus e os discípulos com a multidão (5 mil pessoas, informa Marcos no fim do episódio) -, muitos pães e muitos peixes. Se, hoje, uma multidão se reunir na praça principal da cidade, imediatamente surgem vendedores ambulantes com as mais variadas ofertas: cachorro-quente, pastel, empada, doces, refrigerante etc. O mesmo deve ter ocorrido na ocasião. A diferença é que não havia carrinhos para transportar pães e peixes. Foram levados em cestos.
“Então, Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu a seus discípulos para que distribuíssem. Repartiu também os dois peixes entre todos. As cinco mil pessoas comeram e ficaram saciadas. E ainda foram recolhidos doze cestos cheios de pedaços de pão e de peixes”, narra Marcos.
No tempo de Jesus, como ainda hoje em muitos lugares e famílias, era costume orar antes de comer. Detalhe interessante – “ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços de pão e de peixes”. Ora, se ao final os alimentos que sobraram encheram doze cestos, isso prova que havia ali muito mais pães e peixes a serem vendidos à multidão.
Alguém poderia objetar que nego o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Notem que, em nenhum momento aparece nos relatos evangélicos a palavra multiplicação. Isso consta em intertítulos de algumas edições dos evangelhos. E intertítulos não fazem parte dos textos sagrados. São acréscimos feitos pelos editores para facilitar a leitura.
Não houve mágica, e sim milagre. Milagre é o poder divino de alterar o rumo natural das coisas. Esse poder age sobretudo no coração humano. Portanto, houve sim milagre. Jesus induziu os vendedores ambulantes, portadores de cestos, a partilharem seus bens, os pães e os peixes.
Vale observar que todos os milagres de Jesus foram de revitalização de algo preexistente: a menina ressuscita; o mudo volta a falar; o cego passa a enxergar. Não há nenhum milagre de acréscimo como, por exemplo, encontrar um homem que não tinha um braço e recuperar o membro.
Participar da Campanha da Fraternidade 2023 não consiste em apenas enviar recursos para aplacar a fome de comunidades como a dos Yanomami, mas lutar por reforma agrária, valorizar a agricultura familiar, a economia solidária e as cooperativas populares. Como dizia Josué de Castro, a fome não decorre da má vontade de São Pedro, culpado da falta de chuvas. É uma questão política. E pela política deve ser erradicada.
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Fome é tema 2023 da Igreja Católica. Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU