15 Dezembro 2022
Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, quer que julgamento seja realizado em plenário do Supremo Tribunal Federal. Ação dá prazo de 60 dias para que a União emita portarias de restrição de uso para territórios de povos isolados.
A reportagem é de Vivianny Matos, publicada por Amazônia Real, 13-12-2022.
Na segunda-feira (12), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Nunes Marques suspendeu o julgamento da ação que obriga a União a garantir a proteção integral dos territórios de povos indígenas isolados e de recente contato. O ministro Edson Fachin havia determinado, em caráter liminar, que o governo federal tem 60 dias para apresentar um plano para garantir essa proteção. Por ter entrado com um pedido de destaque, Kassio Nunes, indicado por Jair Bolsonaro (PL), obriga que o julgamento recomece do zero, em sessão plenária do Supremo, e já sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A liminar, contudo, continua válida.
A ação judicial, apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), cobra omissões da gestão de Bolsonaro por estarem colocando em risco de genocídio etnias inteiras. Fachin quer que o governo federal emita portarias de restrição de uso para territórios de povos isolados que estão fora ou parcialmente fora de Terras Indígenas (TIs), bem como crie planos de proteção. Ainda dentro desse prazo, o governo tem que apresentar um plano de ação para regularização e proteção das terras indígenas desses povos.
O Conselho Nacional de Justiça vai instalar um grupo de trabalho, sem prazo para finalização, para acompanhar as ações judiciais relacionadas à efetivação dos direitos desses indígenas.
De acordo com a Apib, foram registrados 114 povos isolados e de recente contato, localizados na Amazônia Legal. Destes povos, mais de 40 estão parcial ou totalmente fora de TIs demarcadas ou reconhecidas. Pelo menos 17 deles estão situados em regiões com altos índices de desmatamento, o que expõe indígenas isolados às áreas de extremo risco, como no sul do Amazonas e em Mato Grosso, além de não contarem com a proteção territorial.
Tanaru em imagem do documentário Corumbiara de Vincent Carelli (Foto: Reprodução Vídeo nas Aldeias)
A Amazônia Real recebeu denúncias de que existe a possibilidade de invasão à TI Tanaru, onde vivia o “Índio do Buraco”, que só foi sepultado em seu território em 4 de novembro, mais de 70 dias após ter sido encontrado morto, em sua maloca. Na ação, a Apib relatou essa morte, em especial, e pediu a concessão da medida cautelar para a manutenção da portaria de restrição de uso da TI.
Após terem conhecimento da morte do indígena, que optou por viver em isolamento voluntário durante décadas, fazendeiros da região enviaram à Funai pedidos para a revogação da portaria de uso da terra indígena. O objetivo é se apossar do território, que não é demarcado e também está na mira de madeireiros.
Na semana passada, os fazendeiros que residem próximo da terra indígena foram notificados pessoalmente pelo Ministério Público Federal (MPF) de Rondônia de que não podem entrar na área que está sendo protegida. Caso seja descumprida a notificação, o MPF pode adotar medidas judiciais para responsabilizar quem ingressar no terreno sem autorização.
“Invasores podem responder pelos crimes de dano qualificado, dano em coisa de valor arqueológico e histórico e vilipêndio a cadáver. Na área está a maloca em que o índio do buraco foi sepultado e outros locais sagrados, além de sítios de valor histórico, cultural e ambiental. A Terra Indígena Tanaru está localizada em grande parte em Corumbiara (RO), tem interdição de Restrição de Uso e Ingresso (Portaria nº 1040, de 27/10/2015, da Funai) e é cercada por cinco fazendas com áreas desmatadas para atividades de criação de gado e lavoura mecanizada”, diz um trecho da nota emitida pelo MPF.
Mauricio Terena em ato pela democracia na USP com o presidente Lula (Foto: Ricardo Stuckert)
Para Maurício Terena, advogado da Apib, o maior desafio de resguardar os direitos de terras indígenas de povos isolados e de recente contato é o poder público fazer um controle e expedir as portarias de restrição de uso.
“Primeiro, é preciso evidenciar que essa é uma dinâmica complexa que envolve diversos fatores. Porém, o que a gente atribui dentro dessa ação, proposta no STF, é que a proteção dessas Terras Indígenas são feitas por mecanismos jurídicos específicos, que são as portarias de restrição de uso”, afirma Terena. Segundo ele, essas portarias protegem esse território juridicamente perante o Estado, a sociedade e os agentes econômicos. “É por meio delas que o Estado se manifesta dizendo ‘Olha, essa terra tem restrição de uso porque existem ali povos indígenas isolados e de recente contato’.”
O advogado explica ainda que, conforme as portarias foram vencendo, durante a gestão de Bolsonaro, a administração pública não tinha um controle adequado, o que não permitiu a renovação delas. “Era necessário que alguma organização, como a Apib mesmo fez por meio da ADPF 709, pedisse a renovação das portarias de restrição. Esse é um gargalo que eu entendo como fundamental”, completa.
Maurício Terena também lembra que existem os outros problemas de ordem de exploração econômica, como a invasão de madeireiros e cita o exemplo da TI Piripkura, além do agronegócio e da desestruturação das fiscalizações dos órgãos de proteção ambiental e da Funai, durante o atual governo.
O documento da Apib, que dá base à ação judicial, reitera que as Bases e Frentes de Proteção Etnoambiental são ameaçadas cotidianamente pela presença dos mais variados invasores nos territórios indígenas, sendo eles: madeireiros, garimpeiros, pescadores, caçadores, narcotraficantes, missionários, latifundiários e grileiros.
Outro ponto abordado é o fato da Funai ter emitido a Portaria nº 419/PRES/2020, que deu a possibilidade de unidades administrativas regionais autorizarem contatos com grupos indígenas isolados, alterando a prerrogativa exclusiva da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), desenvolvida há mais de 30 anos. Com a oposição das organizações indígenas, a Funai não deu continuidade à proposta. Contudo, Bolsonaro sancionou a Lei 14.021/2020, que permitiu a entrada de missionários religiosos em TIs de povos isolados.
A Apib aponta que existem várias denúncias de missionários envolvidos em perseguições em áreas onde vivem povos isolados, como na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, e que desde setembro de 2019, os líderes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) têm alertado para as atividades missionárias que tem como foco os povos indígenas isolados. A organização relembra que é um desejo desses povos de não manter contato e de se isolarem, diretriz acatada pelo Estado brasileiro em 1987.
Mobilização dos indígenas em Brasília na Esplanada dos Ministérios contra o PL 490 e contra o marco temporal (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Outra grave ameaça do governo atual aos povos da floresta é o marco temporal. Defendido amplamente pelo presidente Bolsonaro e pela bancada ruralista, o estabelecimento de um marco legal prevê que só poderão ser consideradas terras indígenas os territórios registrados até a Constituição Federal de 1988. Não há nenhum artigo na Constituição que determine ou especifica uma data de ocupação para que seja levada em consideração as demarcações nas TIs. O artigo 231 afirma que cabe à União demarcar e proteger os indígenas e seus territórios.
Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), em 2021 existiam cerca de 235 TIs com o processo de demarcação não concluído, ou seja, 95 mil quilômetros quadrados, o que equivale a 10% da região Sudeste. A maior parte desses territórios estão localizados na Amazônia Legal. As constantes invasões às TIs ameaçam a sua cultura e a sua própria sobrevivência, uma vez que esses povos estão cercados de grandes agricultores, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Na maioria dessas áreas, há conflitos intensos e o avanço do desmatamento, o que prejudica a caça e a pesca, fundamental para a subsistência dos indígenas.
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Ministro suspende ação sobre proteção de indígenas isolados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU