19 Novembro 2022
A autêntica tradição cristã não pode (nem deve) ser pensada como um bloco monolítico, a ser transmitido de forma mumificada e repetitiva. É uma tradição aberta e inovadora, constantemente em crescimento, que tem (e não pode deixar de ter) como farol a fidelidade à lógica da encarnação.
A opinião é do teólogo e padre italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas.
O artigo foi artigo publicado na revista Rocca, n. 22, 15-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O artigo foi reproduzido, originalmente, pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 17-12-2022.
A intervenção do bispo [Luigi] Bettazzi que apareceu nestas páginas sobre o tema do início da vida humana pessoal – intervenção como sempre muito lúcida – abre o debate para uma reflexão que vai além das habituais (e convencionais) análises propostas pela pesquisa científica e pela própria tradição eclesial.
O sugestivo e significativo título “Posterius” alude à hipótese feita e desenvolvida no artigo com argumentações rigorosas: a do adiamento do início da vida humana pessoal em relação às teses habitualmente recorrentes. Por isso, merece ser objeto de uma atenta consideração e de um estudo mais aprofundado.
É o que nos propomos fazer com este artigo, que, assumindo a hipótese do bispo emérito de Ivrea, abre-se – como ele mesmo nos exorta a fazer no fim da sua intervenção – a maiores aprofundamentos, abordando a delicada questão do aborto a partir a partir de novos pressupostos e de uma nova perspectiva interpretativa.
Acima de tudo, como premissa, é preciso dizer que o momento da origem da vida pessoal humana nunca pode ser totalmente circunscrito, estando radicado no coração do mistério.
A esse respeito, o bispo Bettazzi tem razão ao denunciar os limites de uma ciência que tem a pretensão de “explicar tudo” e cujos resultados às vezes são considerados absolutos. O tema aqui em exame confirma esses limites.
As hipóteses levantadas são mais de uma, e cada uma é proposta como cientificamente fundamentada. Vai-se daquelas pessoas que consideram que a vida pessoal tem início no próprio ato da fecundação; às pessoas que defendem que tal evento deve ser deslocado para 13/14 dias depois, quando o óvulo fecundado se implanta na cavidade uterina e ocorre uma relação simbiótica com a figura materna; até aquelas pessoas que o fazem coincidir com a formação do processo de cerebralização (e assim por diante).
Mas Bettazzi não se contenta em denunciar o limite. Ele se preocupa sobretudo com a motivação, introduzindo, a esse respeito, a distinção entre uma forma de conhecimento racional de natureza intelectualista e calculista – a forma cartesiana à qual ele mesmo alude diretamente – que tem como referência o mundo do “eu”, e uma forma de conhecimento intuitivo que tem um caráter existencial e relacional, e que se refere ao mundo do “nós”.
A distinção introduzida pela hermenêutica entre “explicar” e “compreender” é aqui proposta sob outra roupagem: no primeiro caso – explicar – a presunção é de que tudo pode ser objetivado e circunscrito com precisão em seus contornos; no segundo – compreender – emerge a convicção de que o conhecimento dos processos humanos a partir daquele em que nos tornamos pessoas ocorre por meio de uma ampla troca relacional na qual se fundem horizontes de sentido diferentes e que se apresenta como permanentemente aberto. Está em jogo aqui – diria Gabriel Marcel – a oposição entre “problema” e “mistério”: o primeiro, circunscritível e solucionável; o segundo, nunca totalmente exaurível.
Voltamos assim ao tema inicial, ou seja, ao mistério das origens da vida. Com o acréscimo de que, do ponto de vista de um conhecimento intuitivo, em que a “compreensão” implica a adesão a um modelo de razão que envolve a relação com o “nós”, a mulher adquire um papel muito particular, aquela que vive a maternidade e a sua interrupção em primeira pessoa e que, portanto, é portadora de uma experiência singular e irrepetível, marcada por um envolvimento existencial único que lhe permite perceber em profundidade o significado de que se reveste a vida nascente e “sentir” (de “sentimento”), e portanto não apenas “saber”, o valor que ela possui e que não pode ser encerrado, em nenhum caso, dentro de esquemas pré-definidos.
Nesse ponto, abre-se a reflexão sobre o aborto, com uma imediata implicação de ordem ética. Se é verdade o que foi dito até aqui, então parece claro que o sujeito chamado, em última instância, a decidir sobre a interrupção da gravidez deve ser a mulher, que, porém, só pode tomar tal decisão dentro de uma rede de relações, que vão desde a relação com o marido ou o companheiro, sempre que possível, até o envolvimento responsável de toda a sociedade.
Afinal, não são esses os dois pilares sobre os quais se baseia a lei 194 [na Itália]? A clara afirmação do princípio da autodeterminação da mulher é acompanhada pelo dever de lhe dar apoio por parte da sociedade – a passagem pelo consultório foi desejada com essa função – que não pode (nem deve) deixá-la sozinha diante de um evento tão traumático quanto a interrupção da gravidez.
No entanto, a discussão não se detém nesse ponto. A questão que retorna aqui é a momento a partir do qual se pode falar em aborto. Aqui volta o problema do início da vida humana pessoal, que Bettazzi acredita que deva ser colocado não antes do quarto mês, ou seja, a partir do momento em que o indivíduo se desprende como corpo autônomo com a capacidade de viver e respirar autonomamente: antes disso – observa ele – tratar-se-ia de uma substância destinada a se tornar pessoa sem sê-lo. Isso implica que a supressão da vida ocorrida nos primeiros meses de gravidez, por mais grave que seja, não pode ser qualificada como “homicídio”.
Pode-se concordar mais ou menos com a hipótese do bispo emérito de Ivrea (hipótese que eu compartilho pessoalmente), mas é certo que o momento do início da vida pessoal deve ser deslocado para muito além do ato da fecundação, e que isso implica que não se pode falar em sentido estrito de aborto, a menos que a uma considerável distância desse evento.
Isso implica que, na avaliação do recurso à interrupção da gravidez, deve-se privilegiar acima de tudo as motivações subjetivas, sem por isso descurar a exigência de ponderar o peso moral objetivo da ação – não há ato humano que seja totalmente “neutro” – que, como foi mencionado, apresenta sempre uma certa gravidade.
De fato, uma coisa é recorrer à interrupção da gravidez por superficialidade ou por egoísmo, outra é recorrer a ela porque se foi vítima de violência ou de estupro e se está na condição psicológica (às vezes até mesmo física) de rejeitar essa maternidade com repercussões às vezes negativas até para o desenvolvimento da personalidade da criança. O julgamento ético, portanto, deve ser diferenciado de acordo com os casos.
Uma última consideração. Tudo isso contrasta – pergunta-se o bispo Bettazzi – com a doutrina tradicional da Igreja? A resposta só pode ser afirmativa. Mas não se pode (nem se deve) esquecer que essa doutrina sempre foi afetada pelos condicionamentos socioculturais e pelos saberes científicos da época: o que explica a diversidade das posições assumidas nas diversas épocas históricas desde a Patrística até à da Escolástica, em particular de Tomás de Aquino.
Por que não se deveria hoje, na presença de conhecimentos científicos mais precisos e de uma maior possibilidade de detecção das experiências existenciais femininas, rever e repensar seus conteúdos? A autêntica tradição cristã não pode (nem deve) ser pensada como um bloco monolítico, a ser transmitido de forma mumificada e repetitiva. É uma tradição aberta e inovadora, constantemente em crescimento, que tem (e não pode deixar de ter) como farol a fidelidade à lógica da encarnação.
A coragem de mudar, no pleno respeito da substância evangélica, é o caminho a ser percorrido para torná-la credível e universalizável.
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No coração do mistério da origem da vida: quando nos tornamos pessoas. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU