Candidatos do PL recrutam fiscais pelas redes sociais; grupos estimulam eleitores a desobedecer mesários.
A reportagem é de Bruno Fonseca, Laura Scofield, Bianca Bortolon, Ethel Rudnitzki, Milena Mangabeira, João Barbosa e Julianna Granjeia, publicada por Agência Pública, 01-10-2022.
Os crachás chegaram pelo correio quatro dias antes das eleições. Haviam sido postados no mesmo dia, com selo de urgente, pelo comitê de Cleonice de Oliveira, a chamada Dra Cléo, candidata a deputada federal em São Paulo pelo PL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Os três pedaços de papel estavam entre os muitos enviados pela candidata a quem se voluntariasse para fiscalizar as eleições deste ano para “evitar” supostas fraudes.
O recrutamento da Dra. Cléo começou bem antes da última semana de campanha. Ao lado de um carro de som na Avenida Paulista, nos atos pró-Bolsonaro de 7 de setembro, a política distribuiu panfletos e até credenciais para fiscais voluntários. Quem se interessasse, poderia entrar em um grupo de WhatsApp no qual haveria mais informações sobre a fiscalização — e vídeos com informações falsas sobre fraude nas urnas, segundo apurou a Agência Pública.
Em entrevista ao UOL, candidata afirmou que sua intenção é “intimidar [os] mesários para [não] fazer besteira”. “Se alguém [mesário] ousar a querer tirar o celular da mão das pessoas, você [fiscal] vai dizer que ‘ele não tem poder para isso’”, disse. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu o uso de celulares na cabine de votação e ordenou que sejam deixados com os mesários ou em um local visível para proteger o sigilo do voto.
Em parceria com o Aos Fatos e o Núcleo Jornalismo, a Pública apurou que a Dra. Cléo não é a única a convocar fiscais alegando riscos de fraude. Ao menos outros sete candidatos bolsonaristas estão cadastrando eleitores pelas redes sociais e grupos de WhatsApp e Telegram para fiscalizarem as eleições. Os grupos que recrutam também espalham informações falsas e suspeitas sobre a segurança do sistema eleitoral.
A lei eleitoral garante a existência de fiscais sob determinadas regras para garantir mais transparência no processo de votação. De acordo com a Resolução Nº 23.669 do TSE, é necessário que os crachás sejam assinados e que os responsáveis pela organização dos fiscais dentro dos partidos se apresentem à Justiça Eleitoral. Somente dois fiscais podem acompanhar o trabalho da mesa receptora por vez.
No grupo de WhatsApp da Dra Cléo, além de declarações de apoio a Bolsonaro circularam vídeos com informações falsas sobre fraude nas urnas. Um deles, que já foi desmentido pelo próprio TSE, afirma que a mensagem de “confira o seu voto” — que irá aparecer nas urnas após o eleitor digitar o número do candidato —, poderia anular o voto.
É pelo grupo que uma assistente da Dra Cléo recolheu informações de endereço dos fiscais voluntários. A reportagem da Pública obteve três desses crachás, enviados pelo correio no dia 28 de setembro.
Foto: Bruno Fonseca | Agência Pública
Os crachás, contudo, vieram sem assinatura do coordenador, o que é uma requisição da Justiça Eleitoral. Como explica o membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), o advogado Marcelo Weick, os crachás de fiscais de partidos precisam estar assinados por pessoas cadastradas junto à Justiça Eleitoral. “O partido político precisa informar à Justiça Eleitoral quem está autorizado a assinar a portaria de fiscal, a credencial”, explica.
Após questionamentos no grupo que os crachás estavam sem assinaturas, um número identificado como assistente da candidata instruiu os voluntários a rubricarem por conta própria os crachás, como se tivessem sido assinados pela própria política.
Foto: Reprodução
Um áudio, enviado por um número informado no grupo como da coordenação da campanha, que teria sido gravado pela Dra Cleo, diz: “Fiquem em paz, vamos rubrificar [sic] esses crachás. Estou autorizando vocês a fazerem uma rubrica e colocarem meu nome aí, Dra Cleo de Oliveira. Falo para vocês que a nossa agora é para cima deles, vamos fiscalizar, vamos nos colégios, vamos nos preparar, amanhã um advogado vai estar falando aqui com vocês, vai estar passando aqui as instruções e se acalmem! Nós vamos lá para defender os nossos candidatos, vamos estar lá para lutar por um Brasil melhor”, diz o aúdio.
A reportagem questionou a candidata através do contato da sua campanha sobre a instrução para os voluntários assinarem em seu lugar, mas não obteve retorno até a publicação.
Na noite do dia 29 de setembro, o candidato Pedrinho Minas Acontece, que disputa uma vaga como deputado estadual em Minas Gerais pelo União Brasil, publicou um vídeo em que alegava ter recebido informações da “central de inteligência” de Jair Bolsonaro que afirmavam que o PT, partido do atual líder das pesquisas, Luís Inácio Lula da Silva, vai fazer boca de urna e “colocar fiscais em todas as seções eleitorais no Brasil inteiro para poder tumultuar o processo de votação”.
“O Bolsonaro precisa de vocês agora como fiscais no dia da votação. Vamos vigiar, não adianta depois chorar se foi fraudada”, argumenta.
“Se cada fiscal do Bolsonaro ficar na seção que ele vota, por exemplo, e ao terminar a votação imprimir na urna eletrônica os votos para quem foi e do jeito que foi, a gente tem como saber antes de ir pra tal sala secreta o resultado da eleição. Se a gente vigiar vai ter como contestar. Essa é uma orientação que o próprio Bolsonaro deu, tá?”, disse Pedrinho. A “tal sala secreta” é desinformação. Na verdade, não existe sala secreta: a sala de totalização dos votos pode ser acessada por observadores para garantir a transparência do processo.
Major Vitor Hugo, atual deputado federal e candidato ao governo de Goiás pelo partido do presidente, também buscou fiscais nas redes sociais. “Estamos recrutando um exército de fiscais e delegados do PL”, disse. “Essa é a chamada que o Capitão e o Major estão fazendo pra vocês”.
Ellen Miziara, candidata a deputada federal por Minas Gerais pelo PL, tentou trazer mais voluntários espalhando dúvidas sobre a segurança do sistema eleitoral: “Você confia nas urnas eletrônicas? Pois é… Não podemos permitir que a esquerda volte ao poder no tapetão, no jogo sujo. Venha ser Fiscal Voluntário do Bolsonaro e vamos levar essa no 1° turno!”, escreveu em uma publicação na madrugada do dia 30 de setembro.
O candidato a deputado estadual por São Paulo, Claudio Fernando (PL) chegou a pagar cerca de R$ 100 para impulsionar seu convite aos voluntários no Facebook. “O momento é de desconfiança e juntos podemos fiscalizar as urnas! E ajudar o nosso Presidente @jairmessiasbolsonaro Venha buscar o seu crachá, estou te aguardando!”, justificou ele.
Foto: Reprodução
Heckel Pedreira, que se apresenta como presidente do PTB de Camaçari e é candidato a deputado federal pela Bahia, e Douglas Gomes (PL), candidato a deputado estadual pelo Rio de Janeiro, também usaram as redes para procurar fiscais.
Uma corrente no WhatsApp atribuída a Danny Villas Bôas, candidata a deputada estadual pelo Republicanos no Rio de Janeiro, circulou chamando voluntários para o partido. Em retorno à reportagem, a candidata disse que não escreveu a mensagem e não cadastrou nenhum fiscal.
Foto: Reprodução
Até um site foi criado com base na mesma narrativa: fiscaisdomito.com.br. Várias mensagens que divulgavam o site pediam voto para Gilson Machado Neto (PSC), que concorre ao Senado por Pernambuco e é ex-ministro do Turismo de Jair Bolsonaro.
Para a advogada eleitoral Ana Carolina Clève, o movimento de busca de fiscais nas eleições deste ano tem sido atípico.
“Eu acho que faz parte desse novo contexto que nós estamos vendo, e me parece um apelo que já presume que há alguma irregularidade. É como se até descredibilizasse um pouco a Justiça Eleitoral. Eu nunca vi esse apelo para as pessoas ficarem vigilantes”, disse. Clève também conta que o uso de mentiras sobre a segurança das urnas na convocação de voluntários “é um fenômeno novo”. “É uma narrativa bolsonarista evidentemente”, conclui a advogada.
“Seria muito bom em cada Estado em cada cidade em cada bairro em cada seção eleitoral tenha [sic] um fiscal do Bolsonaro credenciado pelo PL”, diz uma mensagem no grupo Direita Rio de Janeiro no WhatsApp. Esta é uma dentre as muitas mensagens em grupos bolsonaristas no WhatsApp e Telegram coletadas pela reportagem que chamam apoiadores do presidente a atuarem na fiscalização dessas eleições.
A reportagem também identificou a existência de sites e mensagens em grupos que incentivam as pessoas a se cadastrarem para ser fiscais, sem nenhuma indicação ou informação concreta de como isso se daria. Um dos exemplos é o site Fiscais do Mito, mantido pela empresa MQS Assessoria e Gestão, que não consta como fornecedora de nenhum candidato de acordo com os dados parciais de prestação de contas da Justiça Eleitoral.
Uma mensagem que divulga o site apareceu cinco vezes em levantamento do Radar Aos Fatos no Telegram. Diz que os fiscais seriam importantes para “evitar mesários [de] votar no lugar dos faltosos no final do expediente e pedir uma cópia do boletim de urna para entregar ao PL”.
A Justiça Eleitoral garante que os mesários não são capazes de alterar votos e nem a contagem dos resultados. Também é mentira que as justificativas dos eleitores ausentes poderiam ser fraudadas e transformadas em votos. O papel do mesário na votação não é ajudar nenhum candidato, mas garantir que tudo ocorra como determina a lei eleitoral, checando os documentos dos eleitores, por exemplo.
De acordo com a descrição do site, a intenção do projeto é “facilitar a gestão dos fiscais, delegados, advogados e voluntários que ajudarão nos trabalhos realizados no dia da votação”. Também diz que somente a “coordenação da campanha” terá acesso aos dados de quem se cadastrou para ajudar na “reeleição de Bolsonaro presidente”. O Fiscais do Mito foi citado ao menos 34 vezes no Telegram e 15 vezes no WhatsApp na última semana, de acordo com monitoramento do Radar Aos Fatos. O levantamento considera 1299 comunidades no Telegram e 287 grupos no WhatsApp.
Existem ainda o site Fiscal de Urna, que seria “uma iniciativa popular com o objetivo de reunir voluntários para colaborar com a fiscalização e transparência no processo eleitoral de 2022” e o Você Fiscal, que pede que as pessoas mandem foto dos boletins de urna colados nas seções eleitorais para apuração paralela.
Parte da convocação de fiscais em grupos bolsonaristas é alimentada por acusações sem comprovação de que mesários e funcionários da Justiça Eleitoral estariam sendo treinados para invalidar votos de bolsonaristas.
Uma delas, compartilhada em canais no Telegram e no WhatsApp, afirma que funcionários públicos e diretores de escolas teriam viajado para Europa este ano para ter treinamento de como fraudar as Eleições. O texto convida pessoas a vasculharem redes sociais pessoais de diretores e funcionários de escolas onde irá ocorrer votação e também incita eleitores a gravarem o momento do voto.
A utilização de celulares — proibida pelo TSE no momento da votação — é um dos pontos mais comuns em mensagens que apontam o que eleitores podem fazer para impedir as supostas fraudes nas votações nos grupos bolsonaristas. Várias delas dizem explicitamente para que os eleitores desafiem as ordens da Justiça Eleitoral: “Tem que peitar o mesário e levar celular pra cabine pra filmar o processo e provar qualquer fraude que houver!! Peitar mesmo, partir pra cima do sistema! A polícia está conosco, dia 02 somos AUTORIDADE nas ruas do Brasil!”, diz um dos textos apócrifos.
A incitação de eleitores contra mesários tem gerado preocupação para quem irá atuar nessa função e também para a Justiça Eleitoral. “Aqui em Guarulhos foi convocada uma reunião presencial com todos os presidentes de mesa. A maior parte da reunião foi sobre a importância de nós mesários evitarmos confrontos no dia da votação”. A parte de segurança foi o assunto principal, contou à reportagem Ana Carolina González, de 41 anos, que irá trabalhar como mesária pela 12ª vez. “É a primeira vez que vejo essa preocupação no curso”, comentou.
A reportagem teve acesso a um fluxo elaborado pelo TRE-SP que instrui mesários a lidar com situações onde há maior potencial de conflito: se o eleitor se recusar a deixar o celular com a equipe, se insistir em tentar gravar a urna, se alegar que o candidato não aparece na urna. “Em geral, entre os mesários, dá pra perceber que as pessoas estão com receio”, completa González.
Para a advogada Ana Carolina Clève, a presença de muitas pessoas querendo fiscalizar a eleição pode tumultuar as seções eleitorais neste domingo. Apenas a presença de dois fiscais devidamente cadastrados é prevista pela lei eleitoral e as zonas já são preparadas para recebê-los. “Existe um trabalho para manter ali a ordem para que não haja tumulto, então isso de ir de repente fiscais, cidadãos de todo lado querendo fiscalizar o trabalho pode causar uma desordem na sessão eleitoral”, explica.