08 Setembro 2022
Salários a meio mastro, governo que não consegue conter a inflação, Brexit... O Reino Unido vive um coquetel explosivo, do qual as greves atuais são um exemplo revelador. Neste contexto, a identidade da sucessora [Liz Truss foi eleita terceira terceira primeira-ministra do Reino Unido] de Boris Johnson na Downing Street, 10 torna-se repleta de desafios.
A reportagem é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 01-09-2022. A tradução é do Cepat.
Time for strike! (Hora de greve!) Nas últimas semanas, as greves se multiplicaram no Reino Unido. Em Felixtowe, o maior porto de carga do país, 1.900 estivadores cruzaram os braços no dia 21 de agosto e ficaram parados durante oito dias a pedido do sindicato Unite. Em Londres, os funcionários do aeroporto de Stansted pararam o trabalho no final de agosto, assim como os coletores de lixo nos distritos londrinos de Newham e Edimburgo.
A pedido de um sindicato do setor ferroviário (RMT), os movimentos sociais também se multiplicaram nos trilhos em meados de agosto, seja no metrô de Londres ou em quatorze companhias ferroviárias que compartilham a operação da rede ferroviária britânica. E a lista ainda poderá aumentar: “É provável que os movimentos se espalhem para o setor da educação e saúde desde o início do ano letivo”, antecipa Sophie Loussouarn, professora da Universidade da Picardia e especialista em política britânica.
“O Reino Unido não vivia tal situação social desde 1979”, analisa Jacques Freyssinet, pesquisador associado do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ires). A situação é tanto mais excepcional quanto as greves são difíceis de organizar no outro lado do Canal da Mancha.
“A brutalidade da legislação antissindical e antigreve é um legado do período thatcherista, lembra Freyssinet. Para convocar uma greve, um sindicato deve ter a aprovação da maioria de seus membros. Além disso, nos serviços públicos, a taxa de participação deve ser de pelo menos 50% com uma taxa de aprovação de 40% calculada sobre o conjunto do corpo eleitoral. Como muitos membros não votam, muitas vezes é necessário organizar vários escrutínios para obter o quórum necessário.”
Apesar dessas dificuldades estruturais, os trabalhadores de todos os lugares exigem aumentos salariais diante de uma inflação que ultrapassou a marca de 10% em julho, contra 8,9% na zona do euro no mesmo período e 6,1% na França. Pior, pode chegar a 13% já em outubro, segundo o Banco da Inglaterra.
Alguns já tiveram um ganho de caso, relata o sindicato Unite, mas eles são muito minoritários. Em todo o país, o salário real dos britânicos, isto é, o salário corrigido pela inflação, caiu 3% entre abril e junho, informa o Escritório Nacional de Estatísticas.
O que incendiou a pólvora, especialmente porque do outro lado do Canal da Mancha os salários já seguiam uma tendência de estagnação desde a crise financeira de 2008. “Entre 1970 e 2007, os salários reais aumentaram em média 33% por década, antes que essa progressão caísse para zero na década de 2010”, calculou o Trade Union Congress (TUC), organização que reúne os sindicatos britânicos.
“As empresas britânicas contam com o uso de mão de obra pouco qualificada e barata, fonte alimentada pela destruição, desde os tempos thatcheristas, dos mecanismos de proteção do emprego proporcionados pela negociação coletiva. Uma situação que se acentua com a crescente utilização do trabalho autônomo, dos contratos de zero hora e um afluxo maciço de mão-de-obra dos países do leste europeu quando aderiu à União Europeia", afirma Jacques Freyssinet, autor de um relatório sobre a década perdida dos salários britânicos, entre 2008 e 2018.
Consequentemente, duas “leis” econômicas clássicas não são válidas no Reino Unido. O crescimento da produtividade, embora fraco, é mais rápido que o crescimento dos salários, enquanto os dois teoricamente deveriam se mover em paralelo. Além disso, os baixos índices de desemprego não se traduziram em aumentos salariais.
Enquanto os salários estagnam ou até diminuem, as contas de energia disparam. Ao contrário da França, que implementou um escudo tarifário no final de 2021, o governo britânico decidiu não intervir para limitar a evolução dos preços da eletricidade e do gás, que seguem, portanto, os preços dos mercados. Assim, a partir de 1º de outubro, aumentarão em 80% (!), anunciou no dia 26 de agosto o Ofgem (The Office of Gas and Electricity Markets), que regula esses mercados de energia.
Mais precisamente, é o “teto de preço autorizado” que aumentará de 1.971 para 3.549 libras por ano. Este limite foi introduzido em 2019 no Reino Unido para proteger os consumidores com contratos de energia a preços variáveis, correlacionados com as flutuações do mercado. Representa o limite máximo que um domicílio com consumo “típico” pode ser cobrado pelo seu fornecedor durante o ano. Segundo o regulador, este limite “protege” 24 milhões de domicílios.
A proteção, no entanto, é muito relativa: só no último trimestre de 2022, a fatura será de 1.080 libras, contra 590 na taxa atual e 377 de acordo com as taxas vigentes no ano passado no mesmo período. Isso representa um aumento em um ano de 187%, resume o Instituto de Estudos Fiscais.
“A ausência de escudo tarifário explica pelo menos dois pontos de diferença de inflação entre o Reino Unido e a França”, estima Catherine Mathieu, economista do Observatório Francês de Conjuntura Econômica (OFCE) e especialista no Reino Unido.
O Brexit é outro agravante para a economia britânica? A questão está sendo debatida. “O Brexit é o principal responsável pelo crescente diferencial de inflação entre o Reino Unido e seus vizinhos europeus”, afirmam Adam S. Posen e Lucas Rengifo-Keller, do Peterson Institute for International Economics (PIIE), para quem o Brexit age, desde meados de 2021, como um amplificador da inflação em relação à União Europeia, que, no entanto, sofre os mesmos choques (recuperação pós-Covid, guerra na Ucrânia, etc.)
O instituto de pesquisa independente UK in a Changing Europe (UKICE) estudou a evolução dos preços dos produtos alimentícios e chega a uma conclusão semelhante: "Os produtos de que o Reino Unido depende das importações europeias para o seu abastecimento viram o seu aumento de preços após a eleição de Boris Johnson em 2019, e ainda mais depois que o novo acordo comercial Reino Unido-União Europeia entrou em vigor”. O que lhes permite concluir que há um “efeito Brexit”.
“Uma parte desse desenvolvimento reflete os custos de ajuste de curto prazo para uma nova relação comercial. Mas outra parte poderia ser mais duradoura, e refletir um aumento perene dos produtos da União”, detalha o relatório.
“A libra britânica caiu consideravelmente após o referendo de 2016, acrescenta Sophie Loussouarn. Depois ela se valorizou novamente, mas nunca recuperou seu nível inicial. No entanto, com uma libra mais desvalorizada, os produtos importados são mais caros.”
Além disso, o fim da livre circulação de trabalhadores em ambos os lados do Canal da Mancha reduziu a força de trabalho europeia em solo britânico e, portanto, contribuiu para a escassez de trabalhadores que alimentou a inflação, acreditam os dois pesquisadores do PIIE.
Outros observadores relativizam esse argumento. “A população ativa britânica perdeu 480.000 pessoas entre 2020 e 2021, mas isso se deve principalmente à mudança dos trabalhadores para a inatividade”, explica John Springford, do Center for European Reform.
“A população ativa vem diminuindo desde a pandemia por causa do Brexit mas também da aposentadoria de nacionais, pondera Jacques Freyssinet. Trata-se principalmente de pessoas idosas que se aposentaram precocemente durante a pandemia ou agora estão impossibilitadas de trabalhar por causa da Covid longa ou outras doenças de longo prazo cuja prevalência aumentou durante a crise sanitária.”
“O acordo comercial celebrado in extremis no final de 2020 entre o Reino Unido e a União Europeia não prevê direitos aduaneiros, e o estabelecimento de controles não tarifários na fronteira sobre as importações provenientes da União Europeia, especialmente de produtos alimentícios, foi adiado pelos britânicos para o final de 2023. Além disso, a libra se valorizou em relação ao euro desde o início de 2021”, diz Catherine Mathieu. Tantos argumentos que lhe permitem refutar a hipótese de um efeito inflacionário do Brexit nos últimos dezoito meses.
Apesar da gravidade da situação, o governo de Boris Johnson, que renunciou, mas ainda está no cargo até o resultado das eleições do Partido Conservador de 5 de setembro, não planeja nenhum novo plano de ajuda imediatamente. A estratégia adotada nos próximos meses dependerá do novo primeiro-ministro. A secretária de Relações Exteriores Liz Truss e o ex-chanceler do Tesouro (equivalente ao ministro das Finanças) Rishi Sunak são, atualmente, os dois candidatos ao cargo.
“A prioridade de Rishi Sunak é reduzir a inflação e está pronto para implementar novas transferências diretas para os mais vulneráveis, explica Sophie Loussouarn. Quanto à favorita das pesquisas Liz Truss, ela se recusa a fazê-lo e conta apenas com cortes de impostos para reativar os investimentos”.
Se escolhida pelos 170.000 membros do Partido Conservador, Liz Truss quer reduzir o imposto corporativo e reverter o aumento da alíquota de contribuição previdenciária decidido pelo governo Johnson em 2021.
“A situação é preocupante porque, sem uma mudança nos métodos de precificação de energia, a inflação pode ultrapassar 20% no início do próximo ano”, conclui Catherine Mathieu.
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A inflação provoca revoltas no Reino Unido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU