30 Mai 2022
Estamos diante de uma questão que tem sido posta sobre a mesa com insistência nos últimos tempos, considerando a atual sensibilidade animalista e até vegetariana. Dito de forma simplificada: as criaturas não humanas também são convocadas para a eternidade? Ou, por outro lado, a redenção operada por Cristo é apenas antropológica?
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado em Il Sole 24 Ore, 29-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Muitas vezes, os eclesiásticos e até mesmo os teólogos se instalaram ao longo das avenidas informáticas das redes sociais com o seu Twitter, YouTube, Instagram e Facebook. Porém, continua sendo sempre o bom e velho papel impresso onde, além dos redundantes ensaios sistemáticos, eles tentam romper com títulos e ditados cativantes, a fim de atrair leitores cada vez mais acostumados aos fortes temperos da linguagem social.
É o caso de um jovem dominicano francês, Franck Dubois, que, depois de ter pisado em uma cátedra universitária em Lille, transferiu-se para Estrasburgo, onde está envolvido com a pastoral dos católicos de língua hispânica daquela cidade.
O título do seu miniensaio é decididamente surpreendente, “Perché le mucche risuscitano (probabilmente)” [Por que as vacas ressuscitam (provavelmente)], e é apoiado por um subtítulo ainda mais desconcertante e enigmático: “Ou seja, por que meu pai não ficará a vida inteira preso no elevador”.
"Por que as vacas ressuscitam (provavelmente)", em tradução livre, novo livro de Franck Dubois (Foto: Divulgação)
Alguns dos nossos leitores concluirão: “O que não se faz para tentar encher os bancos desertos das igrejas ou para capturar um minuto da atenção dos ouvidos de um público jovem, acostumado a slogans ou à música techno...!” De fato, a trama do livrinho é marcada por capítulos que soam assim: “O mistério do urso vegano”, “Por que Cícero (que neste caso é o nome do coelhinho querido da mãe do autor) conta com você para ir para o céu...”, e assim por diante.
O ápice é alcançado justamente pela mãe em questão, que, depois de ter assistido à discussão da tese rigorosamente acadêmica do seu filho dominicano (“O corpo como síndrome. Uma teoria da matéria em Gregório de Nissa”), declarava ter entendido “por que as vacas ressuscitam”. E, quando questionada sobre a modalidade, sem hesitar, ela respondeu: “Como filé!”
Já no Gênesis Deus assegura à humanidade do pós-dilúvio a autorização para comer animais (9,2-3), após um regime inicial ideal quase vegano (1,29-30). Segundo o profeta Isaías, o banquete messiânico-escatológico também inclui um menu generalista de “carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de comidas suculentas” (25,6). O cordeiro pascal era comido “assado no fogo: inteiro, com cabeça, pernas e vísceras”, respeitando também um dress code meticulosamente definido (Ex 12, 9-11).
Animais e vegetais, portanto, estão fisiologicamente entrelaçados com a pessoa humana através do sinal do alimento e, se a fé na ressurreição é proclamada, eles devem ter alguma participação, mesmo que indiretamente.
Mas há mais, na linha justamente do coelho da mãe de Dubois: para muitas pessoas inscritas naquela multidão de solidões que povoa as nossas cidades, um cachorro ou um gato são verdadeiros companheiros de diálogo, até mesmo de amizade e ternura, sobretudo quando os humanos traíram ou abandonaram.
Eis, então, um caminho mais elevado para repropor a mesma pergunta, formulada de forma ainda pitoresca: está prevista a existência de uma espécie de jardim zoológico no além, assim como no paraíso terrestre? De uma forma mais pacata e “teológica”, apresenta-se novamente o tema não meramente literalista da ressurreição e da salvação final como recriação de todo o ser.
É surpreendente a certeza do salmista bíblico: “Salvais a homens e animais, ó Senhor” (36,7). Também é significativo o apóstolo Paulo, que, escrevendo aos cristãos de Roma, delineia a ardente expectativa da criação pela revelação dos filhos de Deus, na esperança de que a própria criação também será liberta da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus (cf. 8,19-21). É interessante esta referência explícita a toda a “criação”, em grego ktísis.
Estamos, portanto, diante de uma questão que tem sido posta sobre a mesa com insistência nos últimos tempos, considerando a atual sensibilidade animalista e até vegetariana. Dito de forma simplificada: as criaturas não humanas também são convocadas para a eternidade? Ou, por outro lado, a redenção operada por Cristo é apenas antropológica?
Há algum tempo, apresentamos um ensaio teológico no sentido clássico do gênero, a “Etica animale” [Ética animal] de Martin M. Lintner (Queriniana, 2020), que agora também assina o posfácio da edição italiana do livro de Dubois. A pesquisa teológica nesse horizonte ainda é lacunar e muitas vezes confiada a incursões vivazes, como as realizadas no passado por uma figura original e genial, Paolo De Benedetti, pioneiro de uma “Teologia degli animali” [Teologia dos animais] (organizada por Gabriella Caramore, Ed. Morcelliana, 2007), a partir da sua paixão pessoal como amante de gatos (uma paixão na qual até Montaigne se destacava).
O certo é que, para além dos excessos de ficção-teológica, é preciso reconsiderar de modo mais pontual (e Dubois faz isso à sua maneira, embora sob o véu das suas páginas bastante coloridas) o programa sugerido pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si’ (2015), destinado a superar “um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas”: “Hoje, a Igreja não diz, de forma simplista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade” (nn. 68-69).
E foi o próprio Papa Francisco, durante uma Audiência geral em 2014, que disse a um menino em lágrimas pela morte do seu cachorro: “Um dia, veremos os nossos animais de novo na eternidade de Cristo”.
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Sobre a ressurreição de vacas e coelhos. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU