21 Mai 2022
"A proibição bíblica de atribuir imagens ao divino costuma ser explicada com a natureza incorpórea de Deus, que torna este último diferente de qualquer outra divindade do mundo antigo", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 16-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o autor, "transformar o Deus da Bíblia em uma entidade incorpórea talvez tenha sido uma forma de consolidar esse extraordinário poder do clero".
Há tempo assumimos a ideia cristã de Deus como um ser transcendente, invisível e incorpóreo. Mas se trata de uma "refração distorcida", afirma Francesca Stavrakopoulou em Anatomia di Dio que a editora Bollati Boringhieri está prestes a lançar nas livrarias. O Deus real da Bíblia era bastante diferente. Tinha uma "fisicalidade" muito poderosa. Era uma antiga divindade levantina "cujos passos sacudiam a terra, cuja voz trovejava nos céus, cuja beleza e brilho cegavam os devotos".
Capa de Anatomia di Dio (Foto: Divulgação)
Essa divindade modelou os seres humanos de acordo com as formas dos deuses a partir do barro e soprou vida por suas narinas. Ele era um Deus que "chorava, falava, dormia". E que "ficava de mau humor". Um Deus que "sentia emoções, combatia, amava e que era derrotado".
Um Deus que "às vezes falhava e às vezes triunfava". Um Deus "que espelhava o melhor e o pior de nós". Um Deus, pode-se dizer, "feito à nossa imagem e semelhança". Quem o fez perder sua fisicalidade?
De acordo com Stavrakopoulou, foram os intelectuais ocidentais, começando com os iluministas, que se revoltaram sobre o que restava do autêntico Deus bíblico. Para depois reduzi-lo a "um fantasma sem vida, fruto da fervorosa imaginação humana". Mas - como pode ser deduzido do livro de Thomas Römer, A Invenção de Deus (Claudiana), bem como daquele de Michael L. Satlow, E o Senhor falou a Moisés. Como a Bíblia se tornou sagrada (Bollati Boringhieri) - o Deus das origens estava longe de ser incorpóreo.
O Deus da Bíblia, afirma Stavrakopoulou, "não se parecia em nada com a divindade dissecada, separada em pedaços e depois liquidada pelos ateus modernos". Aquele Deus "assassinado pelos intelectuais racionalistas da filosofia e ciência ocidentais" não existe na Bíblia. A "divindade morta" do século XVIII é, ao contrário, "um ser híbrido pós-bíblico, uma inteligência artificial pré-científica incorpórea e montada ao longo de mais de dois mil anos a partir de sucatas escolhidas dentro das correntes místicas do judaísmo, da filosofia grega, da doutrina cristã, da iconoclastia protestante e do colonialismo europeu".
Hoje "este ser quimérico" tornou-se "um Deus que se esqueceu de criar os dinossauros e que não levou em conta a evolução". Um Deus "que está em toda parte e que vê tudo, mas que permanece ausente e nunca diz nada". Estranho, não é? O fato é que "o Deus do Ocidente e o Deus da Bíblia são dois seres distintos". Completamente distintos.
A proibição bíblica de atribuir imagens ao divino costuma ser explicada com a natureza incorpórea de Deus, que torna este último diferente de qualquer outra divindade do mundo antigo.
Um "ser sobrenatural e divino impossível de modelar e representar com barro, metal, madeira ou pedra precisamente por causa de sua incorporeidade".
A promoção de uma adoração desprovida de recursos visuais - como fica muito claro em O Livro dos Livros. Uma história da Bíblia (Garzanti) de John Barton - no entanto, indica exatamente o contrário. Mesmo os cultos das várias divindades egípcias, assírias, babilônicas e fenícias, observa Stavrakopoulou, tinham atravessado por períodos de "adoração anicônica", apesar do fato dessas divindades serem consideradas dotadas de corpo. O que vai mudar com os cultos que se inspiram na Bíblia? A proibição a respeito das imagens divinas nos Dez Mandamentos "dá ênfase à ocultação do corpo de Deus". O líder do Povo Escolhido - em O Último Discurso de Moisés (Giuntina), de Micah Goodman - lembra os israelitas de seu encontro com Deus no caminho para a Terra Prometida, quando haviam se reunido ao pé da montanha sagrada para ouvir a divindade enquanto anunciava os termos de sua aliança com eles. Quando desceu no Monte Sinai, Deus, aponta Stavrakopoulou, "não se revelou à vista humana" e "tudo o que os israelitas conseguiram entrever dele foi o fogo celestial e uma nuvem cósmica escura envolvendo o topo da montanha".
Então, porque na Bíblia hebraica os devotos parecem desejar mais do que tudo um encontro cara a cara com Deus? “Quando virei e verei a face de Deus?”, pergunta-se um desses fiéis no livro de Salmos. “Feita a justiça, verei a tua face; quando despertar, ficarei satisfeito ao ver o teu semblante”, promete outro. Seria fácil demais subestimar palavras como essas e considerá-las meras esperanças ou fantasias de pessoas simples. E, no entanto, não são de modo algum devaneios produzidos por imaginações fervorosas. Com palavras como essas, escreve Stavrakopoulou, “os devotos expressavam a esperança de obter o privilégio de realizar uma peregrinação até um templo onde, se tivessem sorte ou fossem suficientemente importantes, teriam podido observar a estátua da divindade em toda a sua glória”. Em um mundo onde as estátuas divinas eram consideradas uma manifestação dos deuses, continua a historiadora, “observar a imagem divina em um templo era equivalente a ter um encontro pessoal com o próprio deus”.
Tudo isso preexistia à Bíblia. Os artesãos da antiga Ásia sul-ocidental deixaram-nos alguns sugestivos vestígios de como devia ter sido o encontro com a divindade. Durante o período protodinástico da cultura suméria (aproximadamente entre 2900 e 2334 a.C.), os "devotos abastados" costumavam encomendar representações artísticas de si mesmos para serem levadas aos templos para os seus deuses.
Essas estatuetas votivas em gesso ou pedra calcária mostravam a pessoa em pé "como se estivesse extasiada diante dos deuses".
A representação era sempre a mesma: mãos cruzadas na altura da cintura, bocas fechadas em silêncio, olhos arregalados e sobrancelhas levantadas. Os deuses se manifestavam nas estátuas dos templos, mas também os devotos sumérios deviam ter uma forma muito particular de participar do "encontro": "colocadas diante do divino", as estatuetas dos devotos eram como “extasiadas em um permanente estado de adoração". Sobre esse tema e em relação às primeiras imagens cristãs, são muito interessantes as reflexões propostas por Thomas F. Mathews em Nas origens dos ícones (Jaca Book).
A intensidade emocional de um encontro cara a cara com uma estátua divina, continua Stavrakopoulou, foi "experimentada" por gerações inteiras de devotos da Ásia sul-ocidental. Mil anos depois que "as estatuetas sumérias pararam de olhar para os seus deuses", os soberanos da Mesopotâmia continuavam "assombradas com a experiência religiosa que se sentia durante um desses encontros". Prova disso é uma tábua de pedra - produzida durante o reinado do rei da Babilônia Nabu-apla-iddina (no trono de 887 a 855 a.C.) - que descreve a restauração da estátua do deus solar Shamash destruída pelos Suteanos vindos do deserto sírio. Na ausência dessa estátua, os devotos, tendo chegado ao santuário de Sippar, apresentaram suas oferendas ao símbolo do deus, um disco solar.
Depois disso esperavam que Shamash lhes concedesse "permissão para recriar a estátua divina".
Permissão que acabou por vir através de uma descoberta "milagrosa": um astuto sumo sacerdote, Nabu-nadìn-shumi conseguiu "encontrar" ("de forma totalmente fortuita", ironiza Stavrakopoulou) um modelo de terracota da estátua original a partir da qual se podia modelar "uma nova versão em lápis-lazúli e ouro".
Vamos voltar à Bíblia. Muito "física" é a batalha entre Deus, Yahweh, e o monstro das águas caóticas dos primórdios, cujos vários nomes testemunham uma "natureza aquática perigosa e desordenada": Leviatã (o "torcido" ou o "tortuoso"), Raabe (a "inundação" de um rio), Yam (o "mar"), Nahar (um "rio" que arrasta), Tannin ("dragão do mar") e Tehom (o "profundo").
Muitos desses nomes são os mesmos dos arqui-inimigos aquáticos e primordiais enfrentados por Baal nos antigos mitos de Ugarit. Israel Finkelstein em O Reino Esquecido. Israel e as Origens Ocultas da Bíblia (Carocci) aborda essa questão. Em muitos textos bíblicos, Yahweh era louvado por ter "repelido" Yam, por ter "cortado a cabeça do Leviatã", por ter "ferido e pisoteado Raabe" e por ter "quebrado em pedaços" o "cadáver do caos" para fazer dele "brotar fontes e riachos".
De acordo com o livro de Jó, esse enorme monstro marinho tinha uma pele encouraçada com escamas densas semelhantes a fileiras de escudos impenetráveis; faíscas de fogo jorravam de sua boca, uma fumaça ardente exalava de suas narinas e, quando espirrava, soltava relâmpagos. Quando "rugia e se contorcia", essa espécie de dragão "fazia ferver as águas primordiais" produzindo "uma espuma tão espessa que o mar parecia branco". O monstro marinho aterrorizava as outras divindades "da comitiva de Yahweh".
“Quando ele se levanta, os deuses se assustam e devido ao terror ficam desorientados”, afirma Yahweh. "Ninguém há tão atrevido, que a despertá-lo se atreva; quem, pois, é aquele que ousa erguer-se diante de mim? Quem primeiro me deu, para que eu haja de retribuir-lhe? Pois o que está debaixo de todos os céus é meu”. Perguntas retóricas. Porque aquele alguém realmente existe e é precisamente ele mesmo:
Javé, o Deus da Bíblia. Um Deus "real" que - afirma Stavrakopoulou - deve ser redescoberto "em toda a sua escandalosa fisicalidade". E "sem qualquer censura". Chegou a hora de "raspar a pátina teológica que se acumulou sobre os textos bíblicos ao longo de séculos de devoção judaica e cristã". O resultado desta operação de "restauração" será a descoberta de "um Deus que não se parece em nada com o Deus venerado hoje por judeus e cristãos". E que "finalmente nos aparece como devia ter sido imaginado por seus antigos devotos": um "Deus enorme e musculoso com poderes sobre-humanos, paixões terrenas e uma inclinação para o fantástico e o monstruoso".
O Deus da Bíblia, no entanto, ainda escreve Stavrakopoulou, "desaprovava as massas que o olhavam estupefatas". Os relatos de seus primeiros encontros com as tribos israelitas destacam os protocolos adotados para proteger a divindade. Para protegê-la "da multidão, dos intrometidos e dos curiosos".
Depois de estabelecer um limite ao pé da montanha sagrada, Deus explica a Moisés que os israelitas devem abster-se de correr para vê-lo até ouvirem o som de um corno celestial. Enquanto "seu templo no deserto é descartado para preparar a viagem para a Terra Prometida, Yahweh adverte aqueles sacerdotes que não adotaram as medidas de segurança apropriadas e que "gostariam de dar uma olhada no Sancta Sanctorum, embora não tenha sido adequadamente decorado", exorta-os a "estarem em guarda porque poderiam ter pago com a vida" por sua decisão de olhar para ele. Mesmo que o tivessem feito por motivos nobres e "por apenas um instante".
Este princípio básico de etiqueta religiosa - no primeiro livro de Samuel - é esquecido ou ignorado por setenta habitantes de Beth Shemesh que gostariam de ver pelo menos o escabelo de Yahweh: este ato de "desavergonhado voyeurismo" é punido com a morte. Olhar descaradamente para Yahweh era considerado uma ofensa divina. Do ponto de vista teológico, fixar o olhar numa divindade era inconveniente e desaconselhado porque reduzia a própria divindade a mero objeto. Mas por que havia tanta teimosia nesse desejo, em si não ignóbil, de entrar em algum tipo de contato, mesmo que apenas visual, com Deus?
Para conferir "poder" aos sacerdotes. As histórias que advertiam contra olhar para Yahweh com cobiça, explica Stavrakopoulou, reforçavam justamente a posição e o poder dos sacerdotes, bem como do pessoal do templo. Todas pessoas que tinham a autoridade necessária para conceder acesso à divindade”. Serão suas teologias a "dominar a Bíblia". Da mesma forma como acontece com muitas formas particularmente poderosas de cultura visual contemporânea, a permissão necessária para poder olhar alguém ou algo está nas mãos daqueles que têm a capacidade social de reunir, mediar, regular ou divulgar suas imagens. Transformar o Deus da Bíblia em uma entidade incorpórea talvez tenha sido uma forma de consolidar esse extraordinário poder do clero.
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Uma divindade corpórea. Artigo de Paolo Mieli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU