Super Bowl: comercial distópico sobre o metaverso levanta sérias questões metafísicas

Fonte: YouTube

02 Março 2022

 

A busca por uma solução mágica para a dor e a nostalgia humanas é uma das histórias mais antigas já contadas. Vejam-se as Sereias que seduzem Odisseu ou Jesus que enfrenta a tentação no deserto.

 

O comentário é de John W. Miller, jornalista e diretor de cinema estadunidense, em artigo publicado em America, 25-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Assim, a história contada pela Meta, a empresa anteriormente conhecida como Facebook, em um anúncio do Super Bowl para 112 milhões de espectadores, parecia uma história familiar de tentação.

 

No comercial do seu headset de realidade virtual Meta Quest 2, um cachorro animatrônico é o vocalista de uma banda, tocando alegremente “Don’t You Forget About Me”, do Simple Minds, em um restaurante chamado Questy’s, com um polvo na bateria e pinguins no teclado e na guitarra. A noite termina. O Questy’s pendura um cartaz anunciando que está “fechando para sempre!”.

 

 

O cenário sugere uma cidade abandonada em uma pandemia. O nosso heroico cão cai do “sonho americano” em uma distopia pós-industrial. Ele está exposto na vitrine de uma loja de penhores, depois é uma estatueta na Disney World, antes de acabar na traseira de um caminhão. Ele está prestes a ser esmagado em um ferro-velho quando uma mulher o agarra e o transforma em um recepcionista em um centro de convenções futurista onde o headset Meta Quest 2 está sendo exibido.

 

Um desses headsets é colocado no cachorro. Assim, ele entra no metaverso, onde seu avatar se reúne com seus companheiros de banda em um Questy’s virtual. Tudo está ótimo novamente, e ele encontra a solução para a sua dolorosa solidão. O metaverso acaba sendo um paraíso onde ninguém é esquecido e todo mundo é a melhor versão de si mesmo.

 

Em certo nível, o comercial está simplesmente nos apresentando um produto divertido. Mas lembremos que a empresa de Mark Zuckerberg, que controla o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, parece estar com problemas, em meio a acusações de que teria permitido discursos de ódio, vendido imagens sexuais para adolescentes e violado a privacidade dos usuários.

 

Imagem: Mark Zuckeberg durante evento em 2018 | Foto: Anthony Quintano | Wikimedia Commons

 

A empresa prometeu reformas, mas seu core business sofreu com isso. No último trimestre de 2021, o número de usuários diários em todo o mundo no Facebook parou de subir e caiu ligeiramente, de 1,930 bilhão para 1,929 bilhão.

 

Zuckerberg, que pagou dois bilhões de dólares pela fabricante de headsets Oculus em 2014 e está comprando outras empresas de realidade virtual, está apostando que o metaverso poderá mudar esse roteiro.

 

Na verdade, a indústria de jogos está entusiasmada com a adoção da tecnologia, e as vendas de headsets de realidade virtual aumentaram 70% no ano passado. A realidade virtual ganhou espaço em muitos lares, mesmo que os headsets deixem algumas pessoas tontas e tenham causado lesões em outras.

 

Mas, como ilustra o anúncio do Super Bowl, Zuckerberg espera que a realidade virtual seja mais do que um jogo. “Pense em quantas coisas físicas você tem hoje que poderiam ser apenas hologramas no futuro”, escreveu ele em uma declaração pública apresentando o conceito. “Nesse futuro, você poderá se teletransportar instantaneamente como um holograma para estar no escritório sem se deslocar, em um show com amigos ou na sala de estar dos seus pais para conversar.”

 

Ele ainda precisa convencer algumas pessoas. “As possibilidades de socialização que você tem são quase uma brincadeira para crianças”, disse Andy Marous, um jovem de 18 anos de Pittsburgh que gosta de jogar jogos de realidade virtual.

 

Mas, no espaço de realidade virtual da Meta, o Horizon Worlds, as pessoas podem usar seus avatares para interagir, fazer compras e consumir entretenimento. E, como ilustra a história do cachorro no Super Bowl, elas podem voltar a algo parecido com o passado.

 

Imagem: plataforma Horizon Worlds | Foto: divulgação

 

“Um dos comportamentos que vimos no Horizon Worlds, que é o nosso novo ambiente de testes social, é que as pessoas constroem os lugares do seu passado”, disse Dave Kaufman, diretor de marketing da Meta.

 

É essa ambição de fazer dos headsets e do metaverso um lugar para aquilo que geralmente chamamos de vida real que levanta questões metafísicas.

 

Como observou Kaufman, o comportamento humano na realidade virtual pode apontar para necessidades mais profundas e espirituais. Quem não desejaria revisitar um capítulo feliz do passado? Mas, na vida espiritual, é melhor deixar alguns anseios insatisfeitos.

 

Na recente série de TV “Dopesick”, que narra a epidemia dos opioides, Michael Keaton interpreta um médico que sucumbe ao vício em opioides. No fim da série, ele faz um discurso comovente sobre a dor: “Há algum tipo de dor em muitos de nós, em todos nós, que simplesmente não queremos mais sentir”.

 

Quando eu telefonei para Brian Green, diretor de ética tecnológica do Centro Markkula de Ética Aplicada da Santa Clara University, ele disse que o comercial do Meta Quest também o fez pensar nos opiáceos. “Esse comercial está dizendo: ‘Você não quer viver na realidade’”, ele me disse. “E é isso que os opiáceos ajudam a evitar.”

 

E talvez, sugeriu Green, a realidade virtual como meio de interação humana, da forma como Zuckerberg defende, deveria ser tratada como uma droga. “Você deveria usar morfina quando está com uma dor horrível”, disse ele. “Eu poderia imaginar um uso terapêutico da realidade virtual para pessoas que estão em depressão ou em clínicas, uma terapia para quando nada mais está funcionando.”

 

Durante a pandemia, por exemplo, quando os estadunidenses mais velhos ficaram presos nos asilos, os headsets de realidade virtual poderiam ter servido para um propósito útil.

 

Mas, salientei, a pandemia também enfatizou a riqueza da interação humana real. Pensemos naquele encontro em que você abraçou os seus pais ou irmãos depois de um ano se comunicando apenas pelo Zoom ou por telefone.

 

De fato, disse Green, “tentar substituir a coisa real pela secundária revela uma certa tristeza”.

 

Como o Papa Francisco escreve na Fratelli tutti, descrevendo para onde o mundo estava indo antes mesmo da pandemia: “Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade” (n. 33).

 

Na vida real, o sabor é doce quando você se sai bem, e é azedo quando a festa acaba. Qualquer outra coisa é apenas um jogo.

 

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