08 Fevereiro 2022
Nesse domingo, 6, celebrou-se o 63º aniversário de um importante ponto de virada para o catolicismo do século XX, com relevância direta para entender os atuais ocupantes de dois dos cargos mais influentes da Itália: o Papa Francisco, chefe da Igreja Católica, e Sergio Mattarella, o recém-reeleito presidente da República italiana.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 06-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esse ponto de virada foi a ordenação de Giuseppe Dossetti ao sacerdócio em 6 de janeiro de 1959 pelo lendário cardeal Giacomo Lercaro, de Bolonha, a quem Dossetti viria a servir como conselheiro e aliado-chave.
Tanto Francisco quanto Mattarella foram descritos por muitos observadores italianos como dossettiani, ou seja, discípulos do lendário padre socialmente consciente.
Nascido em Gênova, Dossetti se engajou quando jovem no movimento Ação Católica da Itália. Ele tinha nove anos de idade quando as forças de Mussolini marcharam sobre Roma e se tornou um antifascista determinado, participando, em certo momento, de combates junto às forças partidárias da Itália sob o codinome Benigno. Após a guerra, Dossetti se engajou na política, apoiando a transição para uma república democrática e desempenhando um papel fundamental na elaboração da Constituição do país pós-guerra.
Dossetti sempre foi motivado por uma forte fé e espiritualidade católicas, e durante os anos 1950 sentiu um força atrativa crescente para o sacerdócio. Ele contou seus desejos a Lercaro em 1956, e, após dois anos de reflexão, Lercaro finalmente ordenou Dossetti, então com 45 anos de idade, em janeiro de 1959.
Três anos depois, Dossetti acompanhou Lercaro ao Concílio Vaticano II como seu peritus, ou especialista teológico, no qual faziam parte da ampla maioria progressista. Ao contrário da maioria dos líderes desse movimento, no entanto, que estavam principalmente interessados na reforma interna da Igreja, a visão de Dossetti era fortemente ad extra, vendo a renovação da Igreja em termos de engajamento vital com os movimentos sociais e culturais, especialmente na defesa dos pobres.
Durante o Concílio, Dossetti foi o único italiano a atuar em um grupo de trabalho sobre pobreza na Igreja que se reuniu no Colégio Belga de Roma e que foi liderado pelo teólogo francês Pe. Paul Gauthier, a quem muitos observadores creditam o fato de ter ajudado a estimular o movimento da teologia da libertação na América Latina.
Dossetti também fez parte da inspiração para a famosa homilia de Lercaro para o primeiro Dia Mundial da Paz em 1º de janeiro de 1968, na qual ele condenou diretamente os bombardeios estadunidenses contra o Vietnã do Norte.
Lercaro foi removido de seu posto em Bolonha por São Paulo VI não muito tempo depois, devido a uma óbvia irritação pelo rompimento de Lercaro com a abordagem mais diplomática do pontífice.
À medida que o drama de Lercaro e Dossetti se desenrolava, dois jovens católicos de 20 e poucos anos assistiam a tudo e se inspiravam: Jorge Mario Bergoglio, que ingressou nos jesuítas poucos meses antes de Dossetti ser ordenado, e Sergio Mattarella, que estava aprofundando seu envolvimento no ramo juvenil da Ação Católica.
Bergoglio, é claro, se tornaria o Papa Francisco meio século depois, tornando a visão de Dossetti de uma “Igreja pobre para os pobres” a declaração de missão do seu papado.
Quanto a Mattarella, que praticamente salvou a Itália de si mesma no mês passado ao concordar relutantemente com um segundo mandato como presidente, quando os esforços dos principais partidos para encontrar um sucessor terminaram em rancor e paralisia, a sua carreira, de certa forma, pode ser vista como um longo esforço para traduzir o legado de Dossetti na confusa tarefa de governar.
Matarella herdou o manto político do seu irmão mais velho, Piersanti, que era membro dos democrata-cristãos e atuou como presidente da Sicília até seu assassinato em 1980, depois de sair da missa em um domingo. Tratou-se de uma emboscada que se acredita ter sido ordenada pela máfia siciliana em retaliação pelos seus esforços para romper o domínio da máfia no governo local.
O jovem Sergio Mattarella foi quem recolheu o corpo de seu irmão mais velho em frente à igreja onde ele havia caído e, nos anos seguintes, iria escalar os degraus da política italiana, servindo finalmente como ministro da Defesa e da Educação, assim como vice-primeiro-ministro antes de ser eleito para a presidência pela primeira vez em 2015.
Em termos gerais, Matterella sempre foi visto como parte da linha do “catolicismo social” de centro-esquerda na vida política do país.
Não restam dúvidas sobre o seu catolicismo devoto. Um pequeno sinal surgiu durante os anos de São João Paulo II, quando muitos políticos de esquerda faziam um show de apertos de mão no papa em vez de beijar seu anel, como uma demonstração do caráter secular da República italiana e da separação entre Igreja e Estado. Mattarella, embora compartilhando esses ideais, no entanto, fazia silenciosamente o beija-mão tradicional sempre que se encontrava com o pontífice.
Ele participa da missa na Basílica de Sant’Andrea della Fratte, em Roma, não muito longe da residência do presidente no Palácio do Quirinal, onde o pároco, em uma entrevista de 2015, o descreveu como alguém que “vem com muita frequência, é um bom católico”.
Em seu discurso na quinta-feira, durante sua cerimônia de posse, Mattarella apresentou uma agenda ambiciosa para o futuro da Itália, enraizada no catolicismo social ao estilo de Dossetti, insistindo na dignidade humana como fundamento.
“As desigualdades não são o preço a ser pago pelo crescimento”, disse ele, visando diretamente a uma afirmação convencional do dogma capitalista. “Em vez disso, eles são um freio a todas as perspectivas de crescimento”, disse ele, lamentando a “pobreza desesperada e sem fim que, infelizmente, mortifica as esperanças de tantas pessoas”.
É verdade que nem todos os católicos na Itália estão convencidos de que Mattarella é uma encarnação viva da fé. Alguns, por exemplo, reclamam que Mattarella uma vez renunciou a um cargo ministerial em protesto contra uma lei que abriu caminho para a ascensão do império midiático de Silvio Berlusconi, levando o conservador Berlusconi ao cargo de primeiro-ministro, mas não renunciou em protesto contra uma lei que liberava a fertilização in vitro ou contra uma lei que permitia o divórcio rápido (isso apesar do fato de Mattarella não ocupar um cargo quando qualquer uma dessas leis foi adotada, de modo que ele não tinha nada para renunciar).
Mais amplamente, alguns católicos italianos veem Mattarella como o produto de uma versão piegas e quase socialista da fé, que praticamente ignora a dimensão transcendente – uma acusação que muitos deles fariam também contra Francisco, diga-se de passagem.
Seja qual for o caso, é justo dizer que Francisco e Mattarella são a prova viva de que, apesar da mitologia sobre o catolicismo ser incapaz de mudar, na realidade as coisas mudam o tempo todo. Não muito tempo atrás, Lercaro era um cardeal cuja carreira terminou em ignomínia e uma repreensão papal, e Dossetti era uma nota de rodapé quase esquecida na história.
Hoje, na forma do papa e do presidente, pode-se dizer que seu legado representa a alma da classe dominante da Itália.
As famosas palavras de William Faulkner aplicam-se de forma especial ao catolicismo: “O passado nunca está morto. Nem sequer passou”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Legado de padre italiano mostra que, no catolicismo, o passado nunca passou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU