14 Janeiro 2022
"Gabriel Boric assumirá a presidência do Chile em março de 2022, já com 36 anos completados – o mais jovem presidente da história do país. Até lá tem pela frente imensos desafios. Dentre eles, a montagem de um governo com base nos apoios que lhe deram a vitória no segundo turno. Será um passo gigante superar a rigidez da coalizão Apruebo Dignidad, em especial do Partido Comunista, e montar um gabinete de governo que vá além dos marcos dessa coalisão", escreve Alberto Aggio, professor Titular de História da UNESP-Franca-SP, em artigo publicado por Horizontes Democráticos, 07-01-2022.
Com título idêntico, trocando apenas o nome do personagem, o jornalista Newton Carlos, um pioneiro do jornalismo internacional no Brasil, organizou, em 1970, uma coletânea sobre a vitória e a posse de Salvador Allende, presidente eleito no Chile pela Unidade Popular[1]. A pergunta era justa uma vez que Allende, ao assumir o poder, se propunha construir o socialismo. Repeti-la hoje também faz sentido ainda que Salvador Allende e Gabriel Boric apresentem características bastante diferentes entre si e os 50 anos que os separam não tenham passado em vão, no Chile e no mundo.
Além do tempo, muita coisa distingue Boric de Allende embora uma simbologia comum os enlace: trata-se novamente da esquerda alcançando o poder por meio de eleições democráticas. Em 1970, sabendo da vitória eleitoral, Allende discursou aos seus apoiadores da sacada da sede da Federação dos Estudantes do Chile, a poderosa FECH.
Boric, nascido politicamente como líder estudantil, já com a certeza da vitória, escolheu um lugar muito próximo àquela antiga sede para falar a seus apoiadores. No seu discurso, o jovem presidente eleito mencionou Allende indiretamente, mas não o tratou como um “profeta” que, na sua última alocução, sob bombardeio do Palacio La Moneda, em 1973, anunciara a volta do “homem livre” às “grandes alamedas”. Ao contrário, humanizou-o, pedindo – como Allende o fizera – que as pessoas voltassem para casa com a consciência da “vitória alcançada”. Nada disso foi casual.
O tempo de Allende foi o da Guerra-Fria entre comunismo e capitalismo. Nas esquerdas um tempo de crença de que a revolução e o socialismo estavam ao alcance da mão e que se deveria viver e morrer por eles[2].
O tempo de Boric é outro. A revolução global do comunismo contra o capitalismo se extinguiu[3]. É um tempo de globalização e revolução tecnológica que demandam uma visão cosmopolita dos líderes políticos, um tempo de interdependência, guiada pela cooperação e pela busca de uma governança compartilhada, aberta ao multilateralismo nas relações entre países e regiões. O tempo de Boric – o nosso tempo – é o da ampliação e diferenciação de direitos da cidadania e das pessoas, iguais e diferentes. Um tempo de preocupação com a sobrevivência do planeta e que pede uma nova economia, verde e sustentável. Um tempo de cuidar e ampliar a democracia contra aqueles que impõem obstáculos ao avanço civilizatório da humanidade.
Dois líderes políticos, dois mundos distintos. Allende sempre se declarou marxista e pensava realizar o socialismo por meio dos mecanismos democráticos do Estado chileno, mas sua inspiração era a de um socialismo similar ao que estava sendo construído na URSS, China ou Cuba[4]. Esse mundo da imaginação allendista, que galvanizou a esquerda da época, já não existe mais. E creio que Allende jamais haveria projetado os caminhos que a China percorre nos dias de hoje.
As identidades ideológicas de Allende são visivelmente estranhas a Boric, cujas raízes foram construídas nas difusas correntes políticas e ideológicas dos movimentos estudantis chilenos do início do século XXI. Boric não guarda nada do caráter redentorista dos tempos de Allende, mesmo que sua ascensão política tenha sido meteórica enquanto que Allende foi, por quase toda a vida, um representante eleito e, por décadas, um líder político legitimado nos marcos da democracia chilena.
Boric é um jovem lutador social, um autonomista que se formou politicamente acreditando mais na rua do que nas instituições. Valoriza a mobilização social e a ação direta, mas não é um guevarista. Foi um crítico ácido da Concertación (PS-DC-PPD), que governou o Chile a partir de 1990, depois da ditadura Pinochet, estabelecendo o que Carlos Huneeus chamou de “democracia semisoberana”[5], submetida aos ditames institucionais da Constituição de 1980.
A grande inflexão na trajetória política de Gabriel Boric se dá quando, em 2014, ele se torna deputado e ingressa nas estruturas institucionais do Estado chileno como representante eleito pela província de Magalhães, no sul do Chile – ele será reeleito depois, em 2017. Combinar a demanda das ruas com a pouca fluidez decisória das instituições passou a ser um novo desafio para o tipo de representação que Boric formatou em sua trajetória.
Em outubro de 2019, o impacto do chamado Estallido, que levou milhares de chilenos a protestar nas ruas e praças, se impôs com suas sentidas demandas de urgência e de mudança radical[6]. O contexto explosivo das manifestações multitudinárias, com lances de violência, demandava soluções e um encaminhamento político e institucional, diante de um governo que reagiu apenas repressivamente às manifestações populares. O momento-chave dessa conjuntura foi o acordo, realizado na madrugada de 14 para 15 de novembro de 2019, entre quase todas as forças políticas para se estabelecer um Plebiscito visando a elaboração de uma nova Constituição por uma Assembleia Constituinte livremente eleita e autônoma. No ano seguinte, em 20 de outubro, a vitória no Plebiscito, com quase 80% de apoio, e a instalação da Assembleia Constituinte, com caráter paritário entre homens e mulheres, consagrou esse processo político de reconhecido perfil democrático, ainda que não desprovido de riscos, como bastante avançado para o contexto latino-americano.
Em meio a todo esse processo, Boric passa a figurar como um dos principais protagonistas da política chilena. Uma nova imagem emerge quase que consensualmente a partir do reconhecimento de suas qualidades políticas, com destaque para a valorização do trabalho em equipe, seu espírito de liderança, além de uma aguda sensibilidade social. Em meio ao turbilhão de manifestações e eleições sucessivas (Parlamento, representantes regionais, constituintes e presidente da República) Boric soube ler as circunstâncias políticas e foi gradativamente superando suas posições mais autonomistas e se assumindo, primeiro, como um “progressista” e, depois, no segundo turno da eleição presidencial, não recusou ser qualificado como reformista ou mesmo socialdemocrata.
Aqui aparece mais uma diferenciação notável entre Allende e Boric. Allende venceu em 1970 depois de haver sido derrotado como candidato a presidente por três vezes (1952, 1958 e 1964). Sua vitória foi resultado de uma leitura muito refinada do jogo de forças políticas, montado a partir da divisão em três terços do eleitorado. Sua quarta candidatura foi desacreditada por muitos líderes da esquerda chilena, inclusive do seu próprio partido. Allende venceu por pouco (36% dos votos) e, aprovado pelo Congresso, assumiu como um presidente minoritário.
Boric venceu o segundo turno das eleições presidenciais, garantindo uma aprovação majoritária. No primeiro turno, foi o candidato da coalizão Apruebo Dignidad – que une a Frente Ampla mais o Partido Comunista e uma constelação de pequenos agrupamentos de esquerda –, e chegou em segundo lugar com 25% dos votos, mas ampliou significativamente seu apoio para vencer o segundo turno, agregando a integralidade das forças políticas da centro-esquerda chilena. Muito analistas recordaram o fato de que tanto as articulações para o segundo turno quanto os resultados eleitorais (56% contra 44%), foram idênticos ao Plebiscito de 1988 que derrotou Pinochet. Boric teve clareza ao mobilizar a memória da luta contra Pinochet (e José Antonio Kast o “ajudou” identificando-se com o ditador) e combiná-la com a grande mobilização antagonista e de caráter refundacional que se estabeleceu desde o estallido de 2019 e a instalação da Assembleia Constituinte. Não havia nada similar a isso na campanha vitoriosa de Allende, em 1970.
Por fim, vale novamente mencionar as ênfases identitárias de ambos os líderes políticos. Allende sempre recusou uma aproximação com a socialdemocracia europeia, mesmo que o seu programa contivesse reformas bastante similares àquela corrente política. Mas Allende as pensava numa chave de leitura de caráter revolucionário. Todavia, mesmo sendo um grande admirador de Cuba, Allende sempre fez questão de frisar que o caminho chileno para construir o socialismo seria outro.
Tudo isso está bastante distante do discurso de Boric, cujo programa assumido para conquistar a vitória eleitoral é reconhecidamente socialdemocrata. Seus eixos são a adesão a um sistema de bem-estar fundado na ampliação e universalização de direitos, um modelo de desenvolvimento sustentado, resultado da coordenação entre as dimensões pública e privada da economia, com regulação do Estado, e uma clara defesa da democracia em todas as suas dimensões. Para muitos analistas, é bastante notável a proximidade que se pode estabelecer com a Frente Ampla uruguaia ou com os partidos socialdemocratas dos países nórdicos.
Gabriel Boric assumirá a presidência do Chile em março de 2022, já com 36 anos completados – o mais jovem presidente da história do país. Até lá tem pela frente imensos desafios. Dentre eles, a montagem de um governo com base nos apoios que lhe deram a vitória no segundo turno. Será um passo gigante superar a rigidez da coalizão Apruebo Dignidad, em especial do Partido Comunista, e montar um gabinete de governo que vá além dos marcos dessa coalizão. Mas, o desafio mais importante será acompanhar, sem interferir, o andamento da Assembleia Constituinte e estimular para que o seu curso responda ao espírito de mudanças que lhe deu origem. Concluir seus trabalhos e realizar o chamado Plebiscito de saída (com voto obrigatório) será um marco importantíssimo para a presidência Boric.
Que tipo de governo será o de Boric ainda é difícil dimensionar. Para Juan Pablo Luna, cientista político e professor da PUC de Santiago, Boric deve procurar estabelecer, antes de mais nada, “um processo de concertação social que incorpore um conjunto amplo de atores e interesses” que possa lhe dar sustentação especialmente no primeiro ano de governo. Olhando mais em profundidade e levando em conta o fato fundamental que é a elaboração e aprovação da nova Constituição, o mesmo autor adverte que talvez seja importante compreender que, em termos domésticos, “a presidência Boric deva se assumir mais como um governo de transição do que um governo de transformação”[7].
Talvez Luna tenha razão, mas pode-se se agregar uma noção de transição que vá além dos limites do país andino. Entre Allende e Boric está o esgotamento do Estado-Nação – uma dimensão histórica que transcende o Chile – e a necessidade de se traduzir um programa de reformas visando as “grandes maiorias” consonante com essa grande transformação. Talvez não haja na América Latina país mais preparado para viver essa transição estrutural que deverá confrontar e superar as visões corporativas e utilitaristas, além daquelas explicitamente ilusórias e passadistas, para instituir o vetor de um novo reformismo, não mais o “reformismo” como expressão de interesses, mas um “reformismo segundo valores”[8]. Esse o tempo e o desafio histórico da esquerda chilena que elegeu Boric.
[1] CARLOS. Newton (org.). Chile com Allende: para onde vai?. Rio de Janeiro: Gernasa, 1970.
[2] AGGIO. Alberto. “A teoria pura da revolução”. In Estado da Arte, 08 de maio de 2021. Disponível aqui.
[3] PONS. Silvio. A revolução global – história do comunismo internacional, 1917-1991. Rio de Janeiro/ Brasilia: Contraponto/FAP, 2014.
[4] AGGIO. Alberto. “A experiência chilena de Allende, 50 anos depois”. In Estado da Arte, 02 de abril de 2021. Disponível aqui. Simultaneamente em Horizontes Democráticos. Disponível aqui. Também AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. Curitiba: Appris, 3ª. Edição, 2021.
[5] HUNEEUS, Carlos. La democracia semisoberana. Chile después de Pinochet. Santiago: Taurus, 2014.
[6] AGGIO. Alberto. “A história volta a pulsar no Chile”. In Política democrática On-line, n.13, novembro de 2019, p.32-35; também em Horizontes Democráticos. Disponível aqui.
[7] LUNA, Juan Pablo. “Que le espera a Gabriel Boric?” In Nueva Sociedad, dezembro de 2021. Disponível aqui.
[8] VACCA. Giuseppe. Por um novo reformismo. Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto/Fap, 2009, p. 95.
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Chile com Boric: para onde vai? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU