13 Janeiro 2022
"É claro que a 'cultura do cancelamento' não é o mal do nosso tempo, mas é uma sua significativa manifestação. De qualquer forma, é um perigo muito mais sério para a liberdade do que uma campanha de vacinação ou o passaporte vacinal. E é surpreendente que na Itália seja o Papa quem se aperceba disso, no silêncio substancial de tantos intelectuais leigos e progressistas", escreve Antonio Polito, jornalista italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 12-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os discursos mais recentes do Papa Francisco desmentem ainda mais, como se fosse preciso, as acusações daqueles que gostariam de rotulá-lo "cripto-comunista” ou "globalista", se não mesmo inclinado ao relativismo cultural. E talvez seja por isso que passaram basicamente em silêncio. "O inverno demográfico - disse ele, por exemplo, no Angelus no dia de Santo Estevão - é contra as nossas famílias, contra a Pátria, contra o futuro"; onde aquela referência à pátria contesta a ilusão do acolhimento indiscriminado, e a ideia basicamente um tanto racista que imagina poder usar o trabalho de um povo em migração, o africano, para resolver os problemas de um povo em declínio demográfico, o italiano, numa espécie de nova "sociedade servil".
Mas ainda mais significativo foi o duro ataque que o Pontífice desferiu, diante dos membros do corpo diplomático no Vaticano, contra a chamada "cultura do cancelamento", que é desenfreada nos Estados Unidos e na área anglo saxônica como um suposto instrumento de afirmação dos direitos das minorias, tachada pelo Economist como arma da "esquerda iliberal". O ponto crítico para Francisco é que essa ânsia de derrubar estátuas e monumentos, ostracizar clássicos da literatura e do teatro, censurar autores e diretores, "renega o passado" em nome de um "bem supremo indistinto e politicamente correto". Em suma, um falso ídolo poderia se dizer; com o risco de uma "colonização ideológica que não deixa espaço para a liberdade de expressão".
Francisco vê um problema liberal que parece escapar a muitos liberais: ou seja, que "um pensamento único e perigoso está sendo elaborado, obrigado a renegar a história, ou pior ainda a reescrevê-la com base em categorias contemporâneas, enquanto toda situação histórica deve ser interpretada de acordo com a hermenêutica da época, não a hermenêutica de hoje".
Esta concepção "historicista" no líder de uma Igreja que acredita na Providência poderia parecer singular para alguns; mas há muito tempo o catolicismo baseou no "livre-arbítrio" a capacidade do homem de intervir nos eventos terrenos, pressuposto e explicação das diversidades das culturas e das épocas. A Providência não cancela, no máximo converte. O cristianismo está tão intimamente envolvido na "longa duração" da história da Europa, e de suas inúmeras contradições e culpas, que aprendeu a apreciar as mudanças de significado que as ações humanas podem assumir ao longo dos séculos. A rigidez da "cultura do cancelamento", não por acaso nascida em um mundo caracterizado por uma perspectiva histórica muito mais “curta”, cuja data de início é a descoberta de Colombo, provavelmente também contestaria aqui entre nós o Coliseu, afinal um símbolo da crueldade do mundo romano para com os "diferentes", fossem escravos ou cristãos. Mas a Igreja "absorveu" aquele monumento fatal transformando-o, em 1600, em um lugar de culto e templo, e, em 1700, consagrando a arena e proibindo sua profanação, a ponto que ainda hoje ela é o destino final da Via Crucis do Papa na Sexta-feira Santa.
Começam a se erguer algumas vozes leigas contra a “cultura do cancelamento”, ainda que com extrema prudência diante dos traços de um novo “McCarthismo” que muitas vezes assume. Noam Chomsky, que certamente é um radical de esquerda, declarou à repórter Marilisa Palumbo, no 7 do Corriere, que "é errado como princípio e suicida do ponto de vista tático: é um presente para a direita". A New York Review of Books, ressaltou Giovanni Berardinelli, sempre no Corriere, criticou o livro de um historiador segundo o qual a própria independência dos EUA teria sido iniciada em 1776 para defender o regime escravista e, portanto, também deveria ser repudiada como uma "liberdade branca", consequentemente racista. Em 2020, apareceu um manifesto de centenas de intelectuais contra a "cultura do cancelamento" que muitas vezes, junto com as ideias ou as estátuas, também tenta "cancelar" as pessoas por meio de linchamentos nas redes sociais e verdadeiras campanhas virais de boicote, rotulando-as de misóginas, homofóbicas ou transfóbico, como aconteceu com Woody Allen, Kevin Spacey, J.K. Rowling.
É claro que a "cultura do cancelamento" não é o mal do nosso tempo, mas é uma sua significativa manifestação. De qualquer forma, é um perigo muito mais sério para a liberdade do que uma campanha de vacinação ou o passaporte vacinal. E é surpreendente que na Itália seja o Papa quem se aperceba disso, no silêncio substancial de tantos intelectuais leigos e progressistas.
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A “cultura” que quer cancelar o passado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU