Babilônia e Boogie Street. Uma exploração das alianças quebradas e mantidas de Leonard Cohen

Leonard Cohen. Foto: Wikicommons

22 Novembro 2021

 

“Qual é essa aliança que Cohen estava tentando defender, como ele acreditava que Jesus fez? Se Deus é a fonte de tudo o que existe, a humanidade deve participar dessa fonte para existir”, escreve Marcia Pally, professora na New York University, é professora visitante na Faculdade de Teologia da Humboldt University (Berlim), em artigo publicado por Commonweal, 06-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Desde a morte de Leonard Cohen em 2016, muitas coisas têm sido escritas sobre o “poeta laureado do desespero”, como o jornalista Simon Worrall o chamou.

 

 

Cada uma de suas músicas, drinks e relacionamentos foram inspecionados. Mas embora haja uma crescente literatura sobre o imaginário religioso de Cohen, relativamente pouco tem sido descrito sobre as distintas figuras de Jesus em seu trabalho ou, mais genericamente, como esse trabalho falava da sua relação com Deus e com o outro.

Do início ao fim da sua carreira, contratos e violações estiveram entre os temas principais de Cohen.

Uma passagem de Santo Agostinho, poderia servir como uma introdução ao trabalho de Cohen: “Se você ama apenas o que não pode ser arrancado das mãos de seu amante, você, sem dúvida, permanece imbatível”.

Se alguém direcionar seu amor para o que não pode ser “agarrado” – isto é, para Deus – não sofrerá nenhum desejo insatisfeito nem perda.

As imagens de Cohen de desunião interior e perda – de desejos não apenas insatisfeitos, mas também insatisfatórios – iluminam os desafios da intimidade humana com Deus e nossos semelhantes, nossos medos de vulnerabilidade e dependência.

Ao contrário da sabedoria de Agostinho, Cohen foi incapaz de permanecer constante com Deus e, assim, encontrar paz consigo mesmo.

Nem podia permanecer constante com as mulheres que amava.

Essa dupla inquietação foi sua ferida persistente, investigada em mais de sessenta anos de canções e poesias que fornecem um inventário de sua alma.

Cohen cresceu no que chamou de “cidade católica” de Montreal. Sua babá católica o levou com ela à igreja.

O poder das imagens do Evangelho e seu peso em nosso repertório cultural-emocional eram, na visão de Cohen, inevitáveis, independentemente das crenças religiosas de cada um. “Um cara qualquer”, disse Cohen ao escritor Alan Hustak,

 

que diz que bem-aventurados os pobres, bem-aventurados os mansos, tem que ser uma figura de generosidade, perspicácia e loucura incomparáveis. Um homem que declarou estar entre os ladrões, as prostitutas e os sem-teto. Ele era um homem de generosidade desumana, uma generosidade que derrubaria o mundo se fosse abraçada.

 

Jesus capturou a imaginação de Cohen porque ele viveu a aliança da Bíblia Hebraica de uma forma que o próprio Cohen não pôde fazer.

Cohen também estudou o budismo e outras tradições de sabedoria, mas, como disse a Stina Lundberg Dabrowski em 1997, suas visões religiosas eram judaicas: “Nunca procurei uma nova religião. Tenho uma religião muito boa, que se chama judaísmo”.

Mas as investigações de Cohen sobre o judaísmo o levaram também a Jesus.

“Como um judeu”, observa o filósofo Babette Babich, “Cohen nos lembra de sentir por Cristo, não necessariamente de ser um cristão, mas de entender o que ele quer dizer”.

Cohen entendeu “o que quero dizer com relação a Cristo” – sua lição de amar e se doar pelo bem dos outros – mas achou difícil de sustentar. Cohen passou pelos compromissos como a água. “Enxágue e repita, de novo e de novo”, como disse Babich.

Qual é esse compromisso que Cohen estava tentando defender, como ele acreditava que Jesus fez? Se Deus é a fonte de tudo o que existe, a humanidade deve participar dessa fonte para existir. Em Gênesis, Deus deu o sopro de vida em Adão.

“Em todas as coisas”, escreveu Tomás de Aquino, “Deus trabalha intimamente”. Mas, embora tenhamos uma relação “íntima” com Deus, também somos radicalmente diferentes de Deus.

Somos materiais; Deus é imaterial. Somos finitos; Deus é infinito. Portanto, todas as criaturas estão em relação íntima com um Deus de quem são radicalmente diferentes.

 

Nós nos tornamos quem somos por meio de redes de relacionamento com aqueles que tiveram um impacto em nossas vidas

 

Foi assim que Cohen escreveu sobre isso em “Love Itself” (2001, com Sharon Robinson): “Em raios de luz eu vi claramente / A poeira que você raramente vê / Da qual o sem nome faz / Um nome para alguém como eu” (tradução livre).

 

 

Na tradição cabalista de Isaac Luria (1534–1572), os vasos sagrados que originalmente continham a luz de Deus se despedaçaram sob o poder brilhante de Deus.

No fluxo da luminescência divina, o narrador da canção vê a poeira que raramente vemos, a poeira da qual Deus nos torna num ato mais íntimo do que qualquer outro: a criação. Cohen então brinca com “nome” e “sem nome”.

Na tradição judaica, Deus é frequentemente referido como O Nome, porque o Tetragrama, YHVH, é impronunciável. Nessa letra, o Deus infinito, incorpóreo e inominável cria do pó uma pessoa finita, material e que pode ser nomeada. É assim que chegamos ao ser.

Porque o cosmos é criado como uma rede de relações entre diferentes seres, não apenas temos uma relação íntima com Deus (apesar das diferenças radicais entre Deus e nós), mas também estamos em uma relação necessária uns com os outros.

Não somos pessoas separadas e completas que podem escolher entrar em relacionamentos. Em vez disso, nos tornamos quem somos por meio de redes de relacionamento com todos aqueles, próximos e distantes, que tiveram um impacto em nossas vidas. Assim, nosso florescimento requer que vejamos e cuidemos dessas relações.

Prosperar significa cuidar do bem-estar das pessoas e redes que nos formam. Como Cohen coloca em “Please Don't Pass Me By” (1973, em tradução livre):

 

Eu esbarrei no homem na minha frente.
Senti um cartaz de papelão em suas costas ....
Dizia “Por favor, não me ignore-
Eu sou cego, mas você pode ver-
Eu estive totalmente cego-
Por favor, não me ignore”.

 

 

Ignorar os outros significa falhar em vê-los e falhar em olhar para eles. E esse fracasso impede o florescimento, o deles e o nosso.

Um nome para ver e ver os outros é “compromisso”. Por causa de nossa natureza relacional, cuidar dos outros com comprometimento recíproco é a maneira como prosperamos.

O teólogo de Princeton, Max Stackhouse, explica o pacto entre as pessoas como “um resultado ético da relação divino-humana”.

Em uma espécie de faixa espiritual de Möbius, a preocupação pactual com os outros constrói nossa aliança com Deus, da mesma forma que a aliança com Deus nos sustenta em comprometer-se aos outros.

Cohen explica assim: “O Coração abaixo está ensinando / Para o Coração quebrado acima ... / Venha a cura do Altar / Venha a cura do Nome” (“Come Healing”, Old Ideas, 2012, com Patrick Leonard).

 

 

O pacto é ascendente e também descendente. Cohen observa tanto a cura no altar humano quando ele a alcança “acima” de Deus, quanto a cura que vem do Nome, Deus, quando alcança “abaixo”, para o mundo.

Mesmo assim, rompemos compromissos quase todos os dias. Nós nos libertamos dos laços de que precisamos, dos compromissos da aliança que nos tornam quem somos, que permitem paz e prosperidade. O que atrapalha? Tudo humano.

Seguimos o chamado da Babilônia e Boogie Street, dois temas na obra de Cohen: a luta pelo lucro, o interesse próprio, outra aventura (sexual) e o conforto da integridade, de não ser dependente de outro – nem mesmo de Deus.

 

 

A biógrafa Sylvie Simmons descreve duas das “coisas favoritas” de Cohen como “sem amarras” e “uma válvula de escape” da aliança.

Mas quem fez a natureza humana ser assim? Deus. E aí está o cerne da teodiceia de Cohen, seu argumento com Deus sobre o sofrimento em sua criação.

Fomos criados para a aliança, mas também fomos feitos para sermos capazes de violá-lo.

Mas Jesus, que também era totalmente humano, sujeito às mesmas tentações que Cohen e o resto de nós, não violou seu compromisso.

Cohen voltou a Jesus frequentemente em seu trabalho para mostrar este ponto: apesar de nossos medos e quebras de aliança, ainda podemos escolher o compromisso com Deus e com outras pessoas.

Isso, apesar do fato de que Cohen sabia ser um habitual rompedor de compromissos, um homem sempre decepcionando a si mesmo e aos outros.

Com as mulheres, ele era o tipo de cara que achava a monogamia constrangedora. Ele temia ser pego em armadilha por mulheres ou por Deus.

Em “Lover Lover Lover” (1974), Cohen escreveu: “Eu [Deus] te tranquei neste corpo / Eu quis dizer isso como uma espécie de prova”. O mesmo Deus que nos criou para o amor comprometido também nos fecha em corpos cujos desejos urgentes os traem. Que tipo de “julgamento” fraudulento é esse? Que tipo de Deus?

 

 

 

Cohen entendeu que sua frustração era sua própria falha

 

Mesmo assim, Cohen entendeu que sua frustração era sua própria falha, e ele continuou voltando a esse Deus ao longo de sua vida.

Raiva e reconciliação, enxágue e repita.

Em sua última coleção de canções, ele escreveu: “Eu vi você transformar a água em vinho / Eu vi você transformá-la de volta em água também / Sento-me à sua mesa todas as noites / Eu tento, mas não lhe alcanço”.

Ainda assim, na mesma coleção, Cohen termina a canção-título, “You Want It Darker”, com uma declaração a Deus: “Hineni”, o voto hebraico de compromisso: “Aqui estou; estou aqui para ajudá-lo”.

 

 

 

O desespero de Cohen com a inconstância humana era dirigido não apenas a ele mesmo, mas a todos nós – violadores da aliança, todos nós. Entre suas lamentações mais potentes está “Israel”, onde ele escreve (em tradução livre):

 

Israel, e você que se autodenomina Israel, a Igreja que se chama a si de Israel... A cada povo, a terra é dada sob condição. Percebido ou não, existe uma Aliança, além da constituição, além da garantia soberana, além dos sonhos mais doces da nação sobre si mesma.

A aliança foi quebrada, a condição está desonrada, você não notou que o mundo foi tirado? Você não tem lugar, você vai vagar através de si mesmo de geração em geração sem uma linha

 

A aliança é para “todos os povos” e todos os povos a quebraram. Assim, vagamos “através” de nós mesmos, em um mundo repleto de outros andarilhos, todos nós desconectados uns dos outros.

Não lutamos mais para viver com Deus; pensamos que conquistamos uma independência moderna e “soberana” do transcendente e não toleramos mais as marcas do entrelaçamento.

Qual é a resposta de Deus? Luto, mas não fechamento. Deus mantém a porta aberta. Este, como o compromisso dado, também é o ponto sobre Jesus.

Em “Avalanche” (1971), Cohen escreve que Deus, no corpo de Jesus, entra na avalanche da vida humana. Ele é rejeitado, abandonado, mas espera o retorno da humanidade.

Você diz que se afastou de mim / Mas eu posso sentir você quando você respira... / É a sua vez, amada / É a sua carne que eu visto”. Tendo assumido a carne humana para estar com a humanidade, para nos amar e nos proteger, Deus ainda espera por nosso retorno à aliança.

 

 

Cohen ficou especialmente comovido pelo amor de Jesus pela humanidade, mesmo em meio à traição. Isso reúne os dois “pontos” de Cohen sobre Jesus: sua lição de amor pactual e sua lição sobre o que acontece conosco quando traímos esse amor. Entre outros horrores, crucificamos Deus.

Jesus, escreveu Cohen, “foi pregado a uma condição humana, convocando o coração para compreender seu próprio sofrimento, dissolvendo-se em uma confissão radical de hospitalidade” – uma hospitalidade que se estendia a seus perseguidores. Jesus perdoou. Podemos aprender com isso, mas geralmente não o fazemos.

Como Doron Cohen (sem parentesco) citou uma fala de Leonard, de 2001:

 

No coração de cada cristão, Cristo vem e Cristo vai. Quando, por sua graça, a paisagem do coração se torna vasta, profunda e ilimitada, então Cristo faz Sua morada naquele coração gracioso e Sua vontade prevalece. A experiência é reconhecida como Paz. Na ausência dessa experiência muitas atividades ascendem, divisões de todo tipo”.

 

Essas divisões são nossa escravidão no Egito, nosso exílio na Babilônia, nossa Boogie Street e nossa cruz. Ao quebrar o compromisso, entristecemos o Deus de Israel e Jesus, que, no entanto, nos mostra a graça.

Em “The Window” (1979), Cohen escreve: “Por que você fica perto da janela / Abandonado à beleza e ao orgulho / O espinho da noite em seu seio / A lança da idade em seu lado?”. Por que, Jesus, você se preocupa em ficar à janela, exposto a todos, enquanto a humanidade em todas as épocas o abandona à beleza e ao orgulho? Como, por que, você nos ama, nós que te traímos? Cohen fez essa pergunta ao longo de suas seis décadas de escrita.

 

 

 

Ele sabia que não poderia haver verdadeiro florescimento até que nos comprometêssemos com os outros de uma forma que ecoasse, embora imperfeitamente, o amor de Jesus.

Cohen captou momentos disso em sua vida, perdeu e procurou novamente. Aos setenta e oito anos, ele escreveu sobre o amor-na-crucificação de Jesus como o que restaura a humanidade: “As lascas que você carrega / A cruz que você deixou / Venha curar o corpo / Venha curar a mente” (“Come Healing”, 2012, com Patrick Leonard). É das lascas da cruz “deixadas para trás” por nós que nossas feridas autoinfligidas no corpo e na mente são curadas.

No refrão de “The Window”, Cohen busca seu amor “escolhido”, aquele que já foi humano (“matéria”) e agora é graça (“fantasma” santo). Cohen pede que esse amor “suavize essa alma” do sofrimento que causamos a nós mesmos:

 

Oh amor escolhido, Oh amor congelado
Oh emaranhado de matéria e fantasma
Oh querida dos anjos, demônios e santos
E todo o anfitrião de coração partido
Acalme essa alma” (em tradução livre).

 

No quinto aniversário de sua morte, esperemos que esta oração tenha sido atendida.

 

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