“Precisamos de cidades em que possamos atravessar a rua sem usar um aplicativo”. Entrevista com David Sim

Fonte: Piqsels

17 Novembro 2021

 

As ruas livres de carros, as centenas de quilômetros de ciclovias e as intermináveis calçadas nas quais o pedestre sempre tem preferência formam a identidade de Copenhague. Mas a capital dinamarquesa nem sempre foi assim. Até 1960, a fumaça dos escapamentos dominava a área urbana, assim como continua acontecendo na maioria das cidades do mundo. Strøget, sua artéria comercial e hoje um dos maiores calçadões da Europa, era quase uma rodovia.

 

Em parte, por trás da transformação de Strøget estão as ideias de Jan Gehl. Este arquiteto dinamarquês que em 1960 acabava de sair da universidade é hoje uma referência no desenho de cidades para as pessoas. Quando Copenhague converteu sua primeira rua em um espaço para pedestres, era pouco mais do que um idealista empenhado em demonstrar não apenas que era possível recuperar as cidades para os cidadãos, como também que a transformação traria benefícios consigo.

 

Em seu momento, a transformação de Strøget provocou mal-estar em muitos dinamarqueses. Chegaram até mesmo a se manifestarem com argumentos do tipo “não somos italianos e não gostamos de tomar café na rua”, explica o arquiteto escocês David Sim, que trabalhou lado a lado com Gehl, nos últimos 16 anos, e foi diretor criativo e responsável pelo planejamento urbanístico da empresa liderada pelo dinamarquês.

 

Autor do conceito de cidade amável ou suave, desenvolvido em seu livro Soft City: Building Density for Everyday Life, Sim relembra o que o atraiu nas ideias de Gehl. “As pessoas que confiam na ciência, buscam dados e provas. Jan Gehl reuniu evidências sobre o impacto da priorização dos pedestres e a humanização de Copenhague. Ao final, muitas de suas descobertas poderiam ser qualificadas como do sentido comum: gostamos de sentar na rua, que haja árvores ou aproveitar o sol. Mas é um sentido comum que muitas cidades esqueceram”.

 

A entrevista é de Juan F. Samaniego, publicada por La Marea-Climática, 15-11-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

 

Quando observamos as cidades ao nosso redor, não vemos muita amabilidade. Podem ser lugares muito duros do ponto de vista social, ambiental e da saúde. O que aborda essa "soft city" que tanto defende?

 

Quando escutei as primeiras palestras de Gehl, nos anos 1990, falava em cidades com esquinas suaves. Intersecções de ruas com pequenos jardins ou terraços mais amáveis para as pessoas. A ideia é levar isso a todo o planejamento urbano. As cidades precisam lidar com o dia a dia das pessoas. Sobre como pegar o ônibus, como ir ao colégio. Não vão de arquitetura sexy.

 

A cidade amável responde às necessidades das pessoas. É flexível, adaptável e ao mesmo tempo simples. É como as persianas típicas das cidades mediterrâneas na Espanha, com suas passagens para que entre mais ou menos sol, mais ou menos fresco. Permitem milhares de opções a partir da simplicidade, de forma instintiva, sem aplicativos no meio, nem gasto energético. É uma solução soft.

 

 

Contrapõe-se à ideia de cidade inteligente?

 

Não necessariamente. Mas o conceito de smart city me parece frustrante porque sempre envolve tecnologias caras. Precisamos de cidades em que possamos atravessar a rua sem usar um aplicativo. A soft city também tem que poder ser sentida, tem que estar desenhada para que seus habitantes a cheirem, toquem, desfrutem. E tem que ser tranquila e agradável, transmitir confiança e segurança e ser respeitosa ao meio ambiente, integrar-se com o ambiente.

 

Além disso, partimos do fato de que a maioria das ações necessárias não são caras. Mudar o tráfego para dar mais espaço às bicicletas ou plantar árvores não exige grandes investimentos, mas têm um grande impacto na vida das pessoas.

 

 

Nunca há exemplos perfeitos, mas que cidades amáveis existem hoje em dia?

 

Há muitos exemplos e aproximações. Em Madrid mesmo. Ali, gosto do conceito do mercado de San Miguel, em que se aposta em um espaço comum e plural para o comércio e o lazer. É um mesmo edifício que se transforma e muda de função, é um espaço amável no qual prima a interação social.

 

 

Em 2009, Copenhague adotou os princípios de Jan Gehl para planejar a evolução da cidade na próxima década. Como mudou, desde então?

 

Copenhague é um dos grandes exemplos de como construir uma cidade soft. As ciclovias ou um simples gesto como ampliar as calçadas mais ensolaradas mudaram a vida de muitas pessoas. Outra ação simples e com grande impacto que está sendo realizada é dar continuidade às calçadas. São os carros que aguardam até que não passe ninguém pela calçada para atravessarem e não o contrário. Isto permite, por exemplo, às crianças irem ao colégio seguros e que se movimentar a pé seja a opção mais rápida e eficiente na cidade.

 

Os pátios, que na Espanha vocês conhecem bem, também tiveram um papel transformador em Copenhague. Muitos se tornaram jardins e espaços públicos para os moradores. Na parte dianteira da moradia, você tem ruas com tráfego e comércios, mas na parte traseira tem um parque. São ações relativamente simples que mudam a vida das pessoas. Os pátios são mágicos e a arquitetura moderna parece que se esqueceu deles.

 

 

Se as cidades amáveis são feitas para o pedestre, precisam ser também cidades densas, com a maioria dos serviços à mão.

 

As cidades amáveis também estão na vida do bairro, na vida na rua. As cidades densas permitem fazer um montão de coisas úteis perto de casa. A pandemia nos deixou uma grande lição sobre as cidades: por maiores que sejam, as pessoas vivem suas vidas nelas de forma local.

 

Paris fala agora da cidade dos 15 minutos, onde quase tudo está disponível a menos de 15 minutos caminhando. Eu acredito que temos que pensar na cidade dos três minutos, dos 60 segundos. A proximidade é um valor fundamental nas cidades, permite que as pessoas vivam de forma local em seus bairros.

 

 

O que precisamos para redesenhar nossas cidades e torná-las amáveis?

 

Esta é uma pergunta com muitas respostas do ponto de vista da arquitetura, do urbanismo, da política e da economia. Para mim, é muito importante que seja qual for a solução que escolhamos para cada desafio, que seja relevante para as pessoas. Os cidadãos precisam se sentir envolvidos. Por exemplo, em Copenhague as pessoas não usam a bicicleta para reduzir emissões de gases do efeito estufa, a utilizam porque é cômodo e mais rápido.

 

Todos compartilhamos a cidade, seja qual for a nossa ideologia ou nosso grupo social. É melhor que seja uma cidade agradável para todos. E, como vimos, não é necessário gastar muito para isso. De fato, há muitas cidades com poucos recursos que fizeram coisas muito interessantes. A ciclovia de Bogotá tem quase 50 anos. Medellín mudou com escadas rolantes e passarelas para conectar os bairros.

 

As administrações, aqueles que tomam decisões, têm que ser conscientes de que com pouca coisa é possível aumentar a qualidade de vida e o valor dos bairros. Alguns bancos, calçadas mais largas, mais árvores, mais comércios locais, mais parques... São todos elementos simples que mudam os bairros. Um dos melhores exemplos são as supermanzanas de Barcelona.

 

 

O gasto necessário talvez seja uma das grandes diferenças entre o conceito de "smart city" e o de "soft city". Como um interfere no outro?

 

A tecnologia nos ajuda de muitas formas a melhorar a vida em uma cidade analógica. Por exemplo, podemos saber com exatidão que horas e de onde sai o ônibus que nos leva para onde desejamos ir. A informação que um smartphone nos oferece combina perfeitamente com uma cidade amável. Mas o mais importante é que as experiências das pessoas sejam a prioridade.

 

Não quero parecer cínico, mas a maior parte do discurso da smart city se baseia em vender tecnologia que é muito cara. No entanto, as cidades podem fazer muitíssimas coisas para as pessoas que são baratas. Tóquio é o exemplo perfeito: uma cidade enorme, muito moderna e tecnológica, mas formada por bairros simples, acessíveis e pequenos. É uma megacidade feita de povoados.

 

 

A pandemia mudou o conceito que temos da vida na cidade?

 

Penso que o teletrabalho nos permitiu entender que há coisas da cidade que podemos levar para outro lado. Podemos viver em uma cidade pequena, com serviços, mas na qual tenhamos o campo ao lado, e continuar trabalhando de forma remota. Agora mesmo, há muito debate sobre como transferir as vantagens de se viver em uma grande cidade aos núcleos menores. De fato, o conceito soft não é delimitado pelo tamanho da cidade. Afinal de contas, um bairro denso e com serviços funciona como uma cidade pequena.

 

 

Falamos em cidades amáveis, sem barulho, com parques, sem poluição... Onde colocamos os carros?

 

Não faço parte daqueles que dizem que é preciso transformar tudo em calçadas, mas penso que precisamos mudar nossa relação com os carros. Temos que demarcar certas prioridades. O mais importante na hora de se movimentar em uma cidade é caminhar e é preciso favorecer isso. Além disso, é melhor que as mudanças sejam graduais para que as pessoas percebam melhor as vantagens.

 

Deixar o carro de lado beneficia claramente as pessoas, mas também a cidade. Os dados dizem que os cidadãos que caminham ou usam bicicleta gastam mais em seus bairros. Sentem o cheiro do café e do pão fresco ou percebem o bem que faz ficar em um terraço e param. Se estão em um carro, não percebem e nem podem parar onde quiserem.

 

Quando uma pessoa não pode usar seu carro particular para se deslocar, isso tem um custo, um impacto em sua vida. Os donos dos comércios locais também sentem que é assim. Mas os dados demonstram que a cidade melhora para todos com menos espaço para os carros, tráfego mais lento e mais alternativas de mobilidade. Há muitas pesquisas a esse respeito. Por exemplo, as crianças que caminham até a escola têm melhores resultados acadêmicos do que as que vão de carro.

 

 

É possível levar essa transformação aos países menos desenvolvidos, para cidades desiguais e sem infraestruturas?

 

Claro que é possível. A América Latina é o melhor exemplo. Não quero romantizar a pobreza, mas muitas das favelas do Brasil possuem traços de soft city. São feitas para caminhar, para estar em contado com os vizinhos, cheias de comércios locais. São construídas ao redor das pessoas.

 

Claro que há muitos problemas de insegurança, de criminalidade e de pobreza. Não digo que exista bem-estar. Mas é uma demonstração de que é possível fazer a transformação para cidades amáveis em lugares com poucos recursos. A partir dos governos locais, com criatividade e sendo conscientes da realidade de cada bairro, é possível encontrar soluções simples e baratas para construir cidades mais amáveis. Precisamos de mais soluções locais.

 

 

Nesses dias, vemos na COP26 grandes discursos de grandes líderes que, em muitos sentidos, pareciam muito longe da realidade. Estamos dando às cidades a importância necessária na luta contra as mudanças climáticas?

 

Penso que as decisões são mais eficientes quando tomadas em nível local. Muitos dos países mais desenvolvidos e com maior bem-estar são países pequenos. Há um século, Suécia e Finlândia eram os países mais pobres da Europa. Não é a única razão de seu desenvolvimento, mas acredito que o tamanho deles permitiu construir democracias robustas e eficientes.

 

A política local é muito diferente da política nacional, precisa buscar mais consenso, e os governos municipais costumam estar mais conscientes da realidade de seus moradores. As cidades são plurais e tolerantes, razão pela qual são o espaço perfeito para encontrar acordos e soluções para as mudanças climáticas.

 

 

A urbanização do mundo parece imparável, mas as cidades também podem ser lugares muito vulneráveis aos desastres climáticos. Como adaptá-las a um contexto que será mais extremo no futuro?

 

Há questões mais transversais, como a organização ou a construção de infraestruturas resistentes. Depois, há uma multidão de soluções locais para cada problema ou ameaça específica, soluções que devem ser amáveis para as pessoas.

 

Em Copenhague, onde existe muito risco de inundações, optou-se inicialmente por um sistema de bombeamento caríssimo que seria subutilizado. Finalmente, construiu-se um espaço público flutuante capaz de absorver o excesso de água quando ocorre a inundação. Grandes cidades como Madrid ou Lisboa, que sofrem o aumento das temperaturas pelo efeito ilha de calor, podem optar por soluções naturais de refrigeração, como ter mais vegetação nas ruas, ainda que signifique reduzir um pouco as praças de estacionamento.

 

 

O aumento do nível do mar está encurralando algumas cidades costeiras, que veem como o seu território desaparece em razão da erosão. Temos que pensar em mudá-las de lugar?

 

Essa é uma realidade cada vez mais presente. Talvez em alguns casos tenhamos que pensar em abandonar terrenos urbanos e devolvê-los à natureza. Mas também é preciso ter clareza de que o impacto da crise ambiental nas cidades, em muitas ocasiões, tem a ver com a desigualdade e a segregação da população pobre.

 

Se tomamos o caso de Nova Orleans, não é sustentável continuar construindo uma cidade abaixo do nível do mar, em um terreno muito mutável. Mas também não é manter uma cidade tão desigual, com uma população e bairros inteiros completamente abandonados. Quando pensamos soluções para os problemas ambientais, temos que pensar no contexto social e econômico de cada lugar.

 

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