04 Novembro 2021
"Se o marco temporal de 05.10.1998 pretendido pelas forças colonizadoras for estabelecido, isso significa que toda a história anterior de extermínio e expulsão de indígenas de suas terras será aprovada e considerada normal, toda a sua desumanidade será fixada em lei. Com tanta violência na terra, que grita aos céus como o sangue de Abel, a gente não pode se admirar da falta de esperança de que esse nosso país, algum dia, ainda terá algum futuro decente!", escreve Hans Alfred Trein, mestre em Teologia Bíblica com ênfase em Hermenêutica – Leitura Popular da Bíblia, Pastor na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, foi coordenador do Conselho de Missão entre Indígenas – COMIN da IECLB (2003-2014).
Minha história com indígenas começou ainda menino, no colo do meu bisavô, Richard Marmein. Ele imigrou ao Vale do Itajaí, em 1904, e atuou como agrimensor. Foi jurado de morte pelo notável cacique Xokleng, Camrém, pois, como medidor de terras, ele era a pessoa que os indígenas viam entrando em suas terras tradicionais, ação seguida da instalação de colonos. Ou seja, era compreensível que os Xokleng pensavam em parar aquela atividade invasora de suas terras, eliminando o ponta de lança.
Meu bisavô contava histórias de suas incursões nas terras indígenas. Contava como os indígenas se comunicavam, imitando passarinhos; como se locomoviam sem fazer barulho na mata; como se arrastavam pelos banhados para chegar mais perto do pessoal invasor, o que resultou numa expressão até carinhosa, corrente na família – “Schlammbuger”; como, à noite, o grupo das medições fazia um foguinho para espantar muriçocas, animais selvagens e sempre tinha alguém acordado de plantão; como, durante a madrugada, os Xokleng se aproximavam silenciosamente da rede de pesca, estendida no riozinho, para colher os peixes; como numa madrugada seguinte meu bisavô ficou de tocaia e atirou para fazer um buraco no casco da canoa, e viu como remavam intensamente, tirando água para não ir a pique...
Com essas histórias, e com o que eu aprendi na escola sobre “os selvagens”, eu tinha tudo para adotar a postura de supremacia colonizatória, com todas aquelas ideias discriminadoras sobre os primeiros povos do Brasil.
Entretanto, prevaleceu a curiosidade. A gente só despreza o que não conhece. Aprendi sobre o extermínio de povos indígenas. Aprendi que foram sendo expulsos de suas terras, à medida em que bandeirantes e pioneiros iam impondo suas cercas e sua cultura. Aprendi que o que nos diferencia é apenas a cultura, e não a humanidade. Descobri riquezas imensas em suas culturas. E as diferenças entre as culturas dos diferentes povos são tão grandes como a diferença de uma cultura europeia para uma cultura asiática. E Jesus quer que todos tenham vida, e vida em abundância (João 10.10) e não que alguns vivam em cima da desgraça de outros.
Mais tarde, já como pastor no Mato Grosso, vieram as primeiras oportunidades de convivência com os Xavante, os Boróro; com os Kulina, no Rio Purus, convivi apenas uma semana na aldeia Maronaua; foi uma experiência marcante de imersão cultural, o suficiente para desconstruir preconceitos que a criação numa sociedade colonizadora pode ensinar. No COMIN (2003-2014) tive oportunidade de aprofundar o conhecimento antropológico sobre os diferentes povos e, em especial, me confrontar com a continuidade de políticas que negam o direito originário dos povos indígenas a suas terras de ocupação tradicional (Constituição Federal, Art. 231). E mais, com a crueldade e a violência com que são tratados por milícias armadas de latifundiários gananciosos e por discursos insidiosos de políticos oportunistas.
Nos dias que correm, a continuidade colonizatória se manifesta claramente no chamado marco temporal. A Constituição Federal não fixou um marco temporal, pois a constituinte reconheceu a necessidade imperiosa de reparar danos históricos causados aos primeiros habitantes, garantindo condições de vida e cultura, pelo menos àqueles povos ainda vivos. Há um marco temporal implícito que são as pessoas indígenas mais idosas que ainda podem indicar terras de ocupação tradicional de seus grupos. Extensos estudos antropológicos confirmam a verdade histórica da ocupação tradicional, que - para quem não é totalmente ignorante ou de boa fé - nem é um conceito de tempo, mas de cultura.
Se o marco temporal de 05.10.1988 pretendido pelas forças colonizadoras for estabelecido, isso significa que toda a história anterior de extermínio e expulsão de indígenas de suas terras será aprovada e considerada normal, toda a sua desumanidade será fixada em lei. Com tanta violência na terra, que grita aos céus como o sangue de Abel, a gente não pode se admirar da falta de esperança de que esse nosso país, algum dia, ainda terá algum futuro decente!
Meu bisavô tinha uma pintura de Camrém em sua sala. Na parte de trás do quadro escreveu que encontrou o cacique, numa exposição de gado em Ibirama, em 1921. Ali deram-se a mão, em sinal de reconciliação. Uma observação, entretanto, chama a atenção: Camrém, acompanhado do chefe de Posto Indígena, Eduardo Hoerhahn, estava submetido e desanimado; nada mais tinha de um cacique indígena altivo e livre. Ao final de sua vida, meu bisavô falava com respeito sobre Camrém. Por seu perfil, até imagino que tenha compreendido só mais tarde como tinha sido usado e a que projeto nefasto ele servira com suas atividades agrimensoras.
Lembranças da minha infância que voltaram, quando em visita à Terra Indígena dos Xokleng, de repente constatei que estava sentado ao lado do bisneto de Camrém. Ali entendi porque eu tinha sido convocado para servir na coordenação do Conselho de Missão entre e junto com Povos Indígenas da IECLB.
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Se aprovado, marco temporal fixará a desumanidade em lei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU