26 Outubro 2021
"Os historiadores olharão para 2021, verão o acúmulo de escândalos e de disfunções, e contarão como um papa jesuíta – auxiliado por uma dinâmica irmã missionária xaveriana francesa – deu início a uma vasta reforma, centrada em redespertar a adormecida tradição católica da sinodalidade".
O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.
O artigo foi publicado por Commonweal, 21-10-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No início de julho, em preparação ao que ficou conhecido como o “Sínodo sobre a Sinodalidade”, a secretaria geral da comissão de espiritualidade do Sínodo convocou uma reunião dos superiores das ordens religiosas em Roma. Na grande sala da Cúria jesuíta, no Borgo Santo Spirito, estavam reunidos os superiores gerais dos jesuítas, dos maristas, dos claretianos, dos eudistas e dos salesianos, junto com o mestre dos dominicanos, o vigário geral dos agostinianos, o abade e primaz geral dos beneditinos, e assim por diante, junto com os presidentes dos grupos de religiosos e religiosas em todo o mundo católico, sejam contemplativos, apostólicos ou carismáticos.
A pauta da reunião? Compartilhar experiências das muitas tradições diferentes de sinodalidade e de discernimento coletivo. Ou, em uma linguagem mais simples, descobrir como as diferentes ordens tomam decisões, elegem lideranças e escutam o Espírito Santo incitando-os a mudar.
Quando estive em Roma para o lançamento do Sínodo de 9 a 10 de outubro, eu ouvi relatos desse encontro por parte de várias pessoas que estavam envolvidas, entre elas a mulher que se tornou o rosto e a voz do Sínodo. O que o encontro mostrou, disse-me a irmã xaveriana francesa Nathalie Becquart, foi como cada uma das ordens desenvolveu diferentes mecanismos de deliberar como um mesmo corpo e de chegar a um consenso – seja classicamente, na forma de “Capítulos Gerais” de mosteiros e conventos, ou como exercícios de discernimento em grupo, desenvolvidos, por exemplo, pelos jesuítas.
Muitos institutos religiosos tinham assembleias regulares, outros participavam de consultas antes da tomada de decisões, enquanto alguns combinavam práticas consultivas e deliberativas. A diversidade de métodos e tradições era enorme. No entanto, ao lado das linhas claras de autoridade e de obediência na maioria das ordens religiosas, havia dois elementos que todas pareciam ter em comum.
O primeiro é que o discernimento e a tomada de decisões são assuntos de todo o corpo, não apenas dos poucos aos quais foi confiada a governança. Em seu importante discurso sinodal de outubro de 2015, o Papa Francisco citou uma antiga máxima: “Quod omnes tangit, ab omnibus tractari et approbari debet” (“aquilo que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos”). E porque Deus às vezes fala por meio dos mais jovens da comunidade, como observa São Bento em sua regra do século VII, possibilitar a participação significa prestar uma atenção especial às margens tímidas, aos lugares improváveis, às pessoas de fora.
O segundo é que essa questão da consulta e da deliberação não está separada da vida de oração, mas é intrínseca a ela. O habitus da tomada de decisão comunitária é ouvir os outros com atenção, buscando os sussurros do Espírito até mesmo na boca das pessoas de quem nos ressentimos ou discordamos. Isso exige, portanto, dar tempo para todos, em igual medida, para falar com honestidade e ousadia, mas sem martelar os outros com as nossas opiniões, para que seja possível um silêncio pacífico e aberto, de modo que possamos escutar o que as palavras nem sempre dizem e muitas vezes podem ocultar. A sinodalidade exige que compreendamos que não possuímos a verdade, mas que, às vezes, quando deixamos de lado as nossas emoções e agendas, ela nos possui, transbordando os canais estreitos do nosso pensamento.
Em suma, a participação e a escuta orante são as marcas do modus vivendi, operandi et cogitandi dessas ordens religiosas. Isso é a sinodalidade. Ela tem sido usada para as eleições da Igreja desde que os apóstolos pediram a Deus que revelasse aos seus corações quem deveria tomar o lugar de Judas. Ela tem sido usada para transcender problemas e conflitos desde que a “questão judaica” ameaçou destruir a Igreja primitiva.
O capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos relata como, no Concílio de Jerusalém, o povo, os anciãos e o Espírito estavam todos empenhados em discernir o novo caminho para a Igreja, anunciado por São Pedro com aquelas famosas palavras: “Decidimos, o Espírito Santo e nós”.
No entanto, por razões históricas – a corrupção do mundanismo, a sedução do poder, o enredamento com impérios –, a sinodalidade foi espremida para fora da Igreja, deixando suas estruturas de autoridade parecendo menos com aquelas que encontramos nos Atos e mais com as monarquias absolutas e as estruturas corporativas de comando e controle do mundo moderno.
Agora, ninguém precisa ser informado sobre onde isso começou. Na manhã do meu encontro com a subsecretária do Sínodo, a Ir. Nathalie, os jornais estavam cheios de histórias sobre o relatório de 2.500 páginas de Jean-Marc Sauvé, encomendado pelos bispos franceses, que analisa os abusos sexuais clericais desde 1950. Os números eram surpreendentes, e as manchetes e citações traziam os usuais adjetivos chocantes e embaraçosos, desgastados de tanto serem repetidos.
Mas fiquei impressionado com o momento da publicação do relatório, apenas alguns dias antes da abertura do Sínodo, e com a forma como ele se debruçou sobre aquilo que chamou de “sacralização excessiva da pessoa do padre”, como se a sacralização de qualquer pessoa pudesse não ser excessiva.
O clericalismo – a idolatria do clero, o culto da instituição, o abuso de poder – foi novamente desnudado, e não era apenas uma trahison des clercs desta vez, mas de leigos também: “desvios de autoridade” endêmicos, culturais, sistêmicos, como Sauvé afirmou, que pareciam se assentar nas próprias estruturas da Igreja Católica.
No caffé lungo em frente aos escritórios sinodais da Via della Conciliazione, a Ir. Nathalie também abordou o relatório de Sauvé. Segundo ela, uma “conversão sinodal” significa que não podemos mais ter uma Igreja que permita o tipo de cultura da dominação exposta vergonhosamente no relatório. Uma Igreja na qual as pessoas comuns são ouvidas e se reconhecem como capazes – como discípulas missionárias, distintas do clero por função, mas iguais em dignidade – não é mais uma Igreja que permite ou é cega frente ao abuso de poder e de consciência do qual depende a exploração sexual de pessoas vulneráveis.
“Não há necessidade de criar outra Igreja”, disse o Papa Francisco na Sala do Sínodo no dia 9 de outubro, citando o livro “Verdadeira e falsa reforma na Igreja”, de Yves Congar. A tarefa, em vez disso, é “criar uma Igreja diferente”, a Igreja reimaginada pela Lumen gentium do Concílio Vaticano II. Uma Igreja Católica sinodal ainda é uma communio hierarchica, mas a autoridade não é mais exercida de uma forma remota e autoritária. A liderança se torna “co”: uma questão de colaboração, cooperação e corresponsabilidade (isso é algo fácil para os jovens, diz a Ir. Nathalie, que já trabalhou com eles durante anos. Ela os chama de “Geração Co”). Em uma Igreja corresponsável, o Espírito guia a todos nós; o padre e o bispo estão no meio do povo de Deus, não pairando sobre eles. É a Igreja fundada por Jesus Cristo, mas que também o reflete: não mais abusiva, não mais clerical, mas sinodal.
E então isto veio à minha mente: os historiadores olharão para 2021, verão o acúmulo de escândalos e de disfunções, e contarão como um papa jesuíta – auxiliado por uma dinâmica irmã missionária xaveriana francesa – deu início a uma vasta reforma, centrada em redespertar a adormecida tradição católica da sinodalidade. Apontando para a reforma gregoriana do século XI, de inspiração monástica, ou para a revolução franciscana do século XIII, ou para os jesuítas da Contrarreforma, os historiadores verão um novo capítulo em uma velha história, repetida tantas vezes ao longo da história da Igreja, sobre as ordens religiosas que novamente vêm em socorro de uma Igreja diocesana repleta de crises.
Portanto, não é de se surpreender se o bispo e o pároco parecem estar agindo com irritação neste novo processo sinodal, tentando ao máximo dar de ombros. Afinal, foi assim que a maior parte da Igreja secular respondeu no início à Reforma Gregoriana.
Para a minha grata surpresa, fui convidado à própria Sala do Sínodo na manhã do dia 9 de outubro, junto com cardeais da Cúria com seus barretes vermelhos, poucos bispos diocesanos (cada continente foi convidado a enviar uma delegação de dez), e muitos religiosos e leigos, muitos deles jovens. Em nossos apoios de braço estavam os microfones e os fones de ouvido que os bispos usam nos sínodos para “falar com franqueza e ouvir com atenção”, como Francisco os instruiu a fazer no início do Sínodo da Família em outubro de 2014.
Apesar de ser uma semana incomumente pesada, o papa estava em excelente forma. Ele nos lembrou que o Sínodo não é um parlamento ou uma pesquisa de opinião, mas um “evento eclesial cujo protagonista é o Espírito Santo”. Ele fez algumas considerações de eclesiologia conciliar: as três palavras-chave deste Sínodo – comunhão, participação e missão – são intrínsecas à Igreja regenerada pelo Vaticano II, das quais as duas primeiras refletem a vida da Trindade, e a terceira reflete o compromisso apostólico com o mundo de hoje que flui a partir daí.
Mas, depois, Francisco se debruçou sobre uma das palavras-chave em particular. Sem participação, disse ele, a sinodalidade corre o risco de permanecer abstrata e “os discursos sobre a comunhão correm o risco de permanecer como piedosas intenções”. Sem “envolvimento real” – manifestando-se, falando, sendo ouvido, agindo – a sinodalidade permanece no papel.
A participação, disse ele, não é uma questão de forma, mas de fé. O que ocorre no batismo é a atribuição da “igual dignidade aos filhos de Deus”. O batismo, portanto, exige que participemos na vida e na missão da Igreja, em toda a diversidade de seus carismas e ministérios.
No entanto, 50 anos depois do Concílio, Francisco sabe que não é o que ocorre. Apesar de alguns avanços, “há uma certa fadiga”, disse ele. Reconhecendo “o incômodo e a impaciência de muitos agentes de pastoral, dos órgãos de participação das dioceses e das paroquias, das mulheres que frequentemente ainda estão à margem”, ele acrescentou que a participação de todos é uma “obrigação eclesial essencial”.
Fiquei impressionado com a expressão: a obrigação é de que a Igreja permita a participação. A falta de participação do povo de Deus é o resultado não da sua relutância, timidez ou acídia, em outras palavras, mas de uma Igreja que muitas vezes lhes nega “agência”.
Em seguida, no discurso, falando das graças deste processo sinodal em todo o mundo, Francisco voltou ao ponto: agora é a chance, disse ele, para avançar “não ocasionalmente, mas estruturalmente” rumo a uma Igreja sinodal, que ele definiu como “um lugar aberto onde todos se sentem em casa e podem participar”.
Essa crítica não foi retomada nos outros discursos, que acentuaram o convite à participação, mas passaram pelos obstáculos eclesiais para fazer isso. “Todo o povo de Deus está sendo chamado, pela primeira vez, a participar de um Sínodo dos Bispos”, disse Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola, “e também estão incluídos no convite aquelas pessoas a quem não sabíamos como ouvir, que foram embora sem que percebêssemos que tinham partido – elas também são convidadas a fazer ouvir as suas vozes, a nos enviar as suas reflexões, as suas preocupações, a sua dor.”
O presidente do Sínodo ou relator geral, o cardeal jesuíta de Luxemburgo Jean-Claude Hollerich, que tem a tarefa de resumir as respostas, disse que as páginas do futuro documento de trabalho estavam em branco e que não tinha ideia do que escreveria. “Cabe a vocês preenchê-las”, ele nos disse, enfatizando que “todos podem participar, especialmente os mais pobres, os sem voz, os da periferia”. Mas ninguém notou a pergunta que Francisco gentilmente levantou sobre o “como”: como as estruturas da Igreja precisariam mudar para facilitar a participação de todo o corpo.
Na metade da manhã, surgiu a oportunidade de modelar o método sinodal, quando nos dividimos em pequenos grupos linguísticos pré-designados de cerca de 20 pessoas cada um, constituídos por autoridades da Cúria (havia três chefes de dicastério no meu grupo inglês “E”), diocesanos bispos, religiosos radicados em Roma, um convidado ecumênico e leigos de vários tipos. Nosso facilitador nos convidou a falar sobre como o “caminhar juntos” ocorreu (ou não) na nossa Igreja local, e as nossas esperanças e temores em relação ao processo sinodal global.
O método foi interessante. Depois das apresentações, refletimos em silêncio por cinco minutos, preparando as nossas sugestões. Cada pessoa falou por um tempo máximo de três minutos. Depois, vieram mais cinco minutos de reflexão silenciosa. Então, depois de reler suas anotações, cada pessoa compartilhou por mais dois minutos tudo o que havia se iluminado ou ressoado nelas (a orientação que recebemos de antemão nos convidava a levar em consideração a que o Espírito parecia estar nos chamando, que caminhos estavam sendo abertos e a notar “movimentos espirituais internos” de alegria ou de tristeza, de ansiedade ou de confiança, de consolação ou de desolação). Por fim, houve um tempo livre de cerca de 20 minutos para “discernir e elaborar a síntese”, que seria redigida como um “verbale” a ser enviado à Secretaria do Sínodo.
Foi surpreendente que as autoridades vaticanas – cardeais e bispos – ofereceram frases teológicas de impacto, enquanto os religiosos e leigos falaram de experiências. As frases de impacto eram boas: Francisco estava dando a permissão para que a Igreja fosse o que a Lumen gentium previra; a sinodalidade era o antídoto ao individualismo e à divisão tribal; tínhamos agora a chance de recuperar a forma original de “ser Igreja”, permitindo que as decisões surjam a partir de baixo.
Mas as experiências eram muito mais atraentes, especialmente aquelas das religiosas que descreveram os esforços de suas ordens para se tornarem mais sinodais em sua forma de governar e de tomar decisões. Isso significava, segundo elas, uma mudança de mentalidade e de cultura, aceitando um maior grau de incerteza e de tensão que gerava desconforto em muitas delas.
No entanto, a construção por meio da oração e da escuta nos processos levou a uma maior conscientização em relação às margens, a mais união e alegria, e a uma maior humildade. Elas falaram da tentação do mundanismo, de cair em uma tentativa autoritária para apresentar uma face externa de uniformidade e eficiência, em vez de aceitar seus conflitos e incertezas, e de esperar no Espírito para que as respostas surjam.
Enquanto falavam, parecia óbvio que a sinodalidade e a santidade estavam entrelaçadas, que uma Igreja sinodal reflete melhor, como Francisco acabara de nos dizer, “o estilo de Deus, que é proximidade, compaixão e ternura”. No meu pequeno grupo, eu não vi nenhuma língua de fogo. Mas, ao rever a experiência depois, ela parecia autêntica, como se essa fosse a forma como a Igreja deveria ser: em que cardeais, bispos, religiosos e leigos se escutam como iguais em “um lugar aberto onde todos se sentem em casa e podem participar”.
E então, quase repentinamente, eu me senti triste ao pensar como muitas das nossas dioceses e paróquias estão distantes dessa cultura, e como as muitas estruturas não sinodais da Igreja logo se ativariam para resistir a ela.
Na manhã seguinte, em São Pedro – a minha primeira missa papal em mais de um ano devido à Covid –, Francisco abriu oficialmente o Sínodo. Foi algo suavemente alegre, esperançoso, mas sem fanfarra. A leitura do Evangelho era sobre o encontro de Jesus com um homem rico na estrada. Jesus, disse Francisco em sua habitual homilia centrada em três palavras, encontrou-o, ouviu-o e ajudou-o a discernir o que ele devia fazer. O mesmo ocorre neste processo sinodal: precisamos estar presentes em relação aos outros, ouvir com o coração e não julgar.
“Não insonorizemos os nossos corações; não nos blindemos dentro das nossas certezas”, insistiu ele. Jesus nos chama, assim como chamou o jovem rico, “a nos esvaziarmos, a nos libertarmos daquilo que é mundano e também dos nossos fechamentos e dos nossos modelos pastorais repetitivos, a nos interrogar sobre o que Deus quer nos dizer neste tempo”.
No dia anterior, em seu discurso sinodal, Francisco havia mencionado a negligência em relação à Adoração e voltou a mencioná-la de novo, em sua homilia, na qual falou sobre a importância de “dedicar tempo à Adoração”. A repetição me incomodou. Por que trazer essa forma de oração tão cara a ele – ele a pratica todas as noites às 21h, sem falta – em relação ao Sínodo? Então, me dei conta: a adoração é a oração sinodal por excelência, porque é onde despertamos para a nossa “agência”. Quando estamos presentes a Jesus, em comunhão com Ele na Eucaristia, somos conhecidos, reconhecidos e amados. Participamos.
Assistindo às reuniões da comissão durante os dias seguintes, não pude deixar de me impressionar com a fragilidade da infraestrutura do Sínodo em comparação com a escala da sua ambição. Nenhuma organização secular ousaria lançar um empreendimento tão grande com tão poucos recursos e tão pouca preparação. A minúscula equipe de liderança do Sínodo, recentemente fortalecida por um experiente diretor de comunicação, Thierry Bonaventura, é excelente e conta com o apoio de quatro comissões: espiritualidade, teologia, metodologia e comunicação. Mas a maioria dos membros da comissão está se encontrando pessoalmente agora pela primeira vez, e a escala do que precisa ser feito parece absurda.
Na comissão de comunicação, conversamos sobre os desafios, a começar pela terminologia pouco familiar. Como definir um Sínodo quando ele é, ao mesmo tempo, a instituição estabelecida em Roma e o processo que acaba de ser lançado? Como comunicar que se trata de um processo de transformação, uma conversão sinodal cujo fruto é uma mudança de cultura, enquanto, ao mesmo tempo, se comunica que é um processo incondicional, aberto às solicitações do Espírito? Como explicar que, apesar de tudo poder ser discutido, apenas os bispos votam e apenas o papa decide? Como lidar com as falsas expectativas e os medos deslocados?
Trabalhamos duro, elaboramos documentos, trazemos as equipes de filmagem vaticanas para fazer entrevistas simuladas com os membros da comissão de metodologia. Mas parece incrível estar fazendo tudo isso dias antes de a fase diocesana começar.
Mesmo assim, no almoço do dia seguinte, quando uma antiga autoridade vaticana me disse que é tolice o papa lançar um processo tão ambicioso durante aquilo que ele chamou de “capítulo em declínio” do pontificado, eu discordei vigorosamente. Francisco vem construindo isso ao longo dos últimos oito anos, ou seja, ensinando-nos a sinodalidade em discursos e documentos, e nas reuniões de bispos, para lidar com grandes temas como a família, os jovens e a Amazônia.
Ele decidiu reunir o povo de Deus agora, para convidá-lo ao processo sinodal como sujeitos de discernimento, porque vislumbrou um kairós, um tempo oportuno. Depois de mais de um ano de temeroso autoisolamento e de igrejas fechadas, qual momento seria melhor para reunir os fiéis para ouvir o Espírito? De um ponto de vista mundano, parece impossível, mas quem está no comando aqui? Como foi quando São João XXIII anunciou o Concílio Vaticano II?
No dia seguinte, em uma reunião conjunta das comissões na Cúria jesuíta, as tensões vieram à tona. Os teólogos – há alguns grandes nomes aqui – temem que não tenham recebido um mandato claro para desenvolver uma teologia da sinodalidade. Alguns membros da espiritualidade estão preocupados com o fato de essas reuniões serem insuficientemente sinodais. Como desenvolver um habitus sinodal com reuniões tão longas e cheias de conteúdo? Essas frustrações fazem parte da experiência sinodal, que é sempre, como diz um jesuíta, uma “corrida contra o tempo”.
Em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que naquela que será a tarefa extremamente complexa de destilar o que foi dito e experimentado. Os latino-americanos, que fazem isso desde 1968, dizem que, embora seja importante ser criativo na síntese, a tarefa principal é ser fiel ao que se recebe, buscar as “pérolas preciosas” na linguagem do povo. O que é necessário, diz um teólogo, é o Homo sinodalis: pessoas de coração sinodal, que facilitem em vez de imporem, que conseguem perceber a emergência da “coisa nova” a que o Espírito está chamando.
Não há nenhuma ilusão aqui. Um slide de PowerPoint lista os obstáculos: a falta de interesse e de consciência, a escassez de informações e de habilidades, os desafios de infraestrutura das dioceses das nações pobres, a enorme tarefa de reunir de alguma forma os grupos paroquiais e, ao mesmo tempo, de ir ao encontro dos feridos, dos afastados e dos descontentes.
No entanto, não se trata de uma reunião ansiosa. As intervenções são bem-humoradas e confiantes. Há alegria aqui, uma fé calma de que tudo ficará bem, de que uma Igreja sinodal – tensa, confusa, humilde, mas um lugar aberto para todos – é o que Deus pede ao catolicismo no terceiro milênio.
Há a confiança também de que o povo de Deus, ao longo do tempo, ouvirá o chamado a se reunir em assembleia. E, quando o fizer, ele falará com franqueza e ouvirá com atenção, e, de alguma forma, apesar de todas as resistências e obstáculos, não surgirá outra Igreja, mas sim uma Igreja diferente. Adsumus Sancte Spiritus.
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Por dentro do Sínodo: falar com franqueza, ouvir com atenção. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU