Boaventura de Sousa Santos. Coleção Sociologia Crítica do Direito

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24 Setembro 2021

 

"Nesse texto, busquei recuperar o tema do acesso à justiça como um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já antecipando ali essa necessidade de alargamento que depois eu procuraria trabalhar em outras situações. Se, ao limite, pudermos alargar esse conceito, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo, seguindo Boaventura de Sousa Santos, como um procedimento de tradução", escreve José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), em artigo publicado por Estado de Direito, 22-09-2021.

 

Eis o artigo.

 

Boaventura de Sousa Santos. Coleção Sociologia Crítica do Direito. Volume 1. O Direito dos Oprimidos. Volume 2. A Justiça Popular em Cabo Verde. Volume 3. As Bifurcações da Ordem Jurídica. Revolução, Cidade, Campo e Indignação. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2ª edição, 2021.

 

 

Com esses três títulos, em segunda edição no Brasil (haviam sido editados antes pela Cortez Editora), a Editora Lumen Juris, inaugura uma nova Coleção Sociologia Crítica do Direito, para publicar no Brasil, obras jurídicas de Boaventura de Sousa Santos. As obras de caráter epistemológico e as do campo político, lembrando as três vertentes tradicionais do autor, tal como ele as enunciou em A Crítica da Razão Indolente – ciência, política e direito – continuarão no catálogo de outras editoras (Boitempo, Autêntica).

 

Uma série de lançamentos estão sendo organizados para apresentar a Coleção. Agora no dia 24, no Canal do Conde, com parcerias, o próprio Boaventura para falar sobre o projeto e o que ele representa para a reflexão sociológico-crítica em relação ao conhecimento, a política e o direito.

 

Estarei com Alessandra Queiroga (Transforma MF e Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia; Vercilene Francisco Dias (CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, advogada do povo Kalunga, doutoranda em direito na UnB e Carol Proner, professora da UFRJ e do Grupo Prerrogativas; programa dirigido e moderado pelo escritor e jornalista Gustavo Conde).

 

Para esse lançamento a Lumen Juris abriu uma promoção especial oferecendo um desconto de 60% na aquisição das obras, com a aplicação na compra do código BOAVENTURA_60, válido entre os dias 23 e 27 de setembro.

 

Volto às obras que estão sendo lançadas. Em novembro, dia 30, haverá um segundo lançamento no projeto Saindo do Prelo, do Instituto dos Advogados Brasileiros, a tradicional Casa de Montezuma fundado em 1843 (Sobre o IAB confira a tese de doutorado de Eneá de Stutz e Almeida, consoror e ex-Secretária Executiva, também minha colega na UnB: “Ecos da Casa de Montezuma: o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Pensamento Jurídico Nacional”, Florianópolis, Conceito Editorial, 2007). Às vésperas do evento voltarei ao tema para indicar as sua configuração e participantes.

 

Aqui, para os objetivos dessa Coluna Lido para Você, me aproprio das palavras do Autor para sintetizar cada um dos livros.

 

Sobre O Direito dos Oprimidos, nada menos que a paradigmática tese Law Against Law. The Law of the Oppressed, cuja publicação ainda na forma de um ensaio síntese, com título aqui traduzido A lei do oprimido: a construção e a reprodução da legalidade em Pasárgada, publicada na Revista Law and Society, Vol. 12, No. 1 (outono, 1977), pp. 5-126 (122 páginas), causou uma revolução nos estudos sociológico-jurídicos, podendo-se dizer ter refundado a Sociologia Jurídica, especialmente no Brasil.

 

Lembro vivamente, em sala de aula em 1978, Roberto Lyra Filho trazendo para conhecimento de seus alunos no mestrado em direito da UnB o exemplar que lhe havia sido enviado por Joaquim Falcão, com essa consideração de que o texto, sobretudo no que concerne à atualização expandida do conceito de pluralismo jurídico, depois por ele inscrito com o fundamento teórico para calçar a base sociológica do projeto que já acalentava de O Direito Achado na Rua, que ele pressentia conter esse potencial epistemológico fundacional.

 

Na Coleção, em relação ao livro, diz Boaventura: “Este é o primeiro volume da coleção Sociologia Crítica do Direito. Trata-se de um conjunto de livros em que publicarei os estudos que realizei nas últimas quatro décadas sobre temas de sociologia do direito. Neste livro publico o meu primeiro estudo, realizado no início da década de 1970, a minha dissertação de doutoramento, defendida em 1973 na Universidade de Yale (EUA). Consistiu numa análise sociológica do direito informal e da resolução de litígios na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro. Em tempos de ditadura militar, dei-lhe o nome fictício de Pasárgada, retirado de um poema de Manuel Bandeira, para não identificar a comunidade que generosamente me tinha acolhido. O objetivo de proteger o anonimato dos meus interlocutores, muitos deles, mais do que interlocutores, amigos privou-me também de ‘devolver’ o meu estudo à favela como era regra da sociologia radical dos anos de 1970. Faz parte deste estudo uma longa conversa que tive com um dos mais próximos, o Irineu Guimarães, um grande ativista comunitário e comunista convicto. Esta conversa teve lugar em 2012, 42 anos depois do trabalho de campo. Irineu tinha então 82 anos e morreria poucos meses depois sem podermos realizar o nosso novo projeto, uma apresentação pública em que seria homenageado. Também por isso, esse livro é-lhe dedicado”.

 

O segundo livro da Coleção trata da Justiça Popular em Cabo Verde. Motivado pela leitura do livro Por uma Revolução Democrática da Justiça de Boaventura de Sousa Santos, eu havia publicado em coluna que mantive na antiga Revista do SindjusDFSindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Revista do Sindjus-DF, Dezembro de 2007 nº 45), um texto de resenha dessa obra com o título Uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça (p. 4).

 

Nesse texto, busquei recuperar o tema do acesso à justiça como um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já antecipando ali essa necessidade de alargamento que depois eu procuraria trabalhar em outras situações. Se, ao limite, pudermos alargar esse conceito, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo, seguindo Boaventura de Sousa Santos, como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos, o que faz do acesso à justiça algo mais abrangente que acesso ao judiciário.

 

Esta mediação leva, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos, a criar condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência, mas que buscam criar sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização de justiça, mediadas por um direito que se pode dizer achado na rua.

 

Fora desse contexto emancipatório o que resta é a configuração do acesso à justiça como objeto delimitado, mesmo considerados os dois níveis de acesso: igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema jurídico. Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais promissora de reforma da justiça está na procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.

 

Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias.

 

Considerado o nível mais restrito, o sistema judicial se consolida justamente em seu fechamento democrático, na medida em que o seu conceito de acesso mina possibilidades de participação popular na interpretação de direitos; esgota a porosidade entre ordenamentos jurídicos hegemônicos e contra-hegemônicos; constituídos e instituídos pela prática dos movimentos sociais. Exemplo disso têm sido os obstáculos procedimentais que o litígio decorrente das demandas de reparação após os danos causados pela Empresa Vale em Brumadinho (rio Paraopeba) revelando a exclusão dos atingidos em seu protagonismo enquanto o Judiciário permanece acessível aos interesses empresariais e governamentais. Por isso o engajamento irredutível da assessoria técnica dos movimentos dos atingidos para fazer valer o princípio de que não há justiça sem participação social, conforme bem demonstra a elaboração da Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais elaborada pela Aedas (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social) com os movimentos e coletivos dos atingidos pelo desastre de Brumadinho.

 

 

O nível restrito do acesso à justiça, portanto, se reafirma no sistema judicial. O nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da democracia.

 

Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se tem mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.

 

Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos (conferir a esse respeito e também sobre o livro Para uma Revolução Democrática da Justiça, a minha Coluna Lido para Você publicada no Jornal Estado de Direito.

 

No volume 2 da Coleção Sociologia Crítica do Direito, como parte do acervo formado no Centro de Estudos Sociais de Coimbra, que cataloga experimentos populares de administração da justiça, no sentido em que atuam “como escola política, cultural e social do povo” (vol. 2, p. 5), realizando aquelas condições indicadas acima sobre participação popular. Neste segundo volume, diz Boaventura: “publico a pesquisa sociológica que realizei em 1983-84 sobre os tribunais de zona ou tribunais populares de Cabo Verde, por solicitação do governo do jovem país independente presidido pelo Comandante Pedro Pires. A solicitação foi especificamente feita pelo Ministro da Justiça de então, Dr. David Hopffer de Almada. No contexto pós-independência, a implantação de tribunais populares ou de zona em Cabo Verde surgiu como prioritária. As conotações negativas por vezes atribuídas ao termo justiça popular levaram a que se preferisse um nome mais neutro, tribunais de zona. A sua rápida extensão deveu-se, não só à facilidade na sua implementação, uma vez que dispensava as necessidades técnicas materiais e humanas da justiça formal, mas também a uma aposta forte no potencial desses órgãos para promover a pacificação social e atuar como escola política, cultural e social do povo”.

 

Não é ocasional constatar a incidência desses estudos e os pressupostos que eles organizam quando se assiste contemporaneamente, nas mobilizações que discutem os sistema de justiça e de democracia, tal qual se faz agora no Brasil, para situações que atribuem relevo a mobilizações populares para reivindicar estratégias sociais de realização de justiça. Conclui orientação a uma dissertação de mestrado, em vias de ser publicada (também pela Lumen), para a qual, a pedido do Autor, redigi o Prefácio: “Dualidade de Poder: O Tribunal Popular e a Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela”, de Wellington Pantaleão da Silva.

 

Penso que o livro de Wellington Pantaleão da Silva, deve ser saudado por se concertar a essas mobilizações. Ao estudar o Tribunal Popular do Jardim Ângela, realizado no ano de 2002, compreendeu que ele se consistiu numa estratégia do Fórum em Defesa da Vida, movimento social articulado nos oitenta bairros que compõem o Jardim Ângela, para exigir a construção de um hospital e o reforço do policiamento. Em que pese o Poder Judiciário ter sido uma alternativa real para a demanda do Fórum, a incerteza sobre os resultados possíveis e a letargia que tomaria conta do processo fizeram com que houvesse a percepção de que a interação social junto aos poderes públicos poderia ser mais efetiva.

 

Seu estudo, trazido para o livro, constata que “violações de direitos são passíveis de serem mitigadas, por meio da emergência de novos sujeitos coletivos que consensuam pelas suas identificações com o problema, a fim de construir uma perspectiva plural do direito positivado pelo Estado burguês, ao realizar processos de poder dual, ainda que em contexto não revolucionário”.

 

Com base em autores que estudaram a estratégia popular de julgamento moral ou político de temas que mobilizam o social e requerem protagonismo comunitário, o livro põe em relevo uma iniciativa popular que tem sido objeto de muita atenção dos estudiosos. Eu próprio tratei do tema sob a mesma perspectiva que o Autor, articulando teoricamente as implicações de dois conceitos que são pressupostos ao fenômeno estudado: o de dualidade de poderes e o de pluralismo jurídico.

 

No Prefácio, eu aludo a seguimento de iniciativas, muitas incentivadas pela organização e instalação, em curso, de um Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, instigado pela urgência e a motivação diz a sua Carta de Convocação, das limitações do Sistema em face do escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas. Toda a estrutura econômica e social se alimenta e está alicerçada nas desigualdades inerentes ao sistema capitalista, que leva ao extremo a exploração do trabalho humano, e mantém-se centrada não só no racismo, como na violência contra as mulheres e a comunidade LGBTQI+, na segregação dos desiguais, na violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outras.

 

No seguimento dessas iniciativas, realizou-se há 4 dias, e por instigação das questões candentes que expõem o esgarçamento dos sistemas de justiça, ganha adesão e relevância a instalação de um Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça.

 

Entre as entidades e movimentos sociais que participam da construção do tribunal, estão: Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh, Plataforma dos movimentos sociais pela Reforma do Sistema Político, Terra de Direitos, INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, Cáritas Brasileira, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – Renap/DF, Associação de Juízes para Democracia – AJD, Intervozes, Levante Popular da Juventude, Artigo 19, MAM – Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, Instituto Pro Bono, UnB – Grupo O Direito Achado na Rua, AATR – Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – Cendhec, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, ACT Promoção da Saúde, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Central de Movimentos Populares – CMP.

 

O Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça é uma iniciativa desenvolvida desde 2019 por diferentes movimentos sociais, sociedade civil organizada, entidades e organizações, com o objetivo de popularizar o debate público sobre a complexa relação estabelecida entre o sistema de justiça brasileiro e a sistemática violação aos direitos humanos. Na Universidade de Brasília, assim como em outras universidades públicas, ele assume o desenho de projeto de extensão, engajando estudantes de diferentes cursos de graduação e pós-graduação com a metodologia dos tribunais populares, que historicamente tem sido aplicada por movimentos sociais para denunciar graves violações aos direitos humanos. São objetivos específicos do projeto:

 

  1. Denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Sistema de Justiça brasileiro;
  2. Construir parâmetros sobre o Sistema de Justiça que queremos;
  3. Fomentar a utilização local da metodologia dos tribunais populares;
  4. formar e informar a sociedade sobre o funcionamento do sistema de justiça e o seu impacto nos Direitos Humanos e na democracia.

 

Observe-se o anúncio de sua realização:

Tribunal Popular discute o violações de direitos cometidas pelo Sistema de Justiça

Para abrir as audiências populares do Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça, o *ato realiza na próxima segunda-feira 20 de setembro o Lançamento da denúncia que reúne diversas violações de direitos cometidas pelo Sistema de Justiça*.

A denúncia preliminar reúne duas séries de acusação:

  1. Racismo e Desigualdades de Gênero e Classe no Sistema de Justiça;
  2. Influências Indevidas no Sistema de Justiça;

 

O debate contará com a participação de representante da CONAQ *Givânia Silva*; o professor de direito *Antonio Escrivão Filho*; a representante da Coalizão Negra por Direitos *Sheila de Carvalho*; o advogado popular *Benedito Barbosa*; a pesquisadora *Inara Firmino*; a advogada popular integrante do Tribunal *Érika Lula* e o advogado indigena *Ivo Macuxi*; Acesse aqui a live Lançamento da Denúncia do Tribunal Popular Internacional sobre Sistema de Justiça.

 

Ao fim, o volume 3, da Coleção Sociologia Crítica do Direito: “As Bifurcações da Ordem Jurídica. Revolução, Cidade, Campo e Indignação”. Diz o Autor: “Neste livro analiso, em contextos temporais e espaciais muito distintos, os complexos modos como a ordem jurídica, o direito e os tribunais refletem os processos de transformação social e simultaneamente os influenciam. A análise teórica é ilustrada empiricamente com alguns estudos de caso que mostram os dilemas e as tensões que se instalam no campo jurídico e no campo do ativismo político sempre que o direito é mobilizado por forças sociais com interesses opostos e até contraditórios”.

 

Como quer que seja, a abertura editorial para essa Coleção Sociologia Crítica do Direito, atribuída pela Lumen Juris autoralmente a Boaventura de Sousa Santos, rende ensejo para o fortalecimento desse campo de investigação sem o qual os estudos jurídicos ou se perdem no nefelibatismo de abstrações delirantes ou se enredam numa facticidade que não permite divisar horizontes para uma direção de movimentos e de protagonismos que realizam história.

 

Em co-autoria com Bistra Stefanova Apostolova, escrevi há alguns anos uma resenha de um texto de Eliane JunqueiraA sociologia do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993, para o Suplemento Direito & Justiça, do jornal Correio Braziliense (1995: 2), apropriando depois os eus elementos para o meu “Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas” (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002) salientando que o ponto de partida do trabalho de Eliane Junqueira é epistemológico – “o começo de uma sociologia da sociologia do direito brasileiro” – enquanto preocupação com uma sociologia do conhecimento, no que se designa a “compreensão do lugar social e teórico ocupado pela Sociologia do Direito no Brasil”. Mas há também balanço crítico, enquanto organiza o repertório de tendências da ciência moderna e seus reflexos nas teorias jurídicas e nas experiências de institucionalização que balizam o agir dos operadores nos planos da investigação e da práxis social.

 

Na cartografia dos temas, a análise da formação, no viés do ensino jurídico, e a análise operativa, no viés do acesso à justiça, oferecem material suficiente para a compreensão do processo de “reelaboração teórica dos conceitos de juridicidade e de direito”. Essa cartografia, ao designar linhas de atuação, de pesquisa e de ensino e suas específicas matrizes teóricas, notadamente na formulação crítica, é extremamente valiosa. Em certa medida, ela contribui para a percepção, tal como faz Boaventura de Sousa Santos, de como se produziram condições teóricas e condições sociais para uma transição da visão normativista, substantivista do direito, com unidade de análise centrada na norma, para uma concepção processual, institucional e organizacional, com unidade de análise centrada no conflito.

 

Em uma perspectiva de transição paradigmática, a abordagem de Eliane Junqueira assumia características inéditas em seu peculiar modo de conhecer a realidade sociológica: sinceridade, amor pela disciplina, mas, ao mesmo tempo, grau máximo de objetividade. A permanência de um utopismo engajado, tendente a configurar o protagonismo dos professores de Sociologia Jurídica, abre à disciplina um lado político para fomentar a desconstituição de imagens incompletas e até falsas do fenômeno jurídico e derivadas do dogmatismo de paradigmas tradicionais; mas, simultaneamente, reivindica o desenvolver-se, livremente, como ciência social, apta a elaborar categorias plausíveis do que pode ser considerado jurídico.

 

Por esta razão, é possível perceber neste trabalho de Eliane Junqueira, a projeção atualizada de categorias e conceitos firmes para identificar, nas condições sociais de análise, o estudo dos novos movimentos sociais, dos novos conflitos e dos novos sujeitos de direito e, nas condições teóricas de análise, os temas da reorientação do ensino jurídico e do pluralismo jurídico.

 

Compreende-se, assim, porque Roberto Lyra Filho passa a entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme indica Lyra Filho, “o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito no próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito)” (1985).

 

A rua, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmos o direito). Por isto mesmo, Marshall Berman fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicado para a vida humana, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo” (1987).

 

Mas a rua é, concomitantemente, lugar simbólico a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Roberto Da Matta faz a articulação dialética entre a “casa” e a “rua” (1985) para esclarecer comportamentos culturais. Também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos, aparece o tema da cidadania (veja-se Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os versos: “A praça! A praça é do povo/ Como o céu do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor!… pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu … /”. Do segundo, não são menos expressivos estes versos: “Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de ‘lá fora’./ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…).

 

O Direito Achado na Rua – expressão criada por Roberto Lyra Filho e título que designa, atualmente, uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília inscritos na configuração de um programa de Sociologia Jurídica – quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e, assim, como modelo atualizado de investigação:

 

  1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem;
  2. definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito;
  3. enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas (Sobre O Direito Achado na Rua, confira-se a edição agora em 2021 do 10º volume da Série: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, atualizando a fortuna crítica de 30 anos do projeto.

 

Conquanto carregados de uma crítica altiva a certos impulsos alternativistas, os estudos sociológicos quais os aqui designados permanecem otimistas, ao menos como o “optimismo trágico” definido por Boaventura de Sousa Santos, enquanto “alternativa realista ao pessimismo” para caracterizar a “subjetividade do cientista”, na busca da “criação de canais próprios de interlocução e de instâncias de produção de conhecimento e de legitimação, de consolidação e consagração do direito”.

 

Por isso que, nas palavras do Autor, lançadas no Prefácio Geral da Coleção: “o conjunto mostrará como o meu trabalho foi evoluindo em resultado das opções teóricas que fui tomando em resposta às lutas e às causas sociais em que me fui envolvendo e em diálogo com tantos conhecimentos nascidos na luta com que fui sendo confrontado, fossem eles os conhecimentos de homens e mulheres moradores de favelas e bairros informais em luta pelo direito popular à cidade, camponeses sem terra ou com terra em vias de lhes ser confiscada, povos inteiros a emergir do jugo do colonialismo e em busca de uma independência genuína, povos indígenas em luta pelos seus territórios ancestrais, base da sua dignidade, sindicalistas, ativistas dos direitos humanos, da democracia participativa, da economia solidária, da ecologia etc. Se lêssemos esta coleção de trás para diante, seria talvez possível identificar, no meu percurso de trabalho científico, a sociologia das ausências e das emergências que venho vindo a defender como procedimentos centrais das epistemologias do Sul”.

 

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