30 Julho 2021
"A ideologia do Inimigo não é mais compatível com a conservação da sociedade humana. Na condição de luta de uns contra os outros nem a pandemia pode ser interrompida em suas variantes caprichosas, nem o clima pode ser governado de maneira a preservar a vida na terra, nem a guerra pode ser repudiada em sua inesgotável proliferação; e, neste ponto, a saída da síndrome do Inimigo não é apenas uma questão de ética pública, é uma questão de sobrevivência e nos desafia a passar para outra antropologia. Nunca na história havia surgido essa obrigação", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 28-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Paulo maiora canamus, cantemos coisas mais elevadas. No amargo debate desencadeado na Itália pela contestada reforma da Ministra Cartabia, discute-se sobre procedimentos e tempos do processo penal, enquanto a natureza dramática da justiça penal não é lembrada.
O poder judiciário é "um poder terrível", dizia Montesquieu: Luigi Ferrajoli lembrou isso no recente congresso da Magistratura Democrática propondo um repensamento profundo da jurisdição penal: para que seja conforme aos dois princípios imprescindíveis da independência e da imparcialidade, existem duas reformas a serem feitas. A primeira é retirá-la do condicionamento da carreira, que segundo a proposta radical de Ferrajoli deveria até mesmo ser suprimida, tornando todos os juízes iguais na diversidade das funções, como quer a Constituição. A segunda é libertá-la da ideia do Inimigo.
Hoje prevalece a concepção de justiça penal como luta contra o crime e, de fato, contra seus autores. Pelo contrário, disse Ferrajoli, a jurisdição não conhece - não deve conhecer - inimigos, nem mesmo se terroristas, mafiosos ou corruptos, mas apenas cidadãos.
Para ir às fontes de nossa cultura penal, pode-se citar Cesare Beccaria que chamou de "processo ofensivo" aquele em que "o juiz torna-se inimigo do réu" e "não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiro o crime, e o insidia, e acredita que perderá se não conseguir, e que será injusto com àquela infalibilidade que o homem reivindica em todas as coisas”. Segundo Beccaria, o processo deve consistir, ao contrário, na “indiferente busca da verdade”. Portanto, qualquer atitude partidária ou sectária deve ser excluída, não apenas por parte dos juízes, mas também dos ministérios públicos. É claro que essa concepção do processo, acrescentou Ferrajoli, também exclui a ideia, frequente nos ministérios públicos, de que o julgamento é uma arena em que se vence ou se perde. O Ministério Público não é um advogado e o processo não é um jogo em que o procurador perde se não consegue fazer prevalecer os seus argumentos.
Aqui estamos além da questão da eficiência. Na verdade, rejeitar a ideia do Inimigo significa também excluir o caráter vingativo da justiça penal, que entende a pena como um ressarcimento pelo mal cometido ao infligir um sofrimento ao culpado. De fato, na percepção comum, a justiça não é feita se o réu não sofre; no padecimento, a sociedade encontraria sua recompensa e o ofendido ficaria satisfeito: o sofrimento torna-se assim um fim do ordenamento. Mal por mal: é uma moral no estilo divina comédia, mesmo que Deus não seja assim, a Comédia não deveria se chamar de divina e a Constituição tem uma ideia completamente diferente da pena como reeducação do condenado, mesmo que muitas vezes seja uma ideia ilusória.
Mas isso diz respeito apenas à justiça penal? Muito além desta, o abandono da lógica do Inimigo teria uma dimensão de mudança. Desde o início, a sociedade se conformou com uma luta de uns contra os outros, um antigo fragmento de Heráclito fazia da guerra a origem de todas as coisas, de todos os reis, e na modernidade foi Carl Schmitt quem sustentou que o confronto amigo-inimigo é o critério e a própria substância do político.
A competição selvagem da era da globalização e o precipício da política nas espirais do bipolarismo, da maioria, da luta contra o proporcional, do populismo carismático e a exclusão dos perdedores são seu preço. Os derrotados são descartados, o Papa Francisco a chama de sociedade do descarte, porque os mal sucedidos, os pobres, não são apenas explorados, mas são excluídos, não podem lutar, de fato, não existem: aos náufragos e aos migrantes são negados os portos e a terra de sua salvação, são devolvidos ao mar ou para as torturas dos campos de concentração da Líbia.
O problema, entretanto, é que a ideologia do Inimigo não é mais compatível com a conservação da sociedade humana. Na condição de luta de uns contra os outros nem a pandemia pode ser interrompida em suas variantes caprichosas, nem o clima pode ser governado de maneira a preservar a vida na terra, nem a guerra pode ser repudiada em sua inesgotável proliferação; e, neste ponto, a saída da síndrome do Inimigo não é apenas uma questão de ética pública, é uma questão de sobrevivência e nos desafia a passar para outra antropologia. Nunca na história havia surgido essa obrigação.
Mas este é o tempo para o qual fomos destinados. Cabe a nós perceber isso.
Tal conversão chama em causa a Igreja italiana e o seu próximo Sínodo, cujo caminho finalmente começou e cujo Manifesto reza: "Proclamar o Evangelho em um tempo de renascimento".
“Koinonia”, a revista do Padre Alberto Simoni, o interpreta como o esperado kairós ou o momento de graça, em que o Evangelho é reproposto como vinho novo em odres novos. A verdadeira novidade seria justamente a proclamação do amor aos inimigos. O Evangelho é o único código que o prescreve. Não poderia haver hoje, para a vida das pessoas e para a sociedade como um todo, um carisma maior do que este. Se essa revolução acontecesse, a condição de unidade humana seria estabelecida para salvar a terra, os populismos cairiam, ninguém seria descartado. Seria o dom dado ao mundo pela Igreja do Papa Francisco.
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Abolir o inimigo. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU