"Desconheço uma filosofia brasileira, grega ou egípcia. No pensamento filosófico questões relativas à humanidade, para além de todas as fronteiras culturais, podem ser verificadas na China, em Roma, na Grécia, até mesmo no Brasil. Estamos longe da época, etnocêntrica, na qual a filosofia era dita grega e, depois, alemã, francesa, inglesa, italiana. (..) No meu sentimento, importa consolidar a filosofia no Brasil sem cair na perspectiva, em meu entender equivocada, de uma filosofia nacional". Essa provocação do professor Roberto Romano, que faleceu na última quinta-feira, 22-07-2021, expressa bem qual foi o tom de suas reflexões filosóficas e políticas ao longo das décadas em que participou ativamente do debate público nacional: a preocupação com a res publica, a "coisa pública", que diz respeito a toda a sociedade brasileira em sua heterogeneidade.
Observador da conjuntura nacional, das relações políticas, da crise dos partidos e da democracia, mas também das instituições públicas, Romano concedeu várias entrevistas ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, nas quais deu declarações satíricas, como esta, em 2008: "Em nosso caso, em vez de presidentes, temos imperadores com pés de barro".
Roberto Romano (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Naquela entrevista, Romano lamentava o fato de o Brasil ainda não ter se tornado uma "república democrática" e questionava especificamente o projeto político do PT. Anos mais tarde, em 2012, ele ilustrou a crise em que o país estava imerso por conta das alianças políticas que pouco levam em conta a res publica, ao comentar a célebre foto do então presidente Lula com o deputado federal Paulo Maluf, num encontro que oficializou o apoio do Partido Progressista (PP) à chapa do pré-candidato Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo. Na foto, disse, "temos nos dois elementos o retrato impiedoso da prática realista. É como se o retrato de Dorian Gray tivesse exibição invertida: o horror aparece depois de ficar escondido pela retórica 'ética' do petismo durante anos. Mas as rugas que hoje encobrem o rosto petista não surgiram repentinamente. Elas vêm de longa data. Recordo como se fosse hoje: no dia em que o PT foi inaugurado, na capela do Colégio Sion em São Paulo, ali estive a convite. Ao chegar no vestíbulo da igreja, certo intelectual importante me recebeu com uma recomendação: 'devemos acabar com os principistas dentro do PT'. Não fiquei muito tempo na cerimônia. Afinal, fui e sou principista... O resultado está na foto: venceram os contrários ao 'principismo', ou seja, os alérgicos aos valores éticos, programáticos, socialistas, etc".
Lula e Maluf (Foto: Reprodução)
As reflexões filosóficas de Roberto Romano sobre a democracia, a política, o estado democrático de direito e as instituições nacionais também tinham em comum uma preocupação fundamental com a accountability (prestação de contas). "Ainda não somos uma república democrática. Somos herdeiros melancólicos do absolutismo clássico", porque o Brasil continua sendo um país que realiza "pactos políticos feitos pelas oligarquias, sob o patrocínio do Poder Executivo Federal", afirmou naquela ocasião. A ética na política partidária, mencionou em outra entrevista ao IHU, "opera em favor dos governantes, 'ex parte príncipe', como diriam os humanistas do século XVI e, com eles, Norberto Bobbio. É a ética que nega direitos às 'pessoas comuns', é a ética do 'sabe com quem está falando'? A ética do absolutismo tirânico. Não podemos esquecer que, na tradição ética e jurídica antiga e moderna, tirano 'é quem usa os bens dos governados como se fossem seus'. A lição está em Aristóteles, São Tomás, Jean Bodin e outros mais. No Brasil temos uma ética da tirania porque o que fazem nossos operadores do Estado é julgar de sua propriedade o que é público".
Defensor da abertura dos arquivos da ditadura, com frequência o filósofo insistia na necessidade de que os cidadãos brasileiros conhecessem e refletissem sobre a própria história do país. Como argumentou em entrevista ao IHU, "abrir os arquivos do Estado brasileiro sob o regime ditatorial é exigência democrática. Não existe democracia sem o direito de a sociedade civil conhecer a si mesma e aos que a dirigem ou dirigiram. O golpe de Estado de 1964 ocorreu ainda sob a Guerra Fria, a qual favoreceu as formas autoritárias que exacerbaram o segredo. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorreu na Europa, nos EUA e nos regimes de força que dominaram a América do Sul". E acrescentou: "A democracia efetiva surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. Os postulados democráticos sustentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e devem atenuar o segredo de Estado. Se existem documentos sobre tortura no regime ditatorial, eles não pertencem a grupos, indivíduos ou instituições subordinadas ao Estado. Eles são propriedade do povo soberano, que tem o direito e o dever de adequar sua existência à sua história. No caso, só pode ser olvidado o conhecido. Cabe ao poder estatal a tarefa democrática de sanar tal lapso da vida brasileira".
O professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp também foi um crítico da Constituição brasileira, que chegou a classificar, com seu irônico senso de humor, como um "documento heteróclito". Em entrevista ao IHU, por ocasião dos 25 anos da Carta Magna, ele destacou que ela "não resultou de um movimento que expressasse a soberania popular. No meu entender (muito pessoal) ela resultou de um golpe de Estado dado pelo Congresso Nacional que se autoinstituiu como constituinte, reunindo parlamentares que passaram o período ditatorial servindo ao governo autoritário. Portanto, parlamentares acostumados à servidão, mas que foram escolhidos precipuamente para redigir a Constituição. A Carta, portanto, desde o início tem uma história pouco edificante do ponto de vista republicano e da soberania popular". Ele explicou seu ponto à luz do que aconteceu à época: "Na constituinte havia oligarcas que serviram muito fortemente ao regime militar. Quando há essa reunião, surgem duas tendências distintas em termos doutrinários. A que procurava definir os artigos da Constituição em torno da noção de Estado de Direito e a do Estado Democrático de Direito. São duas formas opostas de pensar. A primeira tende a valorizar a propriedade antes do ser humano. Na segunda, são valorizados os direitos das pessoas humanas antes e acima da propriedade. Ao longo da Constituição há parágrafos que tendem a valorizar a democracia e a soberania popular; e outros que tendem a definir o poder e a decisão, inclusive da Justiça, em favor dos proprietários. Do ponto de vista social e programático, isso faz da Constituição um documento heteróclito, sem unidade doutrinária interna".
Naquela época, em 2013, pouco antes de o Brasil ser tomado pela tormenta da Operação Lava Jato, ele advertia para as consequências da Constituição no Judiciário. "Quando a Constituição é uma colcha de retalhos de emendas, cuja origem política vem de um golpe de Estado, cria-se para o Judiciário um verdadeiro palimpsesto, um puzzle. Caso mantenha-se a Constituição como está, a cada dia haverá mais dificuldade para que o Judiciário exerça seu múnus de maneira objetiva e inquestionável. Tanto é verdade, que existe no plano eleitoral uma intromissão da Justiça em atribuições que não são dela".
Três anos mais tarde, ao analisar o fenômeno da judicialização da política em função da Operação Lava Jato, mas não só, Romano, que era um crítico da operação tal como estava sendo conduzida, fez o seguinte comentário, quando esteve presencialmente no IHU, participando do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, onde ministrou a palestra a “Reinvenção do espaço público e político: o individualismo atual e a possibilidade de uma democracia da igualdade e dos afetos”: "O primeiro erro é que eles estão fazendo política como se não estivessem. Eles não têm algo fundamental ensinado por Aristóteles, Platão e Maquiavel: a prudência. Prisões espetaculares e entrevistas idem a cada vez, assim como o esquecimento tático ou estratégico de outros partidos, metidos até o nariz na corrupção, são erros políticos. Se assumem o protagonismo político, deveriam ter prudência. Os políticos oligárquicos têm um sentimento de poder que vem desde 1500 e conquistaram legitimidade pelos favores que prestam às cidades. Se a Lava Jato continua assim, daqui a pouco eles não terão o instrumento que lhes é essencial, a lei. Foi o que aconteceu com a Operação Mãos Limpas. A fonte de força vem justamente do trato dos políticos com a cidadania. Errado ou não, demagógica ou não, eles têm semelhante força, que os juízes não têm. A Lava Jato tem popularidade, o que difere do poder pleno". Ao longo dos desdobramentos da Operação, Roberto Romano foi um opositor ferrenho da prisão do ex-presidente Lula, por conta das "arbitrariedades" do sistema jurídico.
Outra declaração precisa do professor Roberto Romano foi dada quando comparou o presidente Bolsonaro aos sofistas, ao analisar a confusa miscelânea em torno do debate sobre a liberdade em meio à crise sanitária. Na entrevista concedida ao IHU em julho do ano passado, foi categórico: "Bolsonaro usa a sofística combatida por Platão. O instrumento eficaz para instaurar a tirania ditatorial encontra-se no seu uso perverso da liberdade de expressão: massas bolsonaristas saem às ruas para pregar o fim da liberdade e são aplaudidas pelo presidente da República, que deveria preservar o trato vivo e livre. Massas fanáticas desobedecem medidas de proteção popular, atacam médicos com ameaças de morte e o próprio presidente diz que elas têm direito à liberdade de expressão. Multidões truculentas espalham o medo e os que deveriam defender a democracia apenas publicam 'notas de repúdio' sem medidas de autoridade".
Bolsonaro em manifestações pelo fechamento do SFT no ano passado (Foto: Reprodução)
Diante das polêmicas e esdrúxulas frases do presidente, como quando declarou "Eu sou, realmente, a Constituição", Romano o associou aos totalitários do século XX, que repetiam a retórica de “quem manda é o povo”. "Numa cópia ruim de Carl Schmitt, diz-se que o presidente representa o povo de modo imediato, miraculoso. Num delírio ainda pior, Bolsonaro afiança a unidade de sua existência com a Constituição. Ele é a Constituição. E como sempre na passagem para a tirania se acumula no governo muito ódio contra o saber científico. Ocorre, sob Trump e Bolsonaro, a perseguição de pesquisadores científicos, encômios a charlatães religiosos ou leigos que praticam a misologia (neologismo criado por Platão). Nunca se odiou tanto a ciência e os cientistas como no Brasil de Bolsonaro. É o engodo vivido na teatrocracia (θεατροκρατία) exposto nas Leis", salientou. E disparou: "Bolsonaro encarna o que Elias Canetti definiu: o poderoso como sobrevivente. Pouco importa a ele se milhares ou milhões morram pelo vírus. Urge a sua sobrevivência e confirmação na chefia do país na próxima eleição". Pessimista, conjecturou sobre o futuro: O Brasil dos próximos anos será de “um país mais pobre para os pobres, com maior acúmulo de riquezas para os mais ricos. Um país ainda mais repressivo e injusto, um país cuja selvageria fará historiadores recordarem o quanto o Brasil tomba hoje na pior barbárie, ignorância, superstição”.
Quando o Brasil registrou o número de 300 mil mortos por Covid-19, em março deste ano, Romano concedeu outra entrevista ao IHU, avaliando a conjuntura e a condução da crise sanitária pelo governo federal. "Não existiu nem existe 'gestão' das crises vividas no Brasil. Gestão supõe um aparato administrativo capaz de prever, enfrentar, reunir forças mecânicas, técnicas, humanas e também espirituais em batalhas pela sobrevivência coletiva. Por motivos históricos o Brasil possui máquinas de governança emperradas pela excessiva centralização decisória no plano federal em detrimento dos Estados e municípios", pontuo.
Outro tema que permeou as reflexões filosóficas de Roberto Romano é o papel das universidades na sociedade brasileira. Na contramão de muitas análises que enaltecem a ampliação das universidades no país nas últimas décadas, ele era um crítico do modo como o acesso universitário foi implementado no país. "Nos governos Luiz Inácio e Dilma, como continuidade do governo FHC, surgem programas de financiamento de estudos em escolas privadas de ensino superior. Embora tenham ajudado muitos estudantes a obter uma qualificação superior, tais programas ajudaram de fato a solidificar financeiramente os proprietários das 'universidades' privadas. Empresas como a Kroton passaram a oferecer ações na bolsa, comprar escolas, enfim, definiram um padrão capitalista e rentista para o suposto ensino superior. No mesmo passo as universidades públicas iniciam programas de cotas para estudantes advindos do ensino médio oficial, pobres, negros, indígenas. Quando tais programas estavam apresentando seus primeiros frutos houve o golpe contra o governo Dilma. A partir daí se inicia o desmonte das universidades públicas, os ataques às políticas de cotas, o desmantelamento grave do incentivo à pesquisa. O Brain Drain se acelera e sua rapidez permite prever um esvaziamento dos laboratórios brasileiros. Como se pode notar, o horizonte para as universidades oficiais brasileiras não é róseo. Pelo contrário, a ameaça da sua privatização é a cada instante mais patente. Um clima de caça às bruxas se instalou com o governo Bolsonaro e pode-se dizer que a política governamental de hoje se enquadra perfeitamente no termo cunhado por Platão, milênios atrás: temos um poder misólogo, inimigo da pesquisa e do ensino públicos. As escolas 'superiores' de ensino privado, nacionais ou estrangeiras, vão bem, obrigado!".
Em entrevista ao IHU, refletindo sobre o futuro das instituições de ensino, ele fez o seguinte prognóstico: “As universidades confessionais e comunitárias serão conduzidas, como as públicas, ao plano do mercado e dos serviços pagos. Elas serão produtoras de dividendos para acionistas e não geradoras de ideias, como era o caso das PUCs, Metodistas, presbiterianas no passado recente. Engana-se quem, nas universidades comunitárias, imagina que elas poderão resistir ao mercado onipotente”.
Autor de "Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico" (São Paulo: Kairós, 1979), "Conservadorismo romântico" (2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1997) e "Moral e ciência. A monstruosidade no século XVIII" (São Paulo: Senac Ed., 2002), Romano, que estudou com os dominicanos, também acompanhava os debates relativos à atuação da Igreja na sociedade. Em entrevista concedida ao Jornal Folha de S. Paulo em março de 2013, logo após a realização do conclave que elegeu Jorge Mario Bergoglio como novo papa, após a renúncia de Bento XVI, Romano comentou sobre a origem do pontífice. "Os jesuítas foram produzidos como verdadeiros guerreiros em luta pela conquista da modernidade para a Igreja Católica e para combater o protestantismo. Eles prepararam-se com todas as armas da cultura que era sua adversária. Não se pode pertencer a essa ordem sem um trabalho intelectual. É uma ordem que cultiva a ciência e a técnica. O caso do papa Francisco ilustra bem esse fato: primeiro, ele se formou em química, então, sentindo essa adequação com a ordem jesuítica, foi ser um deles. Muitos são médicos, físicos, matemáticos, teólogos, filósofos. Dedicam-se a um diálogo com o mundo científico, tecnológico e político". E acrescentou: "Você tem há séculos jesuítas nos Estados Unidos, na Alemanha, em Israel, no Brasil etc. Eles detêm um saber antropológico e científico muito aprofundado e ramificado internacionalmente. São uma ordem com capacidade intelectual e disciplina imensas. 'Perinde ac cadaver' ou obedecer como um cadáver. Fazem tudo para a maior glória da Igreja. Hoje, no Brasil, os jesuítas têm centros de excelência, como a Unisinos, no Rio Grande do Sul. Os temas mais relevantes do debate ético e religioso mundial aparecem lá: homossexualidade, aborto, vida, eutanásia".
Para o IHU, ele apresentou, também no ano passado, suas primeiras impressões sobre a nova encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. Segundo ele, o documento expressa a preocupação do Papa Francisco com o bem da coletividade e, em certo sentido, contrária à postura geopolítica das últimas décadas do século passado. “Ele tudo faz e tudo diz para que os interesses imperiais não se sobreponham ao Bem do gênero humano. Assim, Francisco retoma com brilho profético o papel desempenhado por João XXIII e Paulo VI no século XX, bem longe da postura assumida por João Paulo II, o alinhamento a uma geopolítica que favoreceu apenas a parte mais poderosa e rica do planeta”.
Em memória da vida e da obra de Roberto Romano, reproduzimos abaixo a lista das entrevistas que concedeu, sempre com grande gentileza e generosidade, ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Publicamos também dois artigos dele nos Cadernos IHU ideias, assim como outros artigos e entrevistas reproduzidos na página eletrônica do IHU.