A Igreja tem a tarefa de doar, de “mediar”, de tornar visível a bênção de Deus: que é dirigida a todos, não somente aos católicos ou aos cristãos. Não são os funcionários da Igreja que abençoam. Deus não impôs condições de acesso e não excluiu ninguém. A bênção é o seu próprio amor criador e redentor.
A opinião é de Lilia Sebastiani, teóloga italiana e autora, em português, de “Maria e Isabel: ícone da solidariedade” (Paulinas, 1998) e “Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida” (Vozes, 1995).
O artigo foi publicado na revista Rocca, n. 8, 5-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 15 de março, a Congregação para a Doutrina da Fé tornou pública a resposta a um dubium sobre a possibilidade de abençoar uniões entre pessoas do mesmo sexo. Resposta no estilo da Congregação: “Negativamente”.
Nada de novo, um texto por si só secundário e bastante negligenciável, que talvez será importante como oportunidade histórica para se refletir, por causa da rica quantidade de comentários que suscitou.
A ocasião: “Em alguns âmbitos eclesiais, estão se difundindo projetos e propostas de bênçãos para uniões de pessoas do mesmo sexo. Não raro, tais projetos são motivados por uma sincera vontade de acolher e acompanhar as pessoas homossexuais, às quais se propõem caminhos de crescimento na fé”, através da escuta da palavra de Deus, da oração, da participação nas ações litúrgicas eclesiais e do exercício da caridade, rejeitando toda discriminação injusta.
A abertura parece serena e pacífica. Mas se ouve um grito não ignorável quando se entra no campo propriamente disciplinar, lembrando que a bênção faz parte dos chamados “sacramentais”, é uma ação litúrgica da Igreja: “Em consequência (...), quando se invoca a bênção sobre algumas relações humanas, é necessário – além da reta intenção daqueles que dela participam – que aquilo que é abençoado seja objetiva e positivamente ordenado a receber e a exprimir a graça, em função dos desígnios de Deus”.
O motivo invocado para excluir os casais homossexuais da bênção é de natureza geral: “... Não é lícito conceder uma bênção a relações, ou mesmo a parcerias estáveis, que implicam uma prática sexual fora do matrimônio (ou seja, fora da união indissolúvel de um homem e uma mulher, aberta por si à transmissão da vida)”.
Reconhece-se que, em tais relações, podem se encontrar elementos positivos que, no entanto, não são capazes de torná-las honestas e um destinatário legítimo da bênção eclesial, “pois tais elementos se encontram a serviço de uma união não ordenada ao desígnio do Criador”.
O principal temor subjacente à exclusão da bênção para os casais do mesmo sexo, porém, parece ser outro: que a própria bênção possa ser celebrada de modo festivo demais e solene demais, a ponto de relembrar a bênção nupcial, configurando-se como um quase-matrimônio.
“A resposta ao dubium proposto não exclui que sejam dadas bênçãos a indivíduos com inclinação homossexual” – não, portanto, ao casal –, “que manifestem a vontade de viver na fidelidade aos desígnios revelados de Deus, assim como propostos pelo ensinamento eclesial”. Isso significa a exclusão permanente da dimensão afetiva e erótica da união de amor.
O responsum lembra que o próprio Deus não deixa de abençoar cada um dos seus filhos e filhas peregrinos neste mundo, porque, para Ele, “somos mais importantes que todos os pecados que podemos cometer. Mas não abençoa nem pode abençoar o pecado: abençoa o ser humano pecador, para que reconheça que é parte de seu desígnio de amor e se deixe transformar por Ele”. Assim, é reiterado várias vezes, sem nuances, que os homossexuais “em exercício” são, por isso mesmo, pecadores.
Com uma ênfase bastante anômala nesse tipo de documentos, o cardeal prefeito, Ladaria, esclarece, perto do fim, que o Papa Francisco “foi informado e deu seu assentimento à publicação do mencionado responsum”.
Justamente por se tratar de um esclarecimento insólito nesse gênero literário, talvez ele deva ser considerado mais significativo do que parece.
O Papa Francisco sempre excluiu o sacramento do matrimônio para os casais homossexuais, mas, ao mesmo tempo, tem sido aberto ao reconhecimento das suas uniões civis, desde que era arcebispo de Buenos Aires.
A sua posição veio à tona em várias ocasiões; com especial clareza quando (era o dia 21 de outubro de 2020) o documentário “Francesco”, do diretor Evgenij Afineevskij, foi apresentado no Festival de Roma. Depois, vozes eclesiais afirmaram que, no evento, houve forçações, que o documentário reúne, com critérios duvidosos, várias coisas ditas pelo papa no passado e em ocasiões diferentes, que não refletem plenamente as suas convicções etc.; mas as palavras do papa, em espanhol, são claras e simples, e não permitem equívocos:
“As pessoas homossexuais têm direito de estar em uma família, são filhas de Deus, têm direito a uma família. Ninguém pode ser mandado embora de uma família, nem se pode tornar a sua vida impossível por causa disso. O que temos que fazer é criar uma lei de convivência civil, eles têm direito de estar cobertos legalmente. Eu defendi isso”.
Entre os momentos mais tocantes do filme, o telefonema do papa a um casal de homossexuais, com três filhos pequenos sob a sua responsabilidade, em resposta a uma carta na qual manifestavam as graves dificuldades encontradas por eles para levar os filhos à paróquia: o conselho do Papa Francisco foi o de continuarem levando as crianças, sem dar tanto peso a eventuais julgamentos e preconceitos alheios.
Trecho do documentário "Francesco".
(Reprodução: PFX/YouTube)
No Festival de Roma, um momento particularmente intenso foi o testemunho de Juan Carlos Cruz, um ativista contra os abusos sexuais e ele próprio vítima de violências por causa da sua homossexualidade. “Quando encontrei o Papa Francisco, ele me disse o quanto lamentava por aquilo que havia acontecido. ‘Juan, foi Deus quem te fez assim, e ele te ama mesmo assim. Deus te ama, e o papa também te ama’.”
As palavras do papa, então, suscitaram uma onda de reações, em alguns casos positivas e comovidas (alguns falaram de palavras que mudavam o curso da história, o que provavelmente é excessivo), em outros casos, hostis e escandalizadas.
O bispo Bruno Forte, que apoiou o Papa Francisco no Sínodo sobre a família de 2014-2015, explicou com a habitual clareza que o papa distingue entre a “proteção dos direitos” que deve ser garantida a cada pessoa e a “família desejada por Deus”, que só pode ser a união entre um homem e uma mulher. Esta, sem dúvida, deve ser reconhecida como a posição autêntica do Papa Francisco, expressada também na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia (n. 251).
Não esqueçamos que a mesma exortação recomendava evitar atitudes “mesquinhas” (n . 304), uma pretensão de objetividade que privaria a Igreja de toda faculdade de discernimento e todo dever de atenção: “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano”.
Em 2015, quando ferviam as discussões sobre a Amoris laetitia e as suas pelo menos potenciais aberturas sobre as situações familiares atípicas, o bispo de St. Gallen, na Suíça, Markus Büchel, questionado sobre os casais formados por pessoas do mesmo sexo – indubitavelmente, a categoria em relação à qual o Sínodo sobre a família havia se mostrado mais reticente –, respondeu: “Alegremo-nos com cada relação em que os parceiros se acolham como iguais, preciosos e amados filhos de Deus, respeitem a dignidade do outro e promovam o bem das pessoas!”, acrescentando ainda: “Eu acredito que hoje é tarefa da Igreja trilhar com as pessoas um caminho em que elas possam integrar a sua sexualidade como dom de Deus nas suas vidas e nas suas relações”.
O que mais desagrada no responsum, embora não contenha nada de novo, é que a Congregação para a Doutrina da Fé assume um papel de controladora/guardiã para decidir quem pode receber a bênção de Deus e sob quais condições.
Tanto nas bênçãos antigamente chamadas de “descendentes” (aquelas que nos são mais familiares: nas quais se pedem dons especiais de graça e de amor divino sobre pessoas e situações humanas), quanto naquelas chamadas de “ascendentes”, em que se dá graças a Deus pelos dons do seu amor, o sujeito é sempre Deus, mesmo que o polo humano seja fundamental.
A Igreja tem a tarefa de doar, de “mediar”, de tornar visível a bênção de Deus: que é dirigida a todos, não somente aos católicos ou aos cristãos. Não são os funcionários da Igreja que abençoam. Deus não impôs condições de acesso e não excluiu ninguém. A bênção é o seu próprio amor criador e redentor.
Pode-se entender que, no decorrer da história, foram impostas condições para se aproximar dos sacramentos; mas não para as bênçãos. Abençoar ou se recusar a abençoar não são instrumentos de juízo moral.
Na realidade, o responsum não se dirige a um dubium, mas, em primeiro lugar, ao Sínodo da Igreja na Alemanha, com o claro objetivo de levantar barreiras como defesa prévia em relação a aberturas excessivas: alguns bispos alemães haviam expressado a sua disponibilidade de abençoar casais de pessoas do mesmo sexo e certamente não deixarão de fazer isso.
O presidente dos bispos alemães, Georg Bätzing, entrevistado por Gian Guido Vecchi no Corriere della Sera do dia 16 de março, admitiu que “não estava contente”, porque o texto do ex-Santo Ofício “dá a impressão de que o debate teológico, atualmente em discussão em várias partes da Igreja universal, também aqui na Alemanha, deve terminar o mais rapidamente possível”. Mas “as investigações teológicas sobre a prática pastoral hoje não podem ser eliminadas simplesmente com uma palavra de poder”.
O Papa Francisco tem uma linha misericordiosa e inclusiva, mas é relutante em mudar a doutrina (a qual, na realidade, neste assim como em tantos outros âmbitos considerados “intangíveis”, já mudou várias vezes), o que leva necessariamente a contradições e a equívocos.
Não é mais possível recomendar uma pastoral misericordiosa a uma “Igreja em saída”, sem tocar em uma doutrina intransigente e rejeitadora a partir da sua própria formulação. O último escrito oficial sobre uma pastoral ad hoc para as pessoas homossexuais continua sendo a carta de 1986 Homosexualitatis problema, aos bispos católicos, assinada pelo arcebispo Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, na qual a Igreja, embora se comprometendo com o acompanhamento dos homossexuais, se dissociava da reivindicação de qualquer direito da parte deles.
Hoje, talvez, esse documento não seria mais escrito naqueles termos. Mas a substância da doutrina não mudou. “A Igreja dá respostas a problemas que a sociedade já superou. E as respostas que dá, de fato, não valem mais.” Assim se expressava o biblista Alberto Maggi, em uma entrevista ao La Repubblica do dia 16 de março.
Não parece possível frear o debate em curso, nem interromper com medidas de autoridade aqueles pastores, padres e bispos, que há muito tempo abençoam os casais de homossexuais. É significativo que o Avvenire, o jornal da Conferência Episcopal Italiana (que normalmente não se distingue pela audácia das suas posições), tenha efetivamente noticiado o texto do responsum, sem contraposições nem críticas, mas apresentando também, na mesma página, uma série de opiniões teológicas diferenciadas, abertas e possibilistas.
Talvez nem todos conheçam a esplêndida Carta Aberta escrita ao Papa Francisco pelos pais e mães da Rede 3VolteGenitori (Rede Nacional de Pais Cristãos com Filhos e Filhas LGBT), publicada no dia 17 de março de 2021 no site Gionata.org [na íntegra em italiano aqui]:
“Caríssimo Papa Francisco, não podemos calar, como pais católicos com filhos e filhas LGBT, o sofrimento que nos provocou a leitura do responsum (...).
“Sim, para nós, bênção significa ‘dizer bem’ e nós só podemos dizer bem sobre estes filhos e filhas ricos de sensibilidade e de atenção, capazes às vezes de testemunhar uma fé e uma esperança contra toda esperança. Para nós, abençoar significa também reconhecer o bem que há neles e na sua capacidade de amar e de se dedicar, de ser fiéis, de construir um projeto de vida.
“Quando isso ocorre, nós os vemos serenos, em harmonia com eles mesmos e com a sociedade que os rodeia. Vemo-los florescendo e realizando na sua relação de amor aquela que é a vocação primitiva e fundante de cada um: ser amado como se é, amar-se, para poder amar de volta.
“Essa é a realidade que os nossos olhos puderam ver em tantos casais e da qual somos testemunhas. Essa é a felicidade do nossos corações de pais e mães!
“Enquanto isso, perturba-nos e dói profundamente que a pedra do ‘pecado’ seja novamente jogada contra eles, porque vivem em plenitude e verdade uma condição existencial que certamente não escolheram (...).
“E, se a Mãe Igreja não tem o ‘poder’ de abençoar esse amor, nós, pais, que somos chamados a ouvir e a apoiar os nossos filhos, podemos abençoá-los hoje e sempre, e encontraremos um ‘sacramental’ para poder fazer isso. E, fazendo isso, pediremos que os nossos filhos e filhas vivam o seu amor de cabeça erguida e de maneira visível, para que esse amor também possa ser sinal e testemunho do amor de Deus pelo seu povo.
“É isso que gostaríamos de dizer ao senhor e aos seus coirmãos bispos, por amor à verdade dos nossos corações e da dignidade dos nossos filhos e filhas, falando justamente de coração a coração.
“Com afeto paterno e materno, os pais e as mães da Rede 3VolteGenitori, pais afortunados.”