02 Março 2021
Sábado, 2 de janeiro de 2021. Uma família japonesa desembarca no Aeroporto Internacional de Tóquio, um dos mais movimentados do mundo, encerrando uma viagem de mais de 20 horas. Um homem na casa dos 40 anos, a mulher dez anos mais nova e o casal de filhos adolescentes retornavam de uma viagem de turismo a Manaus, no Amazonas. Os sintomas não demoraram a aparecer. O homem sentia dificuldade para respirar, enquanto a companheira tinha fortes dores de cabeça e a garganta estava inflamada. O adolescente apresentou febre e a irmã ficou assintomática. Os viajantes ficaram em quarentena, enquanto as autoridades médicas japonesas investigavam o caso. Bastaram oito dias para que os pesquisadores revelassem ao mundo a descoberta de mais uma variante do coronavírus.
A reportagem é de Leanderson Lima, publicada por Amazônia Real, 25-02-2021.
Como a mutação identificada primeiramente em pessoas que passaram por Manaus virou desculpa para a falta de ação de governantes
(Imagem da variante P1 do SARS-CoV-2 em arte, sobre foto de Fernando Zhiminaicela | Pixabay | Jornal USP)
O noticiário varreu o mundo e chegou ao Brasil, onde as autoridades desconheciam a existência dessa mutação do novo coronavírus, logo apelidada de “variante de Manaus” ou “cepa amazônica”. A preocupação era procedente. No Reino Unido, a variante identificada como P.1.1.7 se mostrava mais transmissível e fez com que o premiê britânico, Boris Johnson, decretasse um impopular lockdown durante as festas de fim de ano. Na África do Sul, uma variante batizada de B.1.351 também foi revelada já em meio à vacinação mundial. Será que os imunizantes seriam eficazes contra as variantes, foi o principal temor. Até hoje, não há uma resposta precisa.
Após o alerta japonês, pesquisadores da Fiocruz Amazônia cruzaram os dados do sequenciamento do coronavírus detectado nos turistas que estiveram em Manaus com amostras sequenciadas entre pacientes brasileiros coletadas de novembro do ano passado, que tinham acabado de serem concluídas. Ainda não havia sinal da presença da variante, possivelmente pela pequena quantidade de amostras sequenciadas. Em 12 de janeiro, a Fiocruz emitiu uma nota técnica confirmando a identificação da origem da nova variante da linhagem Sars-CoV-2 B.1.1.28 no Amazonas.
Segundo a nota, as pesquisas apontaram ainda que a mutação detectada na variante B.1.1.28 era um fenômeno recente. Entre as análises sequenciadas em dezembro de 2020, a nova variante já estava presente em 51% das amostras. A alta porcentagem para uma mutação viral que acabara de surgir permitia criar a hipótese de que ela já circulava antes, embora as autoridades brasileiras desconhecessem por completo esse fato. Em janeiro, os 51% dos casos detectados nas amostras saltaram para 91%.
“A partir do momento em que a variante surge, o que nós vimos? Um aumento muito grande na frequência dela entre os casos que foram sequenciados. É claro que os sequenciados não refletem todos (os casos), porque a gente só consegue fazer em parte da população”, explica o virologista e pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), Felipe Naveca.
Em 12 de janeiro, Manaus enfrenta caos no atendimento de doentes em Manaus (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a variante brasileira como uma das três mais importantes em circulação pelo planeta, ao lado do Reino Unido e África do Sul. Tais mutações causam mais preocupação porque deixam o vírus mais forte ou mais transmissível.
Mas, em particular, a surgida no Brasil mostrava uma capacidade ainda maior de transmissão. Ao contrário da imprensa, de autoridades e da própria população, a OMS tomou o cuidado de batizar com o código P.1 a variante brasileira.
“Não existe nenhuma evidência que mostre de forma irrefutável que essa variante surgiu no Amazonas ou em Manaus. Temos indícios de que provavelmente ela começa a circular em Manaus no final de novembro de 2020, provavelmente por influência daquela agitação populacional que tivemos no dia 15 de novembro, com o primeiro turno das eleições para prefeito”, aponta o epidemiologista da Fiocruz Amazônia, Jesem Orellana. O segundo turno das eleições municipais ocorreu em 29 de novembro. Naquele dia, mais de 1 milhão de pessoas foi às ruas da capital amazonense.
Com a P.1 sendo identificada primeiro no Japão, teria sido possível alguma medida para conter a disseminação da nova variante? Para Felipe Naveca, que garante que a “P.1 só é detectada em janeiro”, nem a Inglaterra – que tem o maior sistema de vigilância genômica do mundo – teria sido capaz. “É quase impossível conter 100%. A Inglaterra sequencia centenas de vezes mais que o Brasil. Mesmo nesse sistema, quando eles detectaram a variante deles, ela (a P.1.1.7) já estava no país inteiro”, conta. Muito disso se deve ao fato de que algumas pessoas que acabam sendo expostas ao vírus, muitas vezes, não desenvolvem os sintomas da doença.
Tal explicação só confirma o fato de que em Manaus e no Brasil, o sequenciamento genético das amostras é feito residualmente e com poucos recursos, fazendo com que a P.1. só fosse descoberta em um país a 18.531 quilômetros de distância, o Japão. “Estamos cada vez mais convencidos de que essa nova variante é mais infecciosa do que as outras 17 até então catalogadas no estado do Amazonas”, diz Orellana.
A existência da P.1 caiu como uma luva para os governos federal, do Amazonas e de Manaus. Em janeiro, o estado viveu uma crise sem precedentes, com pacientes morrendo asfixiados pela falta de oxigênio, necessário para os casos graves de Covid-19. Embora alertado do problema, o Ministério da Saúde só se mobilizou depois que o caos e as mortes aceleradas já tomavam conta dos hospitais manauaras. Mas o ministro Eduardo Pazuello não demorou para aventar a hipótese de que a variante era a grande responsável pela segunda onda e pelo colapso hospitalar que ele sabia, mas não evitou.
Para Felipe Naveca, a contribuição da variante é evidente, mas ainda é impossível mensurar o tamanho de sua influência. A Fiocruz, Ministério da Saúde e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) tentam agora montar as peças deste enorme quebra-cabeça, que não é fácil de fazer, dada a precariedade das condições brasileiras. “Isso não é tão trivial assim. Tem vários sistemas de informação que infelizmente não conversam entre si. Isso é uma coisa que atrapalha a vigilância como um todo. Tem que ser feito um trabalho manual de ir nos hospitais, ir com as famílias levantar os dados, a clínica de cada paciente”, revela Naveca.
Os pesquisadores ouvidos pela Amazônia Real lembram que com ou sem P.1 as medidas de distanciamento social teriam reduzido de forma significativa os impactos da segunda onda no Amazonas.
O primeiro caso do novo coronavírus no Amazonas foi detectado em 13 de março de 2020. Uma mulher de 39 contraiu o vírus durante uma viagem de turismo a Londres, capital da Inglaterra. A primeira morte por Covid-19 no estado foi registrada em 24 março do ano passado. O pico da primeira onda da pandemia chegou em maio, quando o Estado teve 36.123 casos da doença (ou uma média de 1, 2 mil por dia) e 1.627 óbitos pela doença (média de 54 por dia).
A partir de junho, a curva de casos e mortes começou a cair. Novembro é marcado por uma redução nos números, com 351 óbitos. Em dezembro, os números voltaram a subir com 391 mortes. “A partir desse momento você tem uma disseminação viral que vai aumentando gradativamente ao longo de dezembro, de forma que em janeiro de 2021, (a P.1) se torna predominante e certamente influencia na configuração deste cenário catastrófico”, explica Jesem Orellana.
Janeiro de 2021 foi o pior mês de toda a pandemia no estado amazonense, com 2.832 mortes (ou média de 94 por dia). E a escalada da segunda onda não para. O Amazonas contabilizou 5.285 mortes por Covid-19 em 2020. Só nos meses de janeiro e fevereiro de 2021 foram 5.288 óbitos até a terça-feira (23).
A Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, divulgou, também na terça-feira, um mapeamento das novas variantes no território nacional. Com base em informações repassadas pelas secretarias estaduais, foram registradas, até 20 de fevereiro, 204 casos de novas cepas do vírus SARS-CoV-2 no Brasil.
A variante P.1 é predominante. São 184 casos, divididos em 60 casos no Amazonas, 28 em São Paulo, 15 em Goiás, 12 na Paraíba, 11 no Pará, 11 na Bahia, 9 no Rio Grande do Sul, 7 em Roraima, 6 em Minas Gerais, 5 no Pará, 5 em Sergipe, 4 no Rio de Janeiro, 4 em Santa Catarina, 3 no Ceará, 2 em Alagoas, 1 em Pernambuco e 1 no Piauí. Até o momento foram identificados um total de 20 casos da variante do Reino Unido, sendo 11 casos em São Paulo, 6 na Bahia, 2 em Goiás e 1 no Rio de Janeiro. A variante originária da África do Sul ainda não foi localizada no País.
Governos e municípios brasileiros, munidos de estatísticas de aumento substancial de internações em leitos de UTI, resolveram aumentar as medidas de restrição. O estado de São Paulo adota, a partir de sexta-feira (26), um toque de recolher das 23 às 5 horas. No Rio Grande do Sul, decretos ampliam a suspensão das atividades entre 20 e 5 horas. Há toques de recolher ou restrições mais rígidas em Fortaleza e Paraíba. Em Salvador, as praias foram fechadas para os banhistas. Em todos os casos, a variante P.1 está por trás da tomada de decisões.
Em 8 de fevereiro, as Defensorias Públicas da União e do Estado do Amazonas ingressaram com uma ação determinando que o governo federal compre doses suficientes da vacina contra Covid-19 para imunizar 70% da população de Manaus e outros sete municípios amazonenses.
Manaus nunca decretou o lockdown apesar da orientação dos cientistas (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Em 13 de fevereiro, durante visita a Manaus, o general Eduardo Pazuello garantiu que o governo federal iria enviar vacinas suficientes para acelerar o Plano Nacional de Imunização. A ideia à época, segundo o ministro da Saúde, era alcançar a população a partir de 50 anos. Pazuello deu até data para a entrega do novo lote de vacinas: dia 22 de fevereiro. A população ainda aguarda pela imunização em massa.
No último fim de semana, a prefeitura de Manaus divulgou um comunicado anunciando que “a imunização de novos grupos populacionais está condicionada ao recebimento de vacinas e o município não recebeu do Ministério da Saúde, até o momento, nenhuma remessa de doses destinadas a essa faixa etária”.
Mesmo tendo os dois primeiros meses do ano como os mais duros da pandemia e uma comprovada predominância da variante P.1 em circulação, o governo do Amazonas autorizou a reabertura do comércio. O anúncio do decreto do governador Wilson Lima (PSC), feito na segunda-feira (22), ocorre apesar da falta de vacinas.
Para o doutorando do programa de biologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Lucas Ferrante, a reabertura das atividades no Amazonas pode custar muito caro. “Só existem duas coisas para frear uma terceira onda, que devem ser aplicadas concomitantemente. A primeira é um lockdown massivo em Manaus, que deve abranger 90% da população, mantendo a cidade em isolamento entre 20 a 30 dias. E é necessária uma campanha de vacinação para todos os adultos, o que deve englobar 70% da população”, aponta.
A projeção agora, segundo Ferrante, é que a próxima onda da Covid-19 deva se intensificar nos próximos quatro meses. “Caso nada seja feito, a partir de maio, Manaus estará convivendo diariamente com uma multidão de pelo menos 50 mil pessoas infectadas no meio de sua população”, afirma o pesquisador.
Esse cenário projeta uma terceira onda da pandemia e fará com que Manaus se torne o epicentro mundial da Covid-19. Em todo o mundo, onde ocorre uma vacinação mais acelerada, as curvas de contaminação e mortes estão em rota descendente há mais de seis semanas. “Nós podemos ter com essa maior circulação viral, novas mutações podendo fazer emergir uma nova variante resistente às vacinas e colocando em xeque todos os esforços mundiais para combater a Covid-19”, atesta Ferrante.
O pesquisador publicou um artigo inédito na revista Nature sobre a ocorrência da segunda onda da pandemia no Amazonas, em agosto do ano passado. Diversos cientistas assinaram o artigo, inclusive o norte-americano Philip Martin Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ferrante foi o autor de uma nota técnica enviada ao Ministério Público do Amazonas e para alguns deputados alertando do risco da segunda onda da Covid-19. O documento também foi apresentado à Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM). Assim como ocorre agora, na época não houve lockdown, mas um relaxamento nas medidas de isolamento social. O pesquisador também foi o primeiro a falar sobre uma possível terceira onda da pandemia no estado.
Jesem Orellana tem uma postura mais conservadora sobre o risco de uma pandemia prolongada, mas também não a descarta. “É muito cedo para falar em terceira onda, porque estamos ainda na segunda onda. Nós sequer entramos numa fase de estabilização em níveis baixos da incidência de Covid-19”, pontua. Para o cientista, são necessários pelo menos mais 40 dias para que se possa fazer uma projeção mais precisa sobre os riscos de uma terceira onda que, segundo Orellana, pode ocorrer ainda durante o período da vacinação.
No Amazonas, 312.339 casos do novo coronavírus foram registrados em quase um ano de pandemia e 10.728 mortes, conformo estatística divulgada nesta quinta-feira, 25 de fevereiro, pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS).
A vacinação em massa é a espera para o fim do caos no Amazonas (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
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O que já se sabe sobre a variante P.1 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU