14 Dezembro 2020
Na Bíblia, chama a atenção que, quando se dirige ao ser humano, Deus o faz com uma interrogação: do Gênesis (“Onde estás?”) ao Evangelho (a pergunta de Cristo aos apóstolos: “E vocês, quem dizem que eu sou?”). Uma das questões mais abissais das Escrituras é o versículo de Lucas: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar a fé sobre a terra?”.
Essa pergunta exemplifica o ensaio de Alec Ryrie, intitulado “Il senso di non credere. Una storia emotiva del dubbio” [O sentido de não crer. Uma história emotiva da dúvida] (Ed. Utet), que tenta justamente dar razão de uma história do não crer, que não é um simples reconhecimento do ateísmo, mas uma reflexão sobre a fronteira tênue entre fé e negação, entre lamento e blasfêmia, entre obediência e dúvida.
A entrevista é de Demetrio Paolin, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 13-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Alec Ryrie é um pastor anglicano e historiador das religiões: ele não escreve um ensaio com teses, mas tenta precisamente descobrir como fé e incredulidade surgem do mesmo sentimento. O procedimento de Ryrie é interrogativo, nunca julgador, mas sempre pronto para acolher as razões do outro, porque “as estruturas morais das nossas culturas sempre foram e sempre serão mutáveis”. O caderno La Lettura interpelou-o às vésperas deste Natal tão anômalo e complexo.
O subtítulo do seu livro diz: “Uma história emotiva da dúvida”. Durante a leitura, tentamos imaginar o que significavam os termos “emotivo” e “emotividade”, qual era o seu sentido profundo, assimilando-os ao perturbador, a algo que, embora familiar, nos assusta. É isso que sentimos ao pensar em Deus?
Para os cristãos, Deus é transcendência e imanência, como afirma T. S. Elliot: “Mais distante das estrelas, mais próximo do olho”. Na minha distinção entre o modo de pensar intelectual e o “emotivo” de pensar a dúvida, eu identifico uma tensão semelhante. As nossas mentes olham para Deus como algo de distante a ser examinado desapaixonadamente, para depois aceitá-lo ou abandoná-lo. Porém, nós não somos apenas meras criaturas racionais: conhecemos o mundo ao nosso redor também de outras maneiras. Então, sim, aquilo que chamo de história “emotiva” é a história desse nosso modo oculto de conhecer.
Há uma frase de G. K. Chesterton, o inventor do Pe. Brown, padre e investigador protagonista de mais de 50 contos de detetive, que vem à mente. “Materialistas e loucos nunca têm dúvidas”. Parece que você afirma que uma coisa é negar a existência de Deus, outra coisa é não acreditar nele.
Certamente. É uma ideia aceita por muitos ateus e por alguns crentes que dúvida e fé são opostos. Na realidade, dúvida e fé caminham juntas. William Perkins, no século XVI, escrevia: “Quem nunca duvidou, nunca acreditou”. Portanto, é importante entender o que queremos dizer com a palavra “crer”. Por exemplo, você afirma que crê em Deus, ou talvez você acha que crê, mas será mesmo assim? E, igualmente, se você não crê, em que não crê? É claro, talvez você não ache que um velho zangado habite os céus, mas talvez você acredite na verdade, na bondade ou na beleza. Em ambos os casos, crer ou não crer muitas vezes estão muito mais próximos do que queremos admitir.
Um tema subjacente de “O sentido de não crer” é a relação do ser humano com o mal. O problema da existência divina está sempre ligado a uma teodiceia: não existe uma teologia que não tente buscar uma resposta à pergunta “unde malum?”, “de onde vem o mal?”. Na última parte do seu livro, você fala sobre a abolição de Deus e a relaciona com uma nova reflexão sobre o ser humano e sobre o conceito de humanismo, quase sugerindo que a verdadeira questão não é tanto sobre Deus, mas sobre o mal feito e ou sofrido pelo ser humano.
Uma das coisas que mais me surpreenderam durante o estudo preparatório deste livro foi a marginalidade da teodiceia e do problema do mal na Idade Média e no início da Idade Moderna. Os cristãos daquela época estavam conscientes do problema, obviamente, mas aqueles que cultivavam a dúvida sobre a sua fé raciocinavam em termos de ética. Assim, por exemplo, eu acho que o fracasso ético do cristianismo na Segunda Guerra Mundial levou à atual onda de secularização. Por isso, eu me pergunto: se o cristianismo não pode sustentar a nossa ética, para que serve?
Para muitos, a ciência parece ter se tornado o fundamento do real: a ciência explica os fenômenos, se atualiza, evolui e nos torna – para voltar à primeira pergunta – menos desorientados. Tem-se a impressão, porém, de que substituir um simulacro por outro não modifica a nossa experiência do mundo como mistura de “eros e morte”, como defendia o poeta Wystan Hugh Auden.
Muitas vezes, afirma-se que religião e ciência estão em competição. Às vezes estão, mas com menos frequência do que parece. A pergunta é: por que a ciência é considerada depositária da verdade? Por que cremos que ela está em oposição à religião? Thomas Traherne, no século XVII, compôs um poema em que via a descoberta da esfericidade da Terra como a prova da glória e da existência de Deus, enquanto hoje parece que a cosmologia é a prova de que Deus não existe. O fato de o universo ser “assim como é” não prova nem uma coisa nem outra. É por isso que eu conto essa história como uma história de ansiedade e de raiva, uma tensão não diferente da de Auden.
Como mudou – se é que mudou – a sua fé depois de compor essa exploração do não crer?
Eu experimentei como é tênue a relação entre fé e incredulidade e como é importante para os crentes – e acho que também para os não crentes – explorar essa fronteira e fazer uma experiência de alteridade. Este projeto me fez entender como a incredulidade, assim como a fé, pertence a um processo histórico. A minha fé não mudou, mas a paisagem em que ela se encontra agora é mais rica do que antes. Agora, acho que entendo melhor por que creio e por que, às vezes, não.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Não crer é outra forma de crer. Entrevista com Alec Ryrie - Instituto Humanitas Unisinos - IHU