"Traduzir a tradição significa não se obstinar a argumentos frágeis e recuperar os argumentos mais fortes. Se a mulher pode 'falar em público' e sem pedir permissão, ela também pode exercer o ministério. A correção e a remoção de uma proibição é o modo de permanecer na tradição, naquela tradição viva e saudável, não naquela parada e doente", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 06-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tudo começou com o livro “Il ministero ordinato” [O ministério ordenado] (Ed. Queriniana, 2002), de E. Castellucci, o bravo teólogo e arcebispo de Modena, que tenho utilizado nestes meses no curso sobre “ordem e ministérios” na faculdade teológica Marianum, em Roma.
Ao apresentar a “sacerdotalização” do ministério eclesial, ele faz de Tertuliano um dos autores decisivos dessa passagem tão importante. Em particular, é extremamente importante o texto do “De Baptismo”, no qual o autor formula, ao mesmo tempo, a propósito do ministro do batismo, uma dupla afirmação: ministro e “sumo sacerdote” é o bispo, mas também podem batizar presbíteros, diáconos e, excepcionalmente, também leigos, mas não as mulheres.
Mais de mil anos depois, São Tomás de Aquino, na “Summa Theologiae”, reformula a perspectiva, modificando tanto a competência episcopal quanto o modo de temperar a exclusão das mulheres.
Outros 700 anos depois, João XXIII modifica ainda mais o “critério-chave” com o qual Tomás superara Tertuliano.
Vejamos analiticamente as três passagens, que podem nos ensinar o que é a tradição ministerial, que serviço a teologia pode prestar a ela, e como as mulheres podem ser valorizadas hoje no serviço eclesial.
Eis o texto do “De Baptismo”, cap. 17:
“Superest ad concludendam materiolam de observatione quoque dandi et accipiendi baptismi commonefacere. Dandi quidem summum habet ius summus sacerdos, si qui est episcopus: dehinc presbyteri et diaconi, non tamen sine episcopi auctoritate, propter ecclesiae honorem quo salvo salva pax est.[2] alioquin etiam laicis ius est: ‘quod enim ex aequo accipitur ex aequodari potest; nisi episcopi iam aut presbyteri aut diaconi vocabuntur discentes domini: id est, ut sermo non debet abscondi ab ullo, proinde et baptismus segue dei census ab omnibus exerceri potest’. sed quanto magis laicis disciplina verecundiae et modestiae incumbit cum ea [quae] maioribus competat, ne sibi adsumant [dicatum] episcopi officium. episcopates aemulatio schismatum mater est. omnia licere dixit sanctissimus apostolus sed non omnia expedire. [3] sufficit scilicet in necessitatibus [ut] utaris sicubi aut loci aut temporis aut personae condicio compellit: tunc enim constantia succurrentis excipitur cum urguetur circumstantia periclitantis, quoniam reus erit perditi hominis si supersederit praestare quod libere potuit. [4] petulantia autem mulieris quae usurpavit docere utique non etiam tinguendi ius sibi rapiet, nisi si quae nova bestia venerit similis pristinae, ut quemadmodum illa baptismum auferebat ita aliqua per se [eum] conferat. [5] quod si quae Acta Pauli, quae perperam scripta sunt, exemplum Theclae ad licentiam mulierum docendi tinguendique defendant, sciant in Asia presbyterum qui eam scripturam construxit, quasi titulo Pauli de suo cumulans, convictum atque confessum id se amore Pauli fecisse loco decessisse. quam enim fidei proximum videtur ut is docendi et tinguendi daret feminae potestatem qui ne discere quidem constanter mulieri permisit? Taceant, inquit, et domi viros suos consulant.”
Esse texto de Tertuliano é relevante por dois motivos: não só porque, pela primeira vez, ele aplica em latim a terminologia do “sumo sacerdote” ao bispo, reservando-lhe a plenitude da competência sobre o batismo, mas também porque exclui completamente qualquer possibilidade de que o batismo possa ser administrado por uma mulher.
A lista dos “ministros” é fechada à mulher e inclui, em ordem, bispo, presbítero, diácono e leigos. Qualquer possibilidade de atribuir uma “docendi et tinguendi feminae potestatem” seria uma verdadeira traição a São Paulo, que é assumido aqui como autoridade suprema e incontornável.
Mais de 1.000 anos depois, São Tomás, abordando o tema “Se uma mulher pode batizar” naquela pequena joia que se encontra em S.Th. III, 67,4, retorna ao texto de Tertuliano e elabora uma releitura diferente da tradição ministerial do batismo. Examinemo-la em detalhes:
a) No “videtur quod”, Tomás apresenta as três posições “negativas” a respeito da possibilidade do batismo por parte de uma mulher. A primeira posição é a do Conselho de Cartago (398), que retoma a posição de Tertuliano. A segunda é fruto de um raciocínio: o batismo cabe a quem exerce a autoridade, como o sacerdote no cuidado das almas, e não à mulher. As duas primeiras posições estão ligadas a expressões tiradas de Paulo. A terceira se fundamenta na exegese de Santo Agostinho do Evangelho de Nicodemos: a água do “renascimento” tem a função de “útero feminino”, e, assim, o ministro deve necessariamente ter identidade masculina.
b) Diante dessas posições negativas, no “sed contra”, Tomás anexa apenas uma posição de autoridade do Papa Urbano, que estabelece a possibilidade de batismo por parte de uma mulher, “necessitate instante”, ou seja, em caso de necessidade.
c) O corpus do artigo é, como sempre, o mais elaborado. E procede a partir de duas afirmações-chave: aquele que batiza “principaliter” é Cristo (de acordo com Jo 1); e, em Cristo, não há mais homem nem mulher (segundo Cl 3). Ele deduz daí que, “se um homem leigo pode batizar, então também uma mulher”. Mas, depois, acrescenta, de acordo com 1Cor 11, a mulher não deve batizar se houver homem; nem um leigo, se houver um clérigo; nem um clérigo, se houver um sacerdote. Mas o sacerdote pode batizar mesmo que um bispo esteja presente, pois isso pertence à tarefa do sacerdote. É evidente, por isso, que, embora mantendo como critério a gradualidade reafirmada na segunda parte do corpus, na primeira parte Tomás libera o ministério da sua forma rígida. A referência a Tertuliano é explícita também na “lista das competências”.
d) Nas “refutações” das três posições contrárias, entretanto, Tomás acrescenta duas outras perspectivas. Nos dois primeiros casos, de fato, ele desloca a razão da exclusão, introduzindo uma distinção entre “forma pública” e “forma privada” do ensino e do batismo. Em outras palavras, as razões da proibição subsistem, mas dizem respeito à forma solene e pública do sacramento. No caso de uma “necessidade imediata”, a proibição não tem mais razão de ser. A terceira argumentação, entretanto, distingue entre “geração natural” e “geração espiritual”. Aqui, Tomás paga uma dívida à antropologia do tempo: ele sabe – com a ciência do seu tempo – que, na geração, o homem é princípio ativo, enquanto a mulher é mera passividade. Apesar dessa leitura unilateral, no plano espiritual, afirma ele, nem o homem nem a mulher agem “propria virtute”, mas “instrumentaliter per virtutem Christi”. Por isso, o batismo por parte de uma mulher seria eficaz mesmo fora do caso de necessidade, embora envolvendo uma dimensão de pecado para ela e para os colaboradores.
Como fica claro, Tomás opera uma releitura tanto da competência episcopal quanto da exclusão feminina. Utiliza argumentos de autoridade, hermenêuticas da escrita e argumentações lógicas, com passagens de abertura muito delicadas. A referência cristológica opera uma certa relativização da proibição clássica. Mas é evidente, no entanto, que essa reflexão assume, como dados quase indiscutíveis, dois níveis de conhecimento “óbvios”, que permanecem como que no pano de fundo, mas com um peso de autoridade muito grande:
- a compreensão fisiológica do masculino/feminino;
- a compreensão sociológica do “papel privado” da mulher.
Poderíamos dizer que, apesar da cristologia, a antropologia (de homem/mulher), a fisiologia (de masculino/feminino) e a sociologia (de público/privado) colaboram para manter uma drástica “diferença de autoridade”. Somente o mundo tardo-moderno saberá superar esses limites.
Muitos séculos depois de São Tomás, o Papa João XXIII escreveu, na sua última encíclica, Pacem in terris, em 1963, uma famosa passagem, relativa ao segundo dos três “sinais dos tempos”:
“Em segundo lugar, vem um fato por todos conhecido, isto é, o ingresso da mulher na vida pública: mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou um instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social.”
E, um pouco mais adiante, recapitulando os três “sinais dos tempos”, acrescenta:
“Em nosso tempo, estão superadas seculares opiniões que admitiam classes inferiores de homens e classes superiores, derivadas de situação econômico-social, sexo ou posição política.”
Esse desenho de João XXIII atravessa todo o Concílio Vaticano II, alimenta o período pós-conciliar e chega até a Evangelii gaudium, exatamente 50 anos depois do Concílio. Em tudo isso, porém, não é central a necessária “reivindicação de direitos por parte de novos sujeitos”, mas sim a riqueza de uma experiência eclesial maior. Deus está no centro de tudo isso: a possibilidade de conceber Deus de uma forma mais rica e mais alta, precisamente graças a essa integração de dominados, de marginalizados e de oprimidos. Na história, a Igreja encontra novos recursos do Evangelho.
A superação tanto de uma fisiologia simplista e distorcida, quanto de uma sociologia preconceituosa e unilateral levanta hoje, em geral, à ministerialidade eclesial uma tarefa de reavaliação e de reconhecimento totalmente urgente. A teologia elaborou as suas próprias categorias. Fez isso muitas vezes.
Assim, às categorias originais de Tertuliano, Tomás sobrepôs uma nova consciência das distinções, recuperando tanto um “primado de Cristo” com respeito à diferença antropológica e fisiológica entre masculino e feminino, quanto uma diferença entre público e privado, para recuperar uma subjetividade de outra forma excluída. O que o mundo dos últimos 200 anos descobriu, ou seja, “o ingresso da mulher na vida pública”, supera em raiz um dos dois principais argumentos da solução de Tomás, enquanto a fisiologia, a biologia e a antropologia moderna corrigiram as leituras unilaterais da geração e da sexualidade.
Traduzir a tradição significa não se obstinar a argumentos frágeis e recuperar os argumentos mais fortes. Se a mulher pode “falar em público” e sem pedir permissão, ela também pode exercer o ministério. A correção e a remoção de uma proibição é o modo de permanecer na tradição, naquela tradição viva e saudável, não naquela parada e doente.
O trabalho de mediação entre “complexos de inferioridade” e “complexos de superioridade” - para usar a terminologia de João XXIII – precisa de uma argumentação teológica de qualidade, que saiba permanecer fiel àquela audácia e àquela clarividência com que o pensamento religioso se moveu ao longo dos 2.000 anos de tradição cristã. Somente assim honraremos a memória de Tertuliano, de Tomás e do Papa João XXIII.