Árvores centenárias não têm como fugir do incêndio

Queimada e seca no pantanal colocam em risco a vida dos animais | Foto: Lula Marques - Fotos Públicas

22 Outubro 2020

"As crises que temos vivenciado como humanidade e como brasileiros (ecológica, social, sanitária e democrática) podem ser uma oportunidade de mudanças radicais, pois o Papa Francisco está nos alertando desde que chegou que essas crises estão interconectadas", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

 

Eis o artigo. 

 

Conselhos de uma árvore
Fique em pé e orgulhoso de si
Lembre-se de suas raízes
Beba bastante água
Valorize sua beleza natural
Aprecie sempre a vista
(Manoel de Barros, o poeta pantaneiro).

 

Os incêndios que atingem com cada vez mais intensidade os biomas brasileiros, notadamente a floresta Amazônica, o Cerrado e agora o Pantanal é uma realidade que grita aos céus. Os Chiquitanos falam que já passamos pelo dilúvio da água, do vento (tsunamis) e agora o dilúvio do fogo que é um esforço da natureza para acabar com a ganância do ser humano. Milhares de animais foram mortos visivelmente alguns feridos na queimada criminosa do Pantanal desse ano, possivelmente milhões desses animais silvestres foram mortos nas queimadas e não vimos. Estive na Baía dos Guató no domingo e segunda-feira para a festa de Nossa Senhora Aparecida, e ali as súplicas todas são por chuva para apagar o fogo que ainda continua a consumir o que restou de troncos de árvores antigas. A chuva faz falta por lá de forma mais dramática que em Cuiabá. Por isso, aqui quero falar também das árvores como faz a Sandra Guató, pajé que chora por causa de sua árvore mãe, a conselheira que pediu para ela ficar no Pantanal quando ela quis mudar para a cidade. Essa história vale a pena ser contada, pois faz dois anos que ela me chamou para contar o sonho que tivera:

 

Eu estava na cidade tinha vindo tratar de saúde e estava triste com a demora do processo de demarcação da nossa Terra, dos conflitos e ameaças de fazendeiros, e conflitos internos da própria comunidade. Eu pensei ir para aldeia e pegar tudo que eu conseguisse dos meus pertence e trazer para cidade e não voltar mais para aldeia. Estava cansada de lutar e sem resultado satisfatório, nesse mesmo dia eu deitei para dormir e tive um sonho. No meu sonho eu conversava com uma árvore frondosa, porém já um pouco danificada, doente... quase morrendo. Mas ainda estava dando frutos e a sua sombra podia abrigar muita gente, os pássaros e os animais da floresta. [...] Enquanto uma xamã do meu povo eu estava renegando o meu dom e os meus ancestrais! Com o meu dom eu ainda podia ajudar muita gente na minha comunidade e, se eu viesse embora, estava renegando esse dom. Ao pensar tudo isso, sentei e chorei por algum tempo, depois olhei para o céu e agradeci a Deus e aos meus ancestrais e aos espíritos da Floresta por não me deixar desistir de lutar. É que os meus ancestrais estavam me cobrando o trabalho com a minha comunidade. A árvore representava a minha cruz, o meu trajeto de vida que eu tinha que cumprir, aquele ciclo, e estava tentando abandonar. E no meu sonho eu pude perceber isso quando cheguei debaixo da árvore e toquei no seu tronco envelhecido e doente. [...] Para nós mulheres Guató a natureza, a mãe terra, é muito importante e temos que lutar e cuidar dela como se cuida de um filho. Por isso somos as guardiãs das florestas e dos rios e tudo o que neles existe. Lutamos contra o desmatamento e a pesca predatória e a poluição dos nossos rios e seus afluentes. Se cuidarmos bem deles sobreviveremos por muitos anos, e ainda, da natureza podemos tirar tudo que precisamos para sobreviver e sem destruir.” (Relato de Sandra Guató, pajé devota de Nossa Senhora Aparecida).

 

O sonho e a reflexão que Dona Sandra fez aplicando os ensinamentos da árvore para sua vida é visto como vindo de Deus e dos seus ancestrais para cobrar as responsabilidades espirituais para com o seu povo, especialmente para os cuidados de cura e de orações como pajé. Quando ela fala que sentou para descansar na sombra da árvore, ela mostrou que, mesmo estando doente e envelhecida, ainda estava lhe dando abrigo. O mais impressionante é a sintonia entre Dona Sandra e sua árvore totem, pois encostou-se no seu tronco para contemplar a harmonia da natureza em sua volta, quando elas se juntam para cuidar da vida.

 

Uma homenagem à educadora Maria Soave que fez a música e para Sandra Guató que cuida da saúde de seu povo tendo Nossa Senhora Aparecida como guia
(Imagens enviadas pelo autor do texto)

 

Para esse dia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, cujo imagem feita de terra cota, moldada por mãos dedicadas, não se sabe onde, mas pescada no século XVIII (1717) nas águas do Rio Paraíba, por pessoas simples que viviam e sustentavam suas famílias com pescados como os Guató. Um atentado despedaçou essa imagem, mas novamente mãos artísticas a reconstruíram lembrando o carinho dessa Mãe que cuida de mim e de todos nós. "Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus"; "Se não vos fizerdes como as crianças, não entrareis no Reino dos Céus." Com essas orientações de Jesus, o filho de Maria fui mais uma vez até a Baía dos Guató com presentes diversos para as crianças. Essa história de Sandra que se sente plantada no Pantanal é dramática porque chegou a ficar doente depois dos incêndios que chegaram até a sua casa e, como diz, graças a Deus, com o netinho conseguiu evitar que queimasse. Mas não foi assim com a árvore totem que representava o seu compromisso com a cura das pessoas e do Pantanal que estão doentes porque já tiveram a maior parte de seu território consumido pelo fogo. Muitas das espécies atingidas já eram consideradas vulneráveis ou estavam ameaçadas de extinção antes mesmo dos desastres que estamos vendo se avolumarem, como é o caso da onça pintada e das araras-azuis, cuja casa é o Pantanal. Os animais que sobreviveram enfrentam literalmente a fome, a sede e a falta de abrigo. Perderam até os seus ninhos, lugares onde moravam mais especificamente. “Mas as árvores não têm nem pra onde correr!”, lembrou Dona Sandra.

 

Árvore ao lado da casa de Dona Sandra que foi poupada do fogo e abriga um ninho de tuiuiú e de outros pássaros.

 

No passado os dinossauros, animais de várias espécies, hominídeos também, sofreram extinções por causa das mudanças climáticas a partir de meteoros nos milhões de anos da história do planeta terra. Se considerarmos que as crises climáticas estão se intensificando a cada ano pela irresponsabilidade humana e este é um fator que agrava ainda mais estes processos de extinção, tanto em quantidade quanto em intensidade, agora, nessa sexta extinção em massa,[1] a aniquilação biológica de espécies animais está sendo provocada pela mão humana.

 

As duas margens do rio Cuiabá queimadas (11/10/2020).

 

Prometo não ser mais extenso do que for preciso nos pensamentos, mas principalmente nesse escrito que teria motivos para ser longo, dada a gravidade do caso, por isso vou inserir muitas imagens para ser agradável até às crianças. Os mitos cristãos e não-cristãos falam do cuidado com a criação, não da destruição. O mesmo cuidado que temos que ter com o fogo, para dominá-lo e controlá-lo em benefício do ser humano, das plantas e de todos os animais. Tornam-se urgentes e necessárias ações de proteção da biodiversidade brasileira, pois nossos descendentes têm o direito de conhecer as plantas, animais, grupos étnicos que nós conhecemos.

 

As duas margens do rio Cuiabá queimadas (11/10/2020).

 

Os Bispos do Pantanal assinaram documento de indignação com a situação dos incêndios no Pantanal no dia 18/09, [2] depois confirmado e ampliado para a Amazônia e o Cerrado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no dia 23, para apontar os retrocessos na área socioambiental por causa do desmonte das instâncias de fiscalização e de punição dos crimes ambientais no Brasil: "A CNBB convoca a sociedade brasileira a se unir ainda mais em torno do Pacto pela Vida e pelo Brasil, reforçando a voz dos que desejam um país mais justo e solidário, empenhados na proteção da Casa Comum, partindo dos mais vulneráveis". Com essa ação profética da Igreja, os meios de comunicação começam a noticiar que a temporada de incêndios marcou negativamente o Brasil já em 2019. Agora, apesar da epidemia, o desejo de “passar a boiada” na linguagem figurada, mas real do Ministro do Meio Ambiente que tornou tudo ainda mais grave, e encerramos o mês de setembro de 2020 com os registros de incêndios na Amazônia 42% maiores e, no Pantanal, incêndios sem precedentes, segundo os dados do Inpe [3].

 

As duas margens do rio Cuiabá queimadas (11/10/2020).

 

Passei o fim de semana prolongado com os Guató para dar alento às crianças e festejar Nossa Senhora Aparecida. Esse clima inóspito vivido na baixada cuiabana potencializa centenas de mortes que poderiam ter sido evitadas. A fumaça agrava os problemas de altas temperaturas e impedem a formação de chuvas regulares na região. [4] A fuligem agrava os problemas respiratórios, irritação nos olhos, no nariz e na garganta. A busca por saúde social e os desejos de nos tornar pessoas melhores em condições de gerenciar o mundo por vir, colocou-nos diante desse tempo para aprender com o que estamos vivendo, de brincar e de ser criativos como educadores.

 

Kauê e Gilberto viemos descendo o rio Cuiabá até a casa de Dona Sandra (11/10/2020).

 

Quem buscou-nos no hotel foi o Kauê de Paula da Silva, nascido em 06-05-2008, filho de Helio José da Silva e Raquel Luiza de Paula, ainda adolescente, feliz por poder pilotar, como se estivesse domando um cavalo. Os governos estadual e federal têm se omitido na responsabilidade de combate à pandemia e agora fazem o mesmo em relação aos incêndios como nunca presenciados no Pantanal. O avanço de monoculturas no cerrado, nas partes mais altas que formam as cabeceiras do Pantanal, ou mesmo a formação de pastagens com gramíneas exóticas em regiões pantaneiras leva a secar muitas fontes, córregos e rios, ou seja, diminui drasticamente a água no Pantanal, e aumentam os incêndios descontrolados. Esse modelo perverso de produção do agronegócio sem cuidado com os biomas que foi implantado no Brasil transforma criminosamente os ciclos das águas no Pantanal. A água que deveria descer nos córregos de forma frequente, mesmo em tempos de estiagem se as nascentes e matas ciliares estivessem preservadas, faz com que cada vez mais rios e córregos que eram perenes se tornem temporários. O ecossistema que é vital para as populações humanas que ali vivem como pantaneiros, mas também para os animais e plantas está vulnerável como nunca e a insegurança alimentar das comunidades tradicionais e originárias leva a problemas de saúde séria. Dona Sandra que é pajé da aldeia Aterradinho falou no dia 11 de outubro de 2020 indignada: “Nem tenho mais onde buscar os remédios do mato para tratar de alguém que fica doente! Tudo está queimado.”

 

As duas margens do rio Cuiabá queimadas (11/10/2020).

 

Triste foi descer o rio Cuiabá e ver tudo queimado, nos dois lados do rio. As narrativas são dramáticas, pois o fogo passava de um lado para o outro do rio Cuiabá com muita facilidade. As Terras Indígenas Tereza Cristina e Perigara, da etnia Bóe (Bororo), e a Baía dos Guató, em Mato Grosso, tiveram mais de 80% de sua área devastada pelos incêndios. [5] A Baía dos Guató foi incendiada quase na sua totalidade e Sandra disse que não tem coragem de sair do seu lugar, pois sabe que vai encontrar as árvores centenárias todas acabadas. A árvore de seu sonho, que dialogava com ela também foi queimada e sente-se por isso desolada. No lado da Baía dos Guató pelo rio São Lourenço, onde está a comunidade São Benedito também possui esse nome tradicional Perigara e, no lado do rio Cuiabá, a comunidade tem o nome de Aterradinho. Ou seja, apesar de serem etnias diferentes, partilham em parte do mesmo bioma entre Cerrado e Pantanal e existem alianças de casamentos e trocam vivências e aprendizados culturais ancestrais. Os tempos novos não demorem para a vida se refazer com sua criatividade sem limites!

 

Itamar (Kurã-Bakairi) descascando a mandioca, cunhado de Alessandra preparando a comida.

 

Muitas etnias colocam nos mitos da mandioca sua origem cultural e os efeitos disso são cerca de uma centena de variedades cultivadas na região da baixada cuiabana. Com Amor não falta comida (festa) nem Paz e tudo que é bom se aprende com mais facilidade. Assim embalamos os sonhos de uma vida melhor com chuvas e a Esperança da expansão do verde sobre as cinzas. Existe uma sabedoria dos indígenas que aparece nos seus mitos, é como se a linguagem fosse uma sistematização que precede a realidade que foi ocasião de aprendizado. No mito Bóe (Bororo) de origem do fogo, a onça pintada se oferece para jantar com o macaco. E pergunta: "Mas onde está o fogo?" (Lévi-Strauss, 1986: p. 129). O macaco engana a onça, fazendo-a confundir o fogo com a imagem do sol poente. Algo que vemos aqui o dia todo nesse tempo de grandes queimadas. O sol vermelho está nos céus de manhã até de noite. Enquanto a onça pintada vai em vão ao horizonte ocidental para buscar o fogo, o macaco inventa a técnica de produção do fogo por fricção de duas pedras (Lévi-Strauss, 1986: p. 130). Os Rikbaktsa fazem a fricção de uma madeira mais dura de ceriva na madeira mais mole de algodão. Esse espetáculo de produção de roças e comida utilizando-se com cuidado o fogo eu vi no primeiro dia em que passei a morar na aldeia de Mapadadi Rikbakta, isso em 1989. Depois vi outro cuidado na aldeia da Curva, também Rikbakta: o filho do Hugo, todas as manhãs saia da sua casa onde cuidara do fogo durante a noite para levar um tição de fogo para todas as outras casas da aldeia. Observo que naquele tempo o fósforo era raro.


Aflora com grande evidência na minha memória o senso de observação dos povos indígenas em relação da origem do fogo relacionada com o sol, fonte de calor para o planeta terra, algo muito mais visível do que os vulcões. Mesmo assim até os Rikbaktsa falam do fogo que saia do centro da terra, mas a experiência social mais forte é que o fogo vem do sol, como esse mito contado e escrito desenhado por Jussilene Kujiboe Etuje, no Magistério Intercultural Bóe em Córrego Grande, Terra Indígena Tereza Cristina:

 

Desenho de Jussilene Kujiboe Etuje (07/02/2014).

 

E o sol
Quando foi que aconteceu para o sol subir no céu.
Como a aldeia é redonda, é dividida no meio. Cada metade tem sub-clãs. Uma parte é Xerae e outro lado é Tugarege.
O sol começou a andar no lado Tugarege, falando que estava muito quente, e cada vez mais, estava mais quente. E os Tugarege estavam abanando, jogando água. Mas o sol não parava de falar que estava quente. A casa que ele entrava, ele quebrava os potes e os Kraus ficaram todos nervosos e começaram a abanar o sol com muita rapidez. E o sol dizia: “Abana mais rápido!” E os pés do sol começaram a se levantar do chão. E foi subindo para o céu. E o sol está lá até o dia de hoje.

 

Narrar o mito e, com todo o carinho de mãe e a sabedoria Bóe, Jussilene fala da divisão social do seu povo em metades e clãs e do cuidado do fogo na cozinha para o preparo dos alimentos. Nas reflexões sobre o cru e o cosido[6] , existe a exposição da carne crua ao sol nos mitos jê de origem do fogo (Lévi-Strauss, M7 ao M12), uma técnica muito usada por etnias do nordeste do Brasil e outras onde o clima é mais seco, isso em torno da carne de sol. [7] Contudo, os povos que vivem em regiões mais úmidas, de floresta amazônica, por exemplo, necessitam colocar a carne no moquém. Já vi macacos e peixes serem moqueados com a pele [8], em fogo baixo, para poder conservá-la até os grandes rituais e festas.

 

Tuiuiú, ave que marca a identidade do Pantanal (12/10/2020).

 

Porém aqui nesse texto sobre o cuidado do fogo, os pontos de vista dos seres que são os donos do fogo como a onça, [9] o urubu, o gavião, o sapo, o tuiuiú, por exemplo, mostra formas diferentes de cuidar do fogo dado o fascínio que provoca desde a antiguidade. Porém, são ressaltados pelos mitos os perigos do fogo descontrolado que caracterizam as transparências, as permeabilidades e as contrariedades entre a natureza e as culturas humanas. Os mitos Tupi de origem do fogo (M65) falam dos urubus que encontram o cadáver de um ser mitológico que se finge de morto. Nalguns casos, acende-se uma fogueira a fim de “ressuscitá-lo”. Já no mito boliviano dos Tacana (M42), o morcego que tem medo da luz e do fogo, [10] casa-se com uma humana que ignora sua condição até o dia em que ela vê um morcego sorrindo para ela no escuro e o mata sem nele reconhecer o marido (Lévi-Strauss, 1986: 125; 134).

 

Lévi-Strauss mostra no quadro que o mito Bóe (Bororo) da origem do fogo (M55) é simétrico aos demais mitos jê da origem do fogo (M7 ao M12). A onça possui o fogo natural e o macaco inventa uma técnica para produzir o fogo (cultural). Depois que a sucuri comeu o irmão, outro homem queimou o arco e as flechas dele para apagar a sua memória, mas a irmã chocou ovos de todo tipo até que viesse um que quebrasse o galho e suportasse o colar de contas pretas para ficar no lugar do irmão e descontar o que aconteceu. O gavião-real saiu do ovo de colibri e a irmã decidiu fazer uma festa e convidar a sucuri e o filho com todo tipo de peixes e se vingou. A irmã fez ninho de galhos para o gavião real no alto do jatobá. E as mulheres iam buscar as contas de colar da sucuri que o gavião real cagava (Pereira, 1994: p. 76-83).

 

Os Chiquitanos também falam do gavião como dono do fogo, e os humanos compartilham do mesmo fogo com o gavião, ou seja, quando a carne está sendo moqueada, o gavião carijó vem e pega algum desses animais. Como o gavião come os filhotes dos outros pássaros, esse herói civilizador ocupa a posição de genro na cosmologia Rikbaktsa e tem o auxílio do gavião real que lhe dá sangue da caça para beber, ou seja, no perspectivismo ameríndio o sangue das caças abatidas seria água ou chicha para o gavião. Ao observar que os Chiquitanos consideram as bebidas fermentadas como a chicha, uma marca da vida cultural, o gavião representaria um ensinamento de como cuidar do fogo, algo relevante para o nosso momento vivido.

 

Os urubus numa praia e um Tuiuiú, ave que marca a identidade do Pantanal (12/10/2020)

 

Os pássaros que voam alto, mais próximos do sol como o urubu e o gavião são adequados para ter domínio do fogo. Também o sapo parar os Rikbaktsa que vê uma brasa como o vagalume não hesita em lançar sua língua para apanhá-lo. Também as mulheres possuem o domínio do fogo para essa etnia, pois possuem o cuidado da casa. Quando o fogo não é cuidado, gera o incêndio prejudicial, ou seja, os incêndios generalizados no Pantanal atingiram, as terras indígenas, a maior reserva privada do país (do Sesc Pantanal) e outros vizinhos com suas propriedades rurais no Mato Grosso (MT).

 

Proprietários rurais Nilton José e Valdilene com propriedade rural no Coqueiral (12/10/2020).

 

A Fazenda Cutia do Nilton José e Valdilene fica na divisa da Terra Indígena. O casal falou admirados do modo dos Guató viverem e cuidarem da natureza. Perguntei e soube que a mãe da Valdilene é Guató. Apesar do pai não ser Guató e não ter morado na Aldeia, esse casal está presente nas suas festividades e fazem uma aliança interessante com eles. Sempre quando tem reza, eles vêm, e o filho deles foi batizado aí na reza de Nossa Senhora”, explicou Alessandra. Como eles possuem terras um pouco mais altas e com madeira de lei, disseram que o incêndio como nunca também se alastrou para dentro de sua propriedade e foi grande o prejuízo. Valorizaram as formas tradicionais dos Guató cuidarem do Pantanal, o que consideram uma convivência mais harmoniosa. As queimadas estão se alastrando cada vez mais e progressivamente, por causa da escassez de água e as formas como o capim plantado precisa ser queimado para se alastrar, o que é um perigo e um prejuízo para todo mundo.

 

As duas margens do rio Cuiabá queimadas (11/10/2020).

 

As crises que temos vivenciado como humanidade e como brasileiros (ecológica, social, sanitária e democrática) podem ser uma oportunidade de mudanças radicais, pois o Papa Francisco está nos alertando desde que chegou que essas crises estão interconectadas. Muitos criticavam o Sínodo para a Amazônia, ou pior, gritavam dizendo que a Amazônia é nossa, olhando-a somente como um lugar de exploração dos recursos naturais, não de cuidado e de zelo pela casa comum. Contudo, cada vez mais estamos aprendendo na marra que a natureza é limitada, não pode ser explorada até a exaustão, pois surgem cada vez mais desastres ambientais e a saúde é um bem maior que não podemos negociar, não nos deixa outra alternativa. Ou nos salvamos juntos ou não haverá salvação para essa geração perversa e irresponsável.

 

Rosana e Tarcísio descascando mandioca nos fundos da casa de Dona Sandra (11/10/2020).

 

Rosana é a nova esposa de Carlinhos, outro filho de Dona Sandra que mora no Aterradinho propriamente dito, onde está o Posto de Saúde. Tarcísio Geraldo da Costa (56 anos) é o piloto de barco da Saúde na aldeia Perigara que faz escala com Gonçalo, cada um trabalha 15 dias direto em toda a Baía dos Guató e na Terra Indígena Perigara (Bóe). Estivemos de forma diferente este ano no Pantanal com os Guató, sem chuvas, sem inundações, sem mosquitos, tudo cinza e seco. Nas baixadas onde existe ainda umidade e nos corixos existe um encanto redobrado porque o verde retoma suas belezas de várias tonalidades. Na volta, no final de tarde do dia 12 de outubro de 2020, atolamos o carro no Pantanal, mas não foi no barro, foi no pó. [11] Foi preciso se misturar no pó, ficar sentado no meio dessa secura sem precedentes, esforçando-se com o macaco para levantar o carro e calçar os pneus de diversas formas, sem resultado efetivo para retirar o robust. Não poderíamos sair do Pantanal sem essa experiência mais radical das cinzas e do pó do Pantanal para saber o que é a sede e o sofrimento dos animais e das plantas nesse bioma destruído. [12]

 

Eurico ajoelhado, devoção espontânea dos Guató diante do santuário de Nossa Senhora Aparecida (11/10/2020).

 

A comunidade estava em oração por nós. Depois de vários esforços, andamos depois que escureceu e colocamos o nosso caminho nas mãos de Nossa Senhora Aparecida e de São José de Anchieta, o taumaturgo que falava com as onças e outros animais. Pedi para o Gilberto andar ao meu lado, não atrás de mim, pois as onças atacam a pessoa que está atrás. Sempre é bom estar com os pés no chão para caminhar devagar, mas também para pensar alto e seguro. Eu andei descalço nessa terra para sentir o drama que se vive nesse Pantanal com as queimadas, mas também para oferecer o sacrifício a Nossa Senhora Aparecida, São José e o Menino Jesus que fugiam para o Egito, para que Deus cuidasse de nós. As onças nos seguiram até a casa onde conseguimos auxílio, pessoas de generosa solidariedade que permite a vida se perpetuar. Nesse lugar tinha água da fazenda Cassange fresca e um carro maior para puxar o nosso para fora. O Renato foi dirigindo e os 5 foram nos mostrando os rastros das onças atrás de nossas pegadas. Cheguei tarde da noite e agora estou colocando em dia o que ficou para trás, agradecendo pelas chuvas que Deus está mandando para todos nós. O modelo econômico predatório leva aos extremos das mudanças climáticas e aos desastres que não se sustentam nem economicamente.

 

Anderson, com o sobrinho que trata como o irmão menor, já que ficou morando com seus pais desde que nasceu. A mãe conseguiu um casamento e levou o menino para Várzea Grande e deixou os avós na maior paixão. Todos ficaram doentes e a mãe resolvei devolver o menino para ficar com os avós. O menino esteve muito doente em Barão do Melgaço, disseram que “o médico já tinha dado atestado de óbito”. Batizaram Lorenzo Gabriel com urgência e a avó trouxe para a Santa Casa em Cuiabá e ali ficou 41 dias cuidando dele. A partir do dia em que ele sentou na cama e, espontaneamente, pôs as mãos juntas como se estivesse rezando, ele passou a dormir e a melhorar significativamente. “Até os enfermeiros tiraram fotos, foi um milagre! Esse menino é uma bênção para os Guató!”, disseram. Todos estavam agradecendo pela vida desse menino que atribuem a um milagre de Nossa Senhora Aparecida.

 

O José Maria é o atual cacique do Aterradinho e mora no Coqueiro e o Carlinhos é o vice dele. [13] Soube que Dona Dalva tem liderança no Perigara (São Benedito), mas não mora nem no Aterradinho e nem no São Benedito, talvez more meio separada porque casou-se com Fabiano um pedreiro que veio de São Paulo. Não vi nem o José Maria e nem a Dona Dalva na festa. Outra liderança forte nesse contexto dos Guató é a Dona Glória nessa margem do rio Cuiabá.

 

Um detalhe impressionante entre os Guató é a alta quantidade de homens, muito maior que mulheres, talvez dada as condições de pescaria e de caçada que é próprio desse bioma. Por outro lado também observei que o cuidado que os homens possuem com as crianças é exemplar. Eles carregam os filhos seus e dos outros para cuidar com muita frequência. Também se prestam a brincar com as crianças em diversas circunstâncias.

 

Cavaleiros que chegaram do Campo Limpo para a festa no final de tarde (11/10/2020).

 

Lucas é um dos cavaleiros que parece liderar o grupo. Fala com alegria das 3 horas de cavalgada para chegar na festa. Falaram do drama das queimadas e como vieram pelo Pantanal seco, mas com a umidade do solo o pasto nativo já pode ser visto brotando para a alegria de todos. Estiveram no amanhecer do dia seguinte às voltas com os cavalos para terem o que comer. Um se soltou e foi muito interessante ver como eles fizeram para aproximar-se com outro para ele não fugir para o campo aberto e como colocaram a corda ao redor de seu pescoço e fizeram o buçal com a mesma corda.

 

Árvore do pátio da aldeia de Dona Sandra com local para tratar os pássaros.

 

Os Guató também estão preocupados com a vinda das chuvas também porque se as águas já trazem os agrotóxicos das lavouras e os lixos das cabeceiras agora também serão levados aos rios pelas chuvas as cinzas das queimadas, outro impacto dos incêndios ocorridos no Pantanal, o que altera a qualidade das águas do rio Cuiabá, São Lourenço e Paraguai, toda a rede hídrica do Pantanal como um todo, pois os microrganismos de fitoplâncton e zooplâncton, base da cadeia alimentar dos peixes, será prejudicada.

 

Seu Domingos, com 117 anos, o “patriarca de todos” e esposa Dona Teodorica. 

 

Berenice, a filha que cuida dos pais abraça a ambos com carinho Seu Domingos e Dona Teodorica. Com o esposo Leonil cuidam também do neto que fica com eles, Lorenzo Gabriel que está com 2 anos. Lorenzo Gabriel foi registrado só no nome da mãe que não quis revelar quem era o pai, porque não assumiu o filho. “Hoje os pais são os avós maternos, eles que criam”, disse Alessandra Guató.

 

Adílio, o filho de Sandra, possui um barco para turistas que querem pescar. Falou sobre a tradição de pescaria desde pequeno e com o seu irmão Carlinhos pescavam o dia todo. Uma vez com fome, pegaram um pacu e assaram dentro da canoa mesmo colocando por baixo terra e queimando cupim. Sente-se feliz nessa vida sobre as águas e auxiliando o seu povo, pois pode intermediar a compra de iscas e agora na festa também estacionar o barco ali do lado e colocar energia elétrica para a casa de sua mãe Dona Sandra e também para ter água e outras bebidas geladas para todos. Na hora da s músicas mostrou tatmbém que é bom cantor...

 

Daniel, o filho do Índio, veio pedir para que eu rezasse sobre sua cabeça e também pelo filho que faleceu pequeno. Na foto de Daniel, dá para ver a casa de Carina e Itamar que passaram a morar ali com a mãe. Alessandra também diz que fará uma casa do lado da árvore que tem o ninho de tuiuiú. Foi um esforço enorme para explicar que o rio Pixaim passa ali próximo do Cuiabá, mas vai desaguar no Paraguaizinho que entra no Paraguai e não no Cuiabá. Também foram mostrando o seu conhecimento geográfico e da bacia hidrográfica: o rio Itiquira entra no rio Vermelho que passa em Rondonópolis; depois recebe o rio Perigara e forma o São Lourenço que entra no rio Cuiabá e vai descendo; quase no final é que o rio Piquiriri entra no Cuiabá e vai até o Porto Jofre com o nome de rio Cuiabá; depois forma o São Lourenço novamente e recebe o rio Negrinho e o rio Negrão; ali vai formar a baía da Gaíva, perde a força na Reserva Taiamã e cai no rio Paraguai.

 

As rodas de tererê também são adequadas para o clima quente no Pantanal. Jeferson que é casado com a filha do Romeu que é Guató, é de Poconé e está com a cuia e fazendo o papel de quem serve a chicha, na foto acima e a rapaziada aprecia.

 

As crianças estavam o tempo todo brincando, um sinal de que tudo tem solução quando acontecem gestos de generosidade e amor em clima de festa. Os bsão bem cuidadosos com suas crianças e existe um bem estar e alegria maior esse ano porque as crianças que estavam estudando na cidade estavam na aldeia. Dona Sandra estava cansada, mas realizada em preparar essa festa para as crianças e para a Mãe Aparecida.



Sempre ao lado de seu povo, Alessandra Guató, mestranda do PPGAS-UFMT é uma pessoa presente na comunidade, um reforço grande para sua mãe Sandra e agora que sua irmã Karine está atuando como professora, pode fazer seu tratamento em Cuiabá com mais tranquilidade, pois sua irmã fica com a mãe. Percebi esse ano que havia mais gente. Muitos que estavam nas cidades para os filhos estudarem, estão agora na Baía dos Guató porque é mais protegido, mas também porque as aulas presenciais estão suspensas.



Na tarde do dia 12 foi distribuído um bolo gostoso com refrigerante para as crianças. Eunice o fez na sua casa e o trouxe com todo o carinho e foi servindo para todos com a alegria do bem feito. Depois fomos nos preparando para seguir de volta para Cuiabá. Aos poucos as pessoas foram se despedindo e nós também.

 

Marciano, barqueiro que nos trouxe de barco até onde deixamos o carro, no Hotel São Miguel.

 

Nesse ambiente pantaneiro parece que todos são barqueiros, pois essa habilidade é vital. Os barqueiros são habilidosos e conhecem como ninguém os detalhes dos rios e corixos, para não encalhar ou bater nas galhadas no fundo do rio. Quem nos levou pelo rio Cuiabá de volta foi o Marciano, o genro de Guilherme e Marlene, filha de Seu Domingos. Esse lugar está com um acesso por terra até a Transpantaneira que dá acesso ao Porto Jofre. São 38 quilômetros numa estrada vicinal e fica paralelo ao local da Fazenda São João, onde outras vezes deixamos o carro.

 

 

 

Nos corixos tem bastante jacaré que comem os peixinhos e a capivara que come a vegetação aquática. Ali dentro os Guató fazem uma armadilha de tela fininha, pegam os cupinzeiros das árvores, esfarelam para pegar os cupins e colocar dentro dessa armadilha. Os peixinhos entram na armadilha para comer os cupins e não conseguem mais sair. No amanhecer do dia seguinte os Guató vão e pegam as armadilhas cheias de peixinhos e caranguejos que servem para vender como iscas para os pescadores que vem para o Pantanal pescar. Disseram-me que os peixes grandes, pintados, pacu, lobo, dourado etc. não ficam nesses corixos, quando percebem que as águas vão baixando, já vão fugindo para os leitos dos rios grandes. Mas gostam demais dos peixinhos pequenos que voltam para os leitos dos rios quando chove novamente ou os encontram novamente nos corixos quando voltam a ter conexão com os rios.

 

Gilberto de Oliveira Leite mostrando um corixo para pegar iscas.

 

Gilberto de Oliveira Leite estava em Poconé, mas mora e trabalha em Várzea Grande, é filho de um gerente da Fazenda Ixu que casou com uma indígena da terra, provavelmente Bóe (Bororo), mas também pode ser Guató. É um afilhado de Dona Sandra e uma pessoa que conhece bem o Pantanal. Viemos conversando sobre a fazenda Ixu do Fabi, no Coqueiral que no passado tinha escravos e que agora está dentro da Baía dos Guató e o fazendeiro diz que os Guató é que estão depredando as portas e janelas, porque está abandonada. O nome de um dos donos atualmente é Mário Dorileo, mas são 5 irmãos que herdaram a fazenda Ixu.

 

Algodãozinho é uma planta nativa do Pantanal (12/10/2020).

 

A maior parte das áreas do Pantanal estão privatizadas, foram cercadas para a criação de gado e as plantas nativas não servem para o gado. Por isso cada vez mais são plantadas outras variedades de pastos exóticos. No Pantanal cresce o algodãozinho, ver fotos acima, e os pacus pastam livres somente na época das cheias. Algodãozinho, nome dado por causa do seu fruto que é protegido por uma espécie de algodão. Cresce em toda a parte alagada do pantanal e os pacus gostam de comer suas folhas que crescem abundantes mesmo debaixo d´água. Sua flor é rocha. Uma planta que está bastante pisoteada pelo gado que não a come, mas também bastante queimada.

 

Aqui estamos diante das comunidades tradicionais e indígenas que são os mais interessados na vida no Pantanal porque ali vivem e sem esse lugar ficam doentes como mostrou Dona Sandra, que fazem alianças com os pecuaristas tradicionais e os agentes e/ou empresas de turismo que possuem uma rede de influência no sentido do cuidado, porque ninguém quer ver um Pantanal devastado. O problema são os novos pecuraristas que não conhecem o bioma e querem ganhar muito dinheiro, por isso causam grandes desastres como esses incêndios, segundo os Guató. A chegada do capitalismo com sua exploração, escravidão, invasão dos territórios tradicionais mais sangrenta e o extermínio mais violento já visto nas Américas é nossa história de colonização que tem suas raízes também no Pantanal. Descobrir essa história não contada, com os genocídios e uma violência internalizada e abafada faz parte dos desafios dos tempos atuais. Para adentrar nos fatos e começar a resgatar nomes, etnias, línguas, crenças, rituais contextualizados sem puritanismos é o que de melhor podemos fazer. Descolonizar é preciso e urgente, assim não vamos permitir a continuidade desses novos processos de colonização que avançam velozmente com outros métodos.

 

Casa tomada pela figueira, o tempo que passa no Pantanal (12/10/2020).

 

Gilberto falou-me também da casa antiga tomada pela figueira e dessa ocupação antiga na estrada do Hotel São Gabriel do Pantanal pelas pessoas que iam chegando e tomando os lugares melhores dos Guató, através de relações também de alianças matrimoniais e de compadrio. Redeel falou-me das alianças que está fazendo com os Guató do Mato Grosso do Sul e como foi importante para ele ir até Corumbá e depois até a aldeia e aprender a língua que estava se perdendo.

 

Diante deste capitalismo tão miserável que expressa o fracasso humano num cemitério de plantas e animais mortos no Pantanal, penso que podemos perceber que, Deus ouve o clamor de todos os que são mortos nesses incêndios criminosos, e fará surgir uma nova humanidade que saiba cuidar da Casa Comum com o carinho e o Amor que merecem, plantando jardins e roças que produzam flores e frutos para alegrar o corpo e a alma em festa das pessoas que saibam usar dos bens da criação para louvar, reverenciar e servir a Deus, não para levar a humanidade para o inferno como aconteceu nesta tragédia histórica sem precedentes, por causa do governo que simplesmente quer passar a boiada por cima de tudo que se construiu de instituições sociais criadas para o cuidado do Meio Ambiente onde vivemos.

 

Alessandra surpreendeu-nos com a notícia que uma onça atacou o filho do Seu Guilherme e Dona Maria no dia 16/10/2020, na parte da tarde na Baía dos Guató. O acontecido se deu pelas 15 horas e teve o socorro do pai e do irmão que estavam com ele no local do ataque, e ele veio montado num cavalo durante uma hora até chegar no Posto da aldeia Aterradinho. Ainda bem que a equipe de saúde estava ali e o médico Rafael Lobo veio acompanhando-o até Poconé e de Poconé foi transferido para Várzea Grande onde foi submetido a cirurgias de emergência. Apesar dos Guató serem cuidadosos, eles estavam no campo olhando o gado que eles têm. A onça estava na moita com filhote e atacou por trás. Como é um animal traiçoeiro [14] e silencioso, é quase impossível perceber.

 

Irenaldo José da silva, apelidado Nardo, recebeu logo o tratamento necessário para estancar o sangue, o que foi muito importante. Tudo ficou mais dramático para mim, ao pensar no dia 12, quando atolamos o carro no caminho e tentamos tirar e, não conseguindo, voltamos até a fazenda que lá nos socorreram, mas disseram que viram os rastros das onças que estavam no nosso encalço. Alessandra Guató compreende: “Nesta época ela com filhote... E com a queimada estão com muita fome!”

 

Pelos diferentes cortes na cabeça, a onça deu o bote com as unhas e já conseguira abocanhar com os dentes, mas o irmão e o pai de Nardo conseguiram afastar o animal de imediato, sem que desse tempo dela segurar o corpo de Nardo na hora do ataque. Quando o Carlinhos, o irmão de Alessandra foi atacado no ano passado, ele conseguiu se defender com o braço porque ela veio de frente, e os cachorros auxiliaram. Agora ela veio por trás, com dente e unha e atacou duramente na cabeça que é o lugar mais vital, mas teve unhada nas costas e braço. Nardo continua internado no Hospital Metropolitano de Várzea Grande e passa bem. Rezemos pela saúde física, psicológica e espiritual do Nardo pois Deus e Nossa Senhora Aparecida cuidam de nós.

 

Notas: 

[1] Sexta extinção em massa está em andamento.

[2] Bispos do Pantanal denunciam descaso político com incêndios (21/09/2020 domtotal.com). 

[3] No Pantanal, os 8.106 focos registrados pelo Inpe no Pantanal em setembro é quase o triplo do mesmo mês em 2019 e já fazem de setembro o pior mês da história do bioma em relação às queimadas. Ver aqui (01/10/2020); aqui; aqui (25/09/2020); empresas ligadas a Eike Batista, BTG Pactual e André Esteves foram quem mais devastaram o Pantanal, segundo Ibama.

[4] Os incêndios no Pantanal, no Cerrado e na Floresta Amazônica lançam na atmosfera toneladas de gases tóxicos como o monóxido de carbono (CO) e o dióxido de carbono (CO2). Rondonópolis (MT) chegou a contabilizar 38 mortes de idosos no calor extremo e na fumaça por causa das queimadas no Pantanal. No desejo de auxiliar os animais sobreviventes sem alimentos que migram para próximo das casas das pessoas, pois os animais tendem a conviver muito próximo dos animais domésticos e das pessoas, onde encontram alimento e aumenta a transmissão de doenças como a raiva e novas rantaviroses. Por outro lado, na transpantaneira os caminhões pipas e os que auxiliam levando alimentos para os animais do Pantanal precisam ser mais discernidos, pois a água e os alimentos são deixados na beira da estrada, o que faz com que os animais se aproximem mais do local e acabam sendo atropelados pelos carros que passam por ali.

[5] Conforme levantamento do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da UFRJ. Quem desce pelos rios encontra uma visão desoladora e não parece que tenha ficado algo sem queimar.

[6] Lévi-Strauss identifica grupos de transformação do tipo de existência do que chama famílias de mitos que são conjuntos de mitos como os mitos jê da origem do fogo, do M7 ao M12 (Lo crudo y lo cocido, Fondo de Cultura Econômica. México. 1986 [1964]: p. 109 (O cru e o cozido, São Paulo, Brasiliense. 1991). Os Rikbaktsa possuem um mito em que a onça preta está moqueando um homem para comer e chama a onça pintada, a jaguatirica e a onça parda (Pereira, 1994: p. 67-75).

[7] Lévi-Strauss que faz uma análise estrutural dos mitos associa ao incesto entre o céu e a terra, por intermédio dos raios de sol esse processo de secar a carne. Para justificar no mito Inuit (M156), o eclipse do sol seria o abraço que o sol por vezes consegue dar em sua irmã.

[8] A forma de moquear é diferente do modo de fazer churrasco, porém parecido, ou seja, coloca-se o animal sobre um girau feito de madeira cerca de meio metro acima e mantem-se o fogo brando abaixo para desidratar a carne. Vira-se frequentemente o animal para moquear de todos os lados.

[9] O mito Matako (M59) fala do jaguar que é um dos donos do fogo (M22). O fogo da onça preta foi roubado para fazer comida e deixaram as brasas e começou um incêndio, mas as onças se esforçaram a apagar com água (Lévi-Strauss, 1986: p. 134). Estou orientando a dissertação de Alan dos Santos Costa “O SOL E A LUA: UMA OBSERVAÇÃO DOS SÍMBOLOS E RITOS DO VALE DO AMANHECER”, a respeito de uma Doutrina espiritualista cristã, fundada pela médium Tia Neiva em 1959, em Brasília. Um dos aspectos é o surgimento dos jaguares, liderados pelo espírito do Grande Jaguar, o Pai Seta Branca, um espírito valente, aguerrido e de grande coragem, ligados à figura dos felinos ou jaguares pelos andinos. Outro acesso é o filme Apocalipto de Mel Gibson.

[10] Durante o dia, para não ser visto diz que fazia roça e voltava no anoitecer tocando flauta.

[11] Na estrada que dá acesso ao rio Cuiabá pelo pantanal, por causa da composição do solo, nesse tempo seco, vai formando lugares muito macios parecendo com um talco fino em diferentes lugares e não é possível ver os sulcos profundos que foram deixados pelos caminhões na estrada, agora secos e duros. Os carros baixos acabam patinando no talco fino ou encalham com o peito do carro nas partes altas entre os trilhos das rodas de caminhão. Na noite passada os que vieram para tocar na festa atolaram o carro nessa poeira sem fim, um talco que é um caos para a visibilidade. Somente conseguiram chegar às três horas da madrugada na aldeia.

[12] Maurício López, inspirador da Rede Eclesial Pan-amazônica, falou de outro extremo onde estava: “Yo en cambio, justamente por las complejidades de los procesos y ante las dudas y desafíos, estuve en la montaña alta tocando la nieve del Cotoxpaxi con algunos de los guardianes de los pueblos que cuidan de los espíritus en lo Andes. Siempre ayuda mucho a mantener la conexión con la tierra y con la visión de conjunto para seguir sirviendo los procesos amplios. Afortunadamente no teníamos onzas en este caos. Un fuerte abrazo!” Lembrei dos Quéchuas no Altiplano recolhendo até as folhas das árvores para fazer um foguinho de noite para aquecer o sono, dada a escassez de madeira.

[13] No ano passado Carlos Arruda, irmão de Alessandra foi atacado por uma onça na Baía dos Guató e foi dramática a sua recuperação.

[14] Os Rikbaktsa têm um mito no qual um homem ruim foi transformado pelo pajé, usando veneno, em onça pintada (Pereira, 1994: p. 266).

[15] Fotografias foram disponibilizadas por Alessandra Guató, as demais são do autor. Veja aqui e aqui.

 

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