24 Setembro 2020
"Da mesma maneira que ela proíbe e extermina plantações de papoula de facções não aliadas aos EUA, ela também sustenta e patrocina facções que utilizam da papoula e todos seus derivados (incluindo ópio e heroína) como renda", escrevem Thales Valente, graduando em relações internacionais, e Bruno Beaklini, militante socialista libertário de origem árabe-brasileira e editor dos canais do Estratégia & Análise, a análise política para a esquerda mais à esquerda.
A produção de papoula é endêmica nos terrenos apropriados, em zonas limites montanhosas, na extensão de territórios que ocupam franjas de domínios estatais em suas zonas mais frágeis. Como se trata de uma cadeia de baixo valor agregado e que pode gerar muita liquidez em relativo curto tempo, além de contar com canais e circuitos financeiros apropriados para lavagem e distribuição, o ópio assim como as demais cadeias no narcotráfico, são cadeias cogeridas pelos serviços de inteligência. Na relação do Inter-Services Intelligence (ISI, Inteligência Inter-Serviços, complexo aparelho paquistanês que ganhou vida própria na 1ª Guerra do Afeganistão no século XX) com as facções mujahideen afegãs, não é diferente.
O domínio da agricultura da papoula, da fabricação e venda do ópio e da heroína já era algo altamente estimulado pela parceria entre ISI (Serviço de Inteligência Paquistanesa) e a CIA em território afegão durante a invasão soviética (1979-1989). O tráfico do ópio e da heroína gerou tanto lucro, que mesmo após a retirada da URSS em 15 de fevereiro de 1989, as atividades econômicas permaneceram sob o comando do ISI. O objetivo inicial era viciar as tropas soviéticas na heroína e ganhar território aos poucos por meio de facções aliadas. (RAMAN, 2001) Passada a primeira guerra e entrando o Afeganistão em guerra civil na sequência, em conflito vencido pela aliança Taliban-ISI em setembro de 1996, a produção, o tráfico e as regras de compensação só aumentaram, sendo uma cultura fundamental em territórios com escassas parcelas plenamente agriculturáveis.
Não se sabe quando a encubação do Taliban ocorreu, todavia, o que se sabe é que a organização foi originada tendo como base as crianças afegãs que estiveram foragidas no Paquistão durante a guerra civil patrocinada pela invasão da URSS. A política de deportação territorial promovida pelo Kremlin – lembrando o desterro de tártaros, chechenos e circassianos promovidos pelo terrorismo de Estado com Stálin como líder incondicional – expulsa mais de três milhões de afegãos, a imensa maioria de pashtuns, gerando mais de 1 milhão de refugiados na fronteira paquistanesa. Taliban, em árabe, significa “Estudantes”, no plural. Essas crianças foram educadas em escolas fundamentalistas islâmicas e tiveram patrocínio e incentivo da parceria ISI-CIA para formarem um grupo político-armado contra as forças regulares da União Soviética e sob a influência estadunidense e paquistanesa. (DORRONSORO, 2005) Ou seja, o Taliban nasceu quando a política da papoula, ópio e heroína estavam sendo estimuladas pelos seus patrocinadores em território Afegão.
Quando o Taliban toma o poder em setembro de 1996, o “know how” da papoula já se encontrava difundido pelo Afeganistão e seus lucros já eram de conhecimento público devido a essa estratégia de dupla via. Publicamente, o combate pelo tráfico exercido pela parceria CIA-ISI (RAMAN, 2001). De forma seletiva, a inteligência estadunidense favorecia seus “amigos” enquanto os pares paquistaneses, com muitos agentes pashtuns defensores desta hegemonia étnico cultural tanto no Afeganistão como nas áreas especiais de fronteira (as que eram denominadas como FATA, Federally Administered Tribal Area, Área Tribal sob Administração Federal), operavam com algum tipo de enlace não muito controlável. De 1947 a 2018, a área citada era administrada pelo código legal do Regulamento de Crimes de Fronteira (Frontier Crimes Regulation), e não obedecia a leis algumas – nem afegãs e nem paquistanesas – além dos códigos religiosos e consuetudinários de mullahs e chefes tribais. A partir de 2018, o de Islamabad transfere a região como parte da província de Khyber Pakhtunkhwa, cuja capital é a estratégica e eternizada cidade de Peshawar. Considerando as gerações de combatentes com plena autonomia, a mudança chegou tarde. O combustível da guerra, portanto, já era o ópio.
O Taliban, tendo ideologia islâmica conservadora de vertente wahhabita começa a dialogar com outros grupos islâmicos – partidos políticos de ambos países e lideranças tribais, novamente, em sua maioria pashtun. Assim o que era uma força pequena e consolidada se transforma em rede de redes, sendo o governo central de Kabul apenas uma peça do jogo de domínio territorial. Formalmente, o governo do Emirado Islâmico do Taliban sob comando de primeiro ministro Abdul Kabir tinha excelentes relações com a Al Qaeda, abrigava o sheikh Osama Bin Laden, dava status de heróis para os veteranos afghanis (combatentes árabes de linha wahhabita que lutaram contra os invasores “cruzados bizantinos”) e mantinha diversos campos de treinamento para comandos e células de terror integrista sunita. Como Estado soberano, apoiava formalmente a Al Qaeda, algo que a Arábia Saudita sempre fez, mas de forma discreta. Assim, ao invés de “invadir” a monarquia saudita de vez, o governo Bush Jr decide pelo conflito do Taliban contra os EUA, após os atentados de 11 de setembro de 2001 (Torres Gêmeas de Nova York, tentativa de ataque ao Pentágono e contra a Casa Branca). Os EUA intensificam a “Guerra ao Terror” e cobram do Taliban que expatrie Osama Bin Laden, permitindo que as tropas estadunidenses cacem membros da Al Qaeda em território afegão. Quando o Emirado de Kabul nega, a invasão estadunidense ocorre e o governo Taliban é deposto. (GOODHAND, 2005) A partir de dezembro de 2001, após a Batalha de Tora Bora, os conflitos entre senhores da guerra locais (warlords), EUA, Taliban, inteligência paquistanesa e um ímã de magnetismo integrista na Ásia Central e Sul da Ásia se intensificam. O tabuleiro dos dezoito anos seguintes à invasão gringa se forma em um jogo de influências pelas rotas comerciais, tendo como combustível de guerra o tráfico e como meio de campo uma população majoritariamente rural – e na área de disputa fronteiriça com o Paquistão, de maioria pashtun - e tentando sobreviver da melhor forma entre guerras, crise econômica e fome.
Para compreendermos como a economia do ópio se mantém na região, primeiro devemos nos aproximar de uma análise descritiva de como ela é formada. Em um sistema decentralizado onde fações rivais competem por rota e o sistema de poder legitimado pela comunidade internacional não consegue ser reconhecido por todo território nacional, a população se assegura nas práticas de sobrevivência que elas melhor conhecem. A plantação de papoula entra no tabuleiro não apenas como uma fornecedora para o tráfico de drogas, mas também como uma alternativa de agricultura familiar, voltada para subsistência, como qualquer outra. Da papoula consegue-se fazer outros tipos de produtos como palha, combustível, óleo de cozinha e ração animal; portanto ela não é utilizada apenas como instrumento de tráfico, mas como uma produção versátil e de fácil manuseio. (PAIN, 2008) Sua comodificação traz também alta rentabilidade, é cotada internacionalmente, mas ao contrário da especulação na Bolsa de Chicago com contratos futuros de produção primária, em geral, os contratos se dão por demanda e são cumpridos através de normas escritas e não escritas.
Outro fator importante para a compreensão do tabuleiro do ópio é que a “War on Drugs” não está inserida no Afeganistão como um simples combate às drogas, mas como uma intervenção militar para concretizar a influência estadunidense na região. (CHANDRA, 2006). Cabe observar que embora esse seja o discurso oficial dos Estados Unidos, toda a guerra contra as drogas promovida pela Superpotência tem dois ângulos: ou é um problema de transferência de ativos financeiros para o país produtor ou distribuidor, ou é uma agenda securitária. Em termos de saúde pública os EUA não passam de campeões mundiais de hipocrisia, já quem sem um sistema de saúde universal o país tem.
Logo ocorre algo parecido com a presença das agencias de inteligência na Colômbia após a implantação do plano de intervenção. No país sul-americano, a articulação da CIA com as Autodefensas Unidas de Colombia (AUC, na prática era um cartel de paramilitares de extrema direita) era uma evidência. Já a DEA interveio através dos Bloques de Búsqueda, primeiro contra Medellín e depois contra Cali. A meta era passar o setor mais forte para o México, considerando que a capacidade de intervenção no país vizinho assim como a liberdade de movimento da Superpotência é sempre maior do que em outras partes da América Latina.
O modus operandi é assemelhado no Afeganistão. Desta forma, da mesma maneira que ela proíbe e extermina plantações de papoula de facções não aliadas aos EUA, ela também sustenta e patrocina facções que utilizam da papoula e todos seus derivados (incluindo ópio e heroína) como renda. Trinta e cinco Senhores da Guerra (warlords) admitiram ter recebido US$ 7 milhões dos EUA como pagamento por sua lealdade ao combate antiterrorista. (BERNIKER, 2002) Ou seja, o ópio nunca deixou de ser um combustível da máquina de guerra.
Além da compra e encomenda direta realizada pelos serviços de inteligência, existem formas de relações econômicas em escala local-regional que dão sustentação transacional para o cultivo e a comercialização de derivados. Pode-se, então, sintetizar que as relações da papoula e do ópio como crédito informal estão inseridas em três tipos e escalas de economia. O primeiro, denominado “Combat Economy”, é a máquina de guerra em si utilizando o ópio como seu combustível; o segundo sistema chamado “Shadow Economy”, que são agricultores que utilizam o ópio como forma de lucro particular indiferente de sua localização e subordinação (ou seja, a tributação paga pelo plantio pode ou não ser utilizada para guerra); e o terceiro e último sistema, e mais utilizado, é chamado de “Coping Economy”, que é o ópio sendo utilizado para subsistência familiar. (GOODHAND, 2005)
Portanto, temos no tabuleiro os EUA, Warlords e o Taliban (e o ISI) sustentando o ópio como máquina de guerra (Combat Economy); os latifundiários e agricultores de médio porte ou associados aos grandes que utilizam do ópio para enriquecer e expandir suas propriedades (Shadow Economy) e as famílias agricultoras que dependem do crédito informal vindo do ópio para subsistência (Coping Economy). (GOODHAND, 2005) Todavia, quando avaliamos numericamente qual sistema de crédito e base transacional é mais utilizado, verificamos que o crédito informal do ópio oriundo das pequenas famílias que necessitam dele para subsistência é mais abrangente do que o crédito para guerra e lucro. E essas famílias formam a maior parcela populacional do Afeganistão. (PAIN, 2008) Como apontado pelo relatório da UNODC em 2018 sobre a economia do ópio no Afeganistão, grande parte dos recursos vindos do ópio para os agricultores são voltados a compra de comida e medicamentos para as famílias:
(Fonte: UNODC, 2019)
Desta forma, uma relação complexa entre ópio, guerra, lucro e sobrevivência compõe o tabuleiro da economia política afegã e para compreendê-la necessitamos, primeiramente, entender como o crédito informal se incorpora nas regiões, para, então, ligarmos ele à papoula e ao ópio e verificar como o sistema se sustenta de acordo com os players (EUA, Taliban, ISI e Warlords).
O crédito informal vai surgir justamente da necessidade da população de realizar empréstimos para conseguir plantar ou produzir seus produtos. Portanto, precisamos primeiro discernir entre a papoula como crédito informal e o ópio como crédito informal. A proibição da plantação de papoula se torna controversa dessa forma, pois o mercado desta planta para medicamentos, combustível e outros produtos não ilícitos é legal; todavia da mesma plantação de papoula pode sair ópio e heroína criando uma relação complexa e difícil estudo. (PAIN, 2008). Novamente podemos comparar com as regiões cocaleras andinas, com especial atenção para a Bolívia. Não é ilegal plantar folha de coca e a mesma é base para toda uma complexa cadeia de valor e forma de vida, muito anterior ao aumento da produção e vertiginoso crescimento do consumo de cocaína, primeiramente nos países ricos.
A ausência de uma rede bancária formal (com as práticas de bancos institucionais, e a consequente alocação de dinheiro com origem duvidosa em negócios aparentemente legais) no Afeganistão faz com que o crédito informal seja um mecanismo essencial para a sobrevivência das famílias afegãs. Segundo relatórios da ONU o sistema de “Salam” é o crédito informal mais utilizado no Afeganistão. (UNODC, 2003) Trata-se de um instrumento financeiro dotado de jurisprudência islâmica utilizado para financiar fazendeiros e negócios agrícolas; permitindo a compra antecipada antes da safra/coleta, para que o fazendeiro ou agricultor consiga utilizar desse dinheiro para sobreviver durante o período de plantação/produção. (PUTRI, RAZIA e MUNEEZA, 2019).
Dentro desse sistema de encomenda de produção, depósito, recebíveis, e antecipações, existem diversas variações de pagamentos adiantados que são utilizados como instrumento de crédito. Em um estudo sobre o crédito informal no Afeganistão, por exemplo, foi apontado duas variações aplicadas na região norte do país. A primeira e mais comum variação é chamada de Peshaki, em que o fazendeiro recebe o dinheiro adiantado para o plantio, mas a venda é feita sobre um preço inferior ao preço de mercado podendo chegar a até 40 porcento a menos do valor do mercado. A outra variação, também muito comum, é a Nasiya, em que o comprador paga adiantado pelo valor da safra de acordo com o valor do mercado, mas é estabelecido previamente o quanto a mais ele vai ganhar, por exemplo, o comprador utiliza 100,000 Afghanis (Afs, moeda corrente em todo o território afegão, embora possa ser não prevalente em algumas regiões) na compra, mas ele vai receber de volta o equivalente a 120,000 Afs, normalmente a transação é feita em uma proporção de 10:12. (PAIN, 2008)
Como se observa, nenhuma politica securitária ou intervenção externa vai diminuir a escala dessa produção primária se não forem construídas alternativas na base da cadeia de valor. O problema do ópio como moeda e crédito informal não está no produto em si, mas na necessidade do crédito que a população necessita para sobreviver. Indiferente de como a papoula será utilizada, ela se torna essencial para a sobrevivência de muitas pessoas. Nesse sentido, os estudos do crédito informal não podem ignorar os impactos sociais e o que leva a sociedade a aderir a eles. (KLIJIN e PAIN, 2007)
Todavia, é necessário destacar que o dinheiro envolvendo o ópio como crédito é muito maior do que para outros produtos agrícolas. 36% das vilas que cultivam papoula falam que os fazendeiros pagam impostos devido a venda do ópio e que foram taxadas mais de 2.240 toneladas de ópio só em 2018. A venda do ópio gera uma renda descomunalmente maior do que qualquer outro produto. Mais de US$ 29 milhões em dólares foram arrecadados apenas de impostos (normalmente de 5%) feito sobre a venda do ópio no Afeganistão. (UNODC, 2019) Em um vilarejo em que a fome se alastra e sem nenhuma opção melhor de trabalho num futuro próximo, a papoula vai continuar exercendo a função daquilo que se tira maior sustento (o tráfico). O valor da produção do ópio no decorrer dos anos varia, mas se mantém alta. Sendo a seca o único fator decisivo para a diminuição da produção segundo os relatórios da UNODC. (UNODC, 2019)
(Fonte: UNODC, 2019)
Portanto, o combate ao ópio nunca vai ser efetivo caso a população não receba uma melhor garantia de políticas públicas (mas sob algum controle coletivo e não impostas como no período da intervenção soviética), emprego (especialmente em áreas urbanas), terras agriculturáveis (e a necessidade de ampliar a rede de captação de água) e estabilidade econômica (como na garantia da compra da safra e com estoques reguladores tendo a produção de papoula como uma das moedas). O crédito informal gera um sistema complexo em que da mesma forma que ele é utilizado como ferramenta de arma de guerra e também de coerção, como instrumento ainda é essencial para a subsistência da população.
Cria-se, então, uma relação ambígua e multidimensional entre credores e devedores. Tal complexidade está muito além dos discursos hipócritas e genocidas da oligarquia econômico-financeira que governa os Estados Unidos e também não encontra solução no poder local consolidado, como no aparelho de inteligência paquistanês. Uma possibilidade é o desenvolvimento regional condicionado à aplicação de políticas públicas e incentivo da economia local. Para tal é realmente necessário parar a guerra, exigir a retirada de forças estrangeiras (especialmente anglo-saxãs e europeias) e demandar um plano de restauração do país. Do contrário, a economia de guerra só dará lugar ao aumento da presença dos capitais chineses, incluindo a venda de recursos naturais, a exemplo do que os governos de Islamabad e Beijing vêm implantando na província do Balochistão “paquistanês”.
Esse artigo foi originalmente publicado no portal Carta Maior.
BERNIKER, M. Back to Bad Opium Habits. Asia Times, Hong Kong, Dezembro 2002.
CHANDRA, V. Warlords, Drugs and the ‘War on Terror’ in Afghanistan: The Paradoxes. Strategic Analysis, v. 30, n. 1, p. 64-92, Jan-Mar 2006.
DORRONSORO, G. Revolution Unending: Afghanistan 1979 to the Present. [S.l.]: C Hurst & Co Publishers Ltd, 2005.
GOODHAND, J. Frontiers and Wars: The Opium Economy in Afghanistan. Journal of Agrarian Change, v. 5, n. 2, p. 191-216, april 2005.
KLIJIN, F.; PAIN, A. Finding The Money: Informal Credit Practices in Rural Afghanistan. Afghanistan Research and Evaluation Unit. Kabul. 2007.
PAIN, A. Opium Poppy and Informal credit. Afghanistan Research and Evaluation Unit IssuePaper Series, Kabul, outubro 2008.
PUTRI, A. K.; RAZIA, E. T.; MUNEEZA, A. The Potential of Bai Salam in Islamic Social Finance to Achieve United Nations’ Sustainable Development Goals. International Journal of Management and Applied Research, v. 6, n. 3, 2019.
RAMAN, B. PAKISTAN'S INTER-SERVICES INTELLIGENCE (ISI). South Asia Analysis Group , v. 287, Agosto 2001.
UNODC. THE OPIUM ECONOMY IN AFGHANISTAN: An International Problem. UNODC , 2003.
UNODC. Afghanistan opium survey 2018: Challenges to sustainable development, peace and security. UNODC Reaserch, Julho 2019.
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Economia Política do Ópio: O Caso Afegão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU