02 Julho 2020
Quando escreveu sua regra monástica, São Bento advertiu repetidamente contra os efeitos corrosivos da “murmuração”, uma forma de reclamação ou de resmungo que pode destruir a vida da comunidade.
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 30-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agora, 1.500 anos depois, o Papa Francisco emitiu um alerta semelhante, em uma crítica afiada a alguns elementos da cultura eclesial contemporânea que, através de constantes murmurações, ameaçam a unidade da Igreja e enfraquecem a sua voz profética.
O problema de reclamar, explicou o pontífice romano de 83 anos durante a missa na festa de São Pedro e São Paulo, é que não se vê como grandes dificuldades podem se transformar em momentos de transformação.
Para Pedro e Paulo, acrescentou o papa, provocações e reversões de vida são seguidas por profecias, e uma Igreja profética só pode surgir quando as pessoas permitem que suas certezas sejam desafiadas pelo Evangelho. São Paulo, por exemplo, descobriu que a sua conversão fez com que ele abrisse mãe da sua “presunção de homem religioso”.
Dadas as dificuldades que as comunidades católicas enfrentam em todo o mundo, há uma forte tentação de gastar tempo lamentando, em vez de tentar forjar o futuro. A esse respeito, as observações de Francisco são oportunas.
Em uma homilia, o papa disse à assembleia socialmente distanciada na Basílica de São Pedro no domingo passado que “é inútil, até mesmo entediante, que os cristãos percam tempo se lamentando do mundo, da sociedade, de tudo o que não está certo”, acrescentando: “As lamentações não mudam nada.”
Ele lembrou aos católicos que, em meio à perseguição do rei Herodes, que viu São Pedro definhar na prisão e enfrentar uma possível morte, os primeiros cristãos “não culpavam, mas rezaram”,
Mas se tornar profético, continuou o papa, significa estar pronto para atravessar a porta estreita do serviço.
“Paulo, antes de ser decapitado, pensou apenas em doar a vida e escreveu que queria ser ‘derramado como oferta’. Isso é profecia. Não palavras. Isso é profecia, a profecia que muda a história”, disse Francisco. “São necessárias vidas que manifestem o milagre do amor de Deus. (...) Não palavras, mas oração. Não proclamações, mas serviço.”
O papa leva a sério a injunção beneditina contra a murmuração. Na porta do seu quarto particular na sua residência na Casa Santa Marta, há uma placa com letras vermelhas: “Vietato lamentarsi” (proibido reclamar).
Os primeiros cristãos, disse Francisco, tinham muitas razões para criticar São Pedro, mas “não falavam mal dele, mas rezavam por ele. Não falavam pelas costas, mas falavam a Deus”.
Suas observações foram feitas enquanto alguns membros da Igreja, em particular os insatisfeitos com a direção do atual pontificado, buscam deslocar o debate para a questão do “próximo papa”.
Dois livros que compartilham esse título estão sendo promovidos em meios de comunicação católicos conservadores e pelo Breitbart News, o site de notícias de extrema-direita cofundado por Steve Bannon. Essas mesmas mídias sempre tentaram minar a agenda de renovação do primeiro papa latino-americano, prejudicando, assim, o papado como centro de unidade.
Não se trata de silenciar pessoas que discordam do papa: durante todo o seu pontificado, Francisco nomeou prelados para cargos importantes em Roma que tinham visões próprias muito diferentes da Igreja.
Sua homilia, em vez disso, tratava das ameaças à unidade decorrentes de um narcisismo autorreferencial e de um desejo de reclamar. Tal atitude fecha a porta ao Espírito Santo e sufoca a profecia.
Francisco não tinha apenas seus críticos conservadores em vista. O testemunho profético da Igreja não pode ser deixado aos planos pastorais, “como se fossem sacramentos”, uma armadilha em que algumas autoridades mais progressistas podem cair. E seu argumento de que as reversões ou as dificuldades têm valor redentor é um desafio para as gerações mais jovens tentadas a desistir logo de início.
Ao contrário de São Bento, que, desiludido com a vida em Roma, optou por abandonar a Cidade Eterna para viver como eremita, Francisco continua sendo levado a avançar nas reformas da Igreja. No entanto, ele poderia se consolar com a resposta do pai do monaquismo ocidental para as grandes dificuldades: quando um grupo de monges secretamente envenenou seu vinho, São Bento abençoou o copo antes de colocá-lo em seus lábios. O copo se estilhaçou, e o vinho caiu no chão.
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As duras palavras de Francisco à Igreja: as murmurações abafam a profecia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU