09 Junho 2020
Parece ficar claro para muitos que lutar por comida e por liberdade são tão essenciais como lutar pela vida. E agora no Brasil é cada vez mais espalhada a compreensão coletiva da urgência dessa luta, afirma texto publicado pelo Coletivo Uninômade em seu portal, 06-06-2020.
A política de sabotagem ao controle da Covid 19 e a escalada do governo Bolsonaro contra as instituições democráticas estão sendo percebidas por parte cada vez maior da sociedade como causa de morte e sofrimento que poderiam ser evitados e de agravamento aqui das perdas sociais e econômicas que ocorrem em todo o mundo. Como consequência, as pesquisas registram mais rejeição ao presidente e crescem as iniciativas na sociedade para deter o seu projeto genocida e ditatorial. E não pode ser descartado um cenário de revolta social caso os efeitos combinados das crises sanitária e econômica fiquem intoleráveis para a população mais vulnerável.
Faz parte desta percepção da sociedade a expectativa de que o Brasil sofrerá uma recessão maior e mais demorada que a média dos países, agravando os efeitos destrutivos do vírus na economia e na sociedade. No primeiro trimestre o PIB caiu 1,5% e a população ocupada encolheu em 5 milhões de pessoas. As expectativas são de que a queda do produto ficará entre 5% e 10% este ano e que o desemprego passará de 20 milhões. O auxílio emergencial ajuda a mitigar a catástrofe da fome dos mais vulneráveis, mas a ineficácia criminosa das medidas de socorro às pequenas e médias empresas leva à exterminação de negócios e empregos. O ministro da economia está abraçado ao presidente: eugenismo social (“que vivam os mais fortes, todos vamos morrer um dia”) do segundo se completa do eugenismo econômico do primeiro (“deixa as pequenas empresas morrer”). E o governo federal asfixia a saúde e os Estados, paralisando criminosamente os repasses monetários votados no Congresso.
A resposta da economia será mais difícil no Brasil em decorrência dessas perdas propositais de empresas, empregos e vidas. Outros países – mesmo na América do Sul – não poupam esforços para evitar essa destruição, que aqui vem acontecendo em grau maior como resultado da conivência e mesmo intervenção do próprio governo. Boa parte do mundo já começa a dar os primeiros passos na direção da recuperação da economia. Aqui, porém, a retomada é ameaçada pelo risco político, pela combinação de instabilidade e insegurança provocadas por Bolsonaro.
A equipe econômica bolsonarista quer ‘ajustar’ um mundo que já não existe mais. Na crise atual, praticamente todos os países decidiram sair do rigor fiscal pelo menos até superarem seus efeitos. E ninguém sabe exatamente o tamanho e a duração dessa suspensão sem precedente da economia mundial para salvar vidas. Os programas de garantia de renda e preservação de empregos e empresas foram adotados sem hesitação e em volumes inéditos nos Estados Unidos, Europa, Ásia e emergentes em geral. Aqui, o governo propôs um auxílio de R$ 200 mensais por três meses que foi ampliado para R$ 600 (ainda assim pequeno em relação à média internacional) após a tramitação no Congresso Nacional. O pagamento desta ajuda tem sido difícil e demorado. Os programas de garantia de emprego são limitados e os de apoio a pequenas e médias empresas são insuficientes e inadequados. E para piorar o governo ataca governadores e prefeitos, que estão na linha de frente do combate ao vírus, e segura o socorro financeiro a Estados e municípios como pressão política.
Mesmo economistas liberais e analistas do mercado financeiro preconizam a suspensão do rigor fiscal no Brasil durante esta crise. Entendem que não se deve temer aumento exponencial da dívida pública uma vez que os juros estão baixos e que não há risco de aumento da inflação e sim de depressão econômica. A aposta é que os juros baixos desarmam o risco de crescimento exponencial da dívida pelo lado do ‘serviço’, do custo da dívida. O Brasil já chegou a pagar 19% ao ano de juros reais pela dívida pública. Hoje paga 4% e vai a 2%.
O problema hoje não é a inflação, mas a deflação, ou seja, o abismo que levaria da recessão para a depressão. É preciso multiplicar os investimentos públicos e estimular a retomada dos investimentos privados com a prática de juros ainda mais baixos, próximos mesmo de zero. O grande risco a este cenário que, no Brasil, se pode chamar de otimista, é político. É exatamente o ‘Fator Bolsonaro’, causador de instabilidade institucional, insegurança jurídica, perdas incalculáveis de capital humano e destruição da confiança.
Aparentemente, Bolsonaro e Guedes jogam para tirar alguma vantagem com a crise para o projeto de ampliação das reformas, que já era polêmico antes e neste momento torna-se contraindicado. Guedes sabe que tem os instrumentos econômicos em suas mãos e terá de usá-los para evitar a depressão, mas prefere chantagear a sociedade.
Esta opção pela chantagem a partir da tragédia da Covid 19 é evidente na escalada de radicalização de Bolsonaro e do bolsonarismo. E é a linha de ação de muitos de seus ministros que buscam aproveitar o ambiente de luto, sofrimento e restrição da potência social para avançar em projetos destrutivos. O exemplo recente mais explícito é do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que propôs aproveitar a pandemia para “passar a boiada” contra a legislação de preservação ambiental no país, para destruir o pouco que foi conquistado.
Chantagem e oportunismo são a tônica de praticamente todas as áreas do governo. O ministro das Relações Exteriores preconiza e age para o isolamento do país; o novo ministro da Justiça passa a ser advogado do presidente, de seus familiares e aliados acusados de delitos; o chefe do gabinete de segurança institucional ameaça os demais poderes e as instituições; o ministro da Defesa acata ordem do presidente para suspender medidas do Exército para controle de armas e munição e participa de atos contra a democracia; o ministro da Educação prega o ódio e a violência; a ministra encarregada do Direitos Humanos faz vista grossa para as violações. O presidente da fundação criada para promover a igualdade racial defende o racismo. E o ministro interino da Saúde impõe ao sistema público de saúde protocolo impróprio e de risco para a pandemia. Como não constatar enfim o erro colossal (e emblemático) de um dos atores mais importantes da Lava Jato em ter aderido a um desenho político de restauração que tinha como principal propósito fechar a brecha democrática aberta por junho de 2013 e com ela fechar a luta contra a corrupção.
Se por um lado o resultado imediato do desastre político e administrativo do governo Bolsonaro já se calcula em milhares de vidas humanas pelo desgoverno da pandemia, por outro isso vem impondo a Bolsonaro o aumento da rejeição ao governo e encorajado mais setores da sociedade a se mobilizarem e manifestarem nas redes e na mídia. Mesmo nas ruas onde, em respeito às medidas sanitárias, a oposição ao governo evitava se manifestar, começaram a acontecer atos de protesto em defesa da democracia. A própria resposta da sociedade à pandemia está inspirando esta coragem e o aprendizado de formas possíveis de mobilização e manifestação. Apesar da sabotagem bolsonarista, tem sido forte a adesão ao auto isolamento por pessoas com esta possibilidade de escolha e se multiplicam iniciativas da sociedade para enfrentar a crise sanitária e econômica de forma inventiva e solidária, na pluralidade de ações que ocorrem nas vizinhanças e cidades, nas redes de organizações sociais, instituições e empresas, no trabalho dos profissionais de saúde e dos trabalhadores e empreendedores das cadeias de produção, logística e outros serviços essenciais.
Este inspirador processo autônomo na sociedade conta com adesão, apoio e estímulo de parte importante da imprensa e das áreas médica, da ciência, academia, cultura, entre outras, reforçadas – a partir das últimas investidas de Bolsonaro contra o sistema de justiça e demais instituições democráticas – por profissionais do direito e de outros setores. Tudo isso pode estar inflando uma onda virtuosa de resistência também no âmbito das instituições políticas.
Ao mesmo tempo, a revolta nos Estados Unidos a partir da indignação com a morte de mais um negro vítima de violência policial, provavelmente já reacendeu o temor de um novo 2013 no Brasil, o que nunca deixou de estar no radar político de diferentes governos e que parece ter assombrado Bolsonaro no final do ano passado com o retorno da onda de protestos e revoltas na América Latina e outras partes do mundo.
Junho de 2020 não é Junho de 2013, que foi asfixiado com a ajuda do lulismo. Mas não há como evitar a dor e luto pelos mortos (do vírus, da violência e da miséria) e inconformismo com os efeitos da destruição da economia. O que a sociedade prefere e precisa é que as manifestações sejam um espaço de humanidade e não-violência. O projeto fascista procurará, ao contrário, fomentar a violência, como suas claques FAKE estão encenando com a multiplicação de manifestações antidemocráticas e até armadas.
No momento em que estamos não há como negar que que existe um ‘autogolpe’ em curso para submeter as instituições democráticas e dominar a sociedade. O que Bolsonaro pratica é o modelo venezuelano e no horizonte está a destruição do tecido social e também econômico do país: ‘Brasil abaixo de tudo’.
Bolsonaro, porém, parece não ter força suficiente para avançar no projeto ditatorial. A rejeição ao seu governo chegou a 50% e a sua base de apoio está estacionada em 33% ou caindo para 25%, dependendo da pesquisa. E parte desse apoio é volátil: devido à distribuição do auxilio emergencial.
No entanto, mesmo se for confirmada a tendência de rejeição ao presidente, o apoio do bolsonorarismo mais radical parece resiliente. E militares da reserva no governo cultivam a ambiguidade para amplificar a multiplicação das intimidações às outras instituições democráticas. Apesar do aumento da mobilização na sociedade, os setores críticos e de oposição ao governo não demonstram ter força suficiente para barrar o projeto ditatorial e menos ainda para sustentar um processo de impeachment do presidente.
O presidente da República – a cada etapa das investigações de crimes políticos e de corrupção de seus filhos e aliados – parece mais acuado e age como se já estivesse na iminência de ser afastado do poder, subindo o tom contra as instituições e aumentando os ataques a governadores e outros adversários políticos, avançando no aparelhamento da máquina pública (alcançando agora a Polícia Federal), entregando parte do governo a setores fisiológicos da representação política (o Centrão, que o general ameaçador chamava de ‘ladrão’ virou agora um camarada patriótico) em troca de apoio no Congresso Nacional, submetendo as Forças Armadas, açulando ainda mais suas milícias e a militância e exigindo fidelidade canina de ministros, aliados e protegidos na máquina pública e de quem quer que tenha ou possa ter qualquer dependência do governo, seja financeira ou institucional, na sociedade e no setor privado.
Seria ótimo se fosse possível tirar o ‘Fator Bolsonaro’ do centro do debate. Também seria ótimo poder acordar do ‘pesadelo Bolsonaro’ e pensar o acontecimento da Covid 19 como possibilidade e surgimento mesmo do “novo”, de incentivo a dobrar a aposta no pluralismo social e político como vetor de defesa vida, como inspiração e condição para novas formas de sociedade e economia mais justas e compatíveis com o estado do conhecimento e da tecnologia.
Mas hoje, no Brasil, não parece fácil desviar da centralidade de Bolsonaro – o lado explicito do Brasil escravagista e mortífero – que é não só sabota a luta pela vida na pandemia e a recuperação econômica depois, como também é o obstáculo maior a qualquer projeto de justiça, solidariedade e comunhão, que precisa passar necessariamente pela existência de um ambiente democrático.
Além disso, Bolsonaro segue investindo no crônico descompasso social e político no Brasil e se beneficia de impasses políticos e da desconfiança com relação às instituições, que não querem mudanças efetivas. E tem a cumplicidade do progressismo, inclusive o não-petista, que até agora parece escolher dificultar o avanço das mobilizações e manifestações públicas pela democracia, inclusive de enfrentamento a atos bolsonaristas, que começaram a ocorrer em algumas cidades (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Manaus).
Outros atos estão anunciados certamente estimuladas pelo aumento aqui das mobilizações e também pela revolta cidadã nos EUA. São acontecimentos que poderão ganhar autonomia e ser decisivos na contestação a Bolsonaro se tiverem grande adesão e conseguirem evitar a violência. Farão possivelmente a diferença na imposição de limite ao projeto ditatorial, dando potência a um sistema de freios e contrapesos que sozinho não é capaz de bloquear o projeto fascista-miliciano.
Mas também as manifestações de rua geram impasses que podem beneficiar o governo e o percurso ditatorial, principalmente se houver descontrole da violência, que seguramente está sendo estimulada pelo próprio bolsonarismo e sua ramificação na polícia. Mas existe escolha entre ir ou não para a rua? Quem vai dizer para os pobres que é melhor não protestar? Quem vai convencer os jovens a deixar as coisas como estão?
Parece ficar claro para muitos que lutar por comida e por liberdade são tão essenciais como lutar pela vida. E agora no Brasil é cada vez mais espalhada a compreensão coletiva da urgência dessa luta. Cabe aos democratas tentar interferir para que a não-violência seja um mandamento nos protestos. Este é o caminho mais difícil, mas é o mais potente. E é o que mais o fascismo teme. A autonomia dos movimentos, mesmo imprevisível, incontrolável e cheia de riscos, pode constituir o novo que se anuncia e que os mais vulneráveis não irão esperar para sempre.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vírus político e multiplicação de perdas sociais e econômicas no Brasil. Texto do coletivo Multinômade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU