22 Mai 2020
Depois da morte de Adolfo Nicolás, recuperamos uma série de entrevistas de Juan Masiá, s.j., feitas como conversas, coincidindo com a viagem do papa Francisco ao Japão, na “Loyola House”, a casa dos jesuítas em Tóquio. Na primeira, o ex-superior-geral falava da necessidade de “rezar com Francisco pelo Japão e rezar desde o Japão por Francisco, apoiando sua primavera evangélica”, enquanto, nesta segunda, Nicolás aborda um dos temas centrais em sua teologia: A misericórdia.
A entrevista é de Juan Masiá, publicada por Religión Digital, 01-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Adolfo Nicolás aborda quatro temas em comum com o budismo: misericórdia, contemplação, discernimento e proteção justa de toda vida. Somente o primeiro já dá para muitas horas. É central a misericórdia para cristãos e budistas. Pensei sempre que isso era mais óbvio em Tóquio que em Madrid.
No entanto, me surpreenderam reações inesperadas por parte da igreja católica japonesa. Ao traduzir Evangelii Gaudium ao japonês, descobri que os budistas falam da “alegria do Dharma”, utilizei esse ideograma para verter as palavras de Francisco, mas aos corretores parecia uma expressão que “cheirava a budismo”.
E quando traduzi a mensagem do ano da misericórdia com a palavra-chave da tradição budista para falar de compaixão: jihi, em japonês, também pareceu aos corretores que “cheirava a budismo”. Penso que, se Francisco não se incomoda com o “cheiro de ovelha”, tampouco o importaria o “cheiro de budismo, compassivo e contemplativo”.
Se isso tivesse ocorrido na Espanha – onde não são poucos os preconceitos fundamentalistas contra a iluminação e compaixão do Zen, não me estranharia. Porém, no Japão... não podia crer! Será que aqueles que suspeitam do que eles chamam de excesso misericordioso de Francisco exalavam o velho cristianismo “feito em Nagasaki”, ou isso seria culpa do estilo missionário dos estrangeiros que por muito tempo educaram o clero japonês com a mentalidade da famosa exclamação de Xavier, que queria gritar aos estudantes universitários parisienses a necessidade de salvar milhões de almas orientais de cair no inferno?
Adolfo Nicolás – A grande maioria dos problemas da evangelização vem da ideia de Deus todo-poderoso e vencedor, que é um Deus veterotestamentário, que não sintoniza com o Deus de Jesus. Jesus ama e fala de tal maneira que faz de Deus fraco e vulnerável. O Deus de Jesus é sensível ao perdão e à fraqueza humana. E isso o faz próximo à experiência que temos se crermos nele. Eu sinto que o problema começou quando a Igreja assumiu em bloco a história de Israel como Antigo Testamento, sem discernimento de cada imagem, sem se dar conta da necessidade de revisar hermeneuticamente essas imagens ambíguas para salvar as do Deus misericordioso e descartar as do Deus vingativo e punitivo. Há imagens de um Deus vitorioso e potente, vencedor de outros deuses; são imagens que vêm da experiência da religiosidade hebreia, porém não casam com o Deus de Jesus. Não servem para o encontro de religiões no futuro para trabalhar em comum, cooperando para a paz do mundo e para as raízes da espiritualidade (com imagens de circularidade e profundidade, em vez de piramidais e dominadoras).
Juan Masiá – A circularidade e a profundidade me tentam a interrompê-lo, comentando o logotipo da vinda de Francisco ao Japão (que tem muito de circular e profundo, comunitário e radical ...), mas seria melhor deixar para o próximo post e continuar a me aprofundar no assunto do fracasso da antiga evangelização: aquela que focaliza mandamentos, sacramentos e consequências com a sombra ameaçadora dos castigos eternos, em vez de anunciar o evangelho da misericórdia. Um dos primeiros artigos de Adolfo Nicolás quando era professor de Escatologia, em 1973, coincide com o último que acaba de escrever durante sua estância na casa de saúde dos jesuítas em Tóquio. Por que não crer em castigos eternos, se se crê na misericórdia definitiva? Nesse artigo, o autor propõe a incompatibilidade teológica da misericórdia e o castigo eterno, verdade? Por que são incompatíveis ambos sentimentos de fé e as crenças correspondentes?
Adolfo Nicolás – Melhor formulá-la em primeira pessoa, sem adjetivos. Sinto-me cristão, porém encontrei no cristianismo algo que não é consistente com o Todo: o inferno. É algo como descobrir a misericórdia de Deus e receber um balde de água fria imediatamente depois. Creio que nunca respondemos à questão de que poderia sentir Deus frente ao hipotético caso de uma pessoa condenada ao inferno. A teoria parecerá clara. Queríamos fazer de Deus um justiceiro com toda justiça, porém não se consegue, porque nosso Deus perdoa e ama sem limite. Nossa justiça é sempre parcial. Encontramo-nos frente a conceitos humanos, que em todos se tem uma carga de finitude. Certamente, de uma finitude que limitaria o perdão e não permitiria o perdão total. Ademais, depende de um código penal que interpretamos segundo convém ao nosso jeito. Depois projetamos sobre a justiça de Deus as limitações das justiças humanas.
Juan Masiá – Compartilho deste pensamento e a fé que o sustenta. Porém quando o exponho para grupos de reflexão e convivência cristã, não falta os que questionam como viver sem inferno. A questão não me afeta, mas reconheço que aqueles que a fazem não têm más intenções, nem estão familiarizados com certas maneiras tradicionais de expor a doutrina.
Adolfo Nicolás – Sem inferno a vida cristã segue seu curso normal. A pessoa cristã busca conhecer o Deus verdadeiro e ajustá-lo a sua vida. Não muda sua conduta por medo do inferno, embora eu saiba que existem aqueles que se fizeram cristãos por medo do inferno. Porém, o inferno se pode pensar como um momento de lucidez, no qual se encontra um com Deus e vê que é fundamentalmente bom. Reconhece-se a bondade infinita e se reconhece a necessidade de pedir e receber perdão. Esse ver-se a si mesmo e ver a Deus faz compreender o sentido da vida humana como bondade e amor infinitos sem mescla de mal algum. Então aparece o reconhecimento do ergo erravimus, tão usado na literatura sobre os sentimentos em situações infernais.
Erravimus significa: nos equivocamos. Em vez de fiarmos na força e no poder, teríamos que ter sido consistentes e crer que Deus é bom. Recordo o que me disse um bispo japonês da conversa que teve com outro bispo tailandês. Me dizia assim: o tailandês me falou de um muçulmano que havia dito a ele: “Vocês, cristãos, são no fundo egoístas, porque fazem as coisas boas para ganhar o céu e evitar o inferno. Nós fazemos as coisas bem, porque é bom ser bom”. O bispo tailandês ficou abalado com a sentença condenatória do muçulmano.
Juan Masiá – Se ouvissem os que criticam o papa Francisco e o acusam de “deboísmo”, escandalizar-se-iam.
Adolfo Nicolás – No fundo, é porque não entendem o papa Francisco quando fala da bondade de Deus. Há aqueles que se escandalizam quando o escutam falar do perdão. Reconhecemos o erro sobre o sentido da vida quando não soubemos perdoar, nem pedir perdão. Nos fiamos frequentemente mais na força e no poder, que na bondade e amor de Deus. Esse erro também ocorre em outras religiosidades. O budismo tem também seu inferno, muito parecido certamente ao que escutamos e vimos ser descrito pela nossa tradição cristã. São velhas imagens que expressam o erro de fiar mais na justiça vingativa que no amor que perdoa e reabilita.
Juan Masiá – Não são somente os fundamentalistas em moral os que reivindicam a necessidade de infernos, também os fundamentalistas na leitura bíblica argumentam apoiando-se no que Jesus falou de diabos, infernos e fogos eternos. Terá que se reeducar em hermenêutica para entender bem o perdão.
Adolfo Nicolás – Jesus fala do inferno porque, com sua visão pastoral dos limites humanos, sabe que muitos não registram em seu coração a justiça sem um mínimo de recurso ao temor. Mas acho que Jesus gostaria de se libertar do duplo engano de tê-lo como muito rigoroso ou um grande paizão. Jesus evita os dois extremos: quem o considera muito rigoroso ou quem o considera um paizão a quem a guerra, a injustiça e a desonestidade dão no mesmo.
Jesus se preocupa com a justiça humana entre indivíduos e países. Ele quer que sua mensagem seja clara e usa imagens que nós entendemos mal. É porque nós as entendemos como se fossem uma pintura da realidade. E isso está fora da estrutura de Deus. Deus fala de uma realidade diferente daquela que tendemos a entender. A estrutura de Deus é, como eu disse antes, a do amor ilimitado. E, portanto, deve haver uma justiça aberta ao perdão e ao amor. Esta é a estrutura de Deus.
A justiça que não está aberta ao perdão não é de Deus. Quando alguém fala sobre o inferno, tende a pensar em um lugar de fogo simplesmente. E que dura eternamente. E esse não é o caminho de Deus. Sabendo que a interpretação humana evita o perdão, Jesus sempre fala de um amor que inclui perdão. O perdão como uma coisa normal...
Juan Masiá – Por isso, no quadro de Deus, quando a justiça carrega uma reparação, não era de forma vingativa, mas reabilitadora. Não um castigo como uma vingança, mas sim como reabilitação. Por isso os bispos japoneses levavam décadas se opondo à pena de morte. Porém alguns católicos “tradicionalistas” se escandalizavam frente a esta postura dos bispos, tão de acordo com a atual do papa Francisco. Algum político japonês que se atribui méritos por favorecer a vinda do papa Francisco ao Japão, mas não quer que a igreja fale a favor da abolição da pena de morte. Recentemente, a Comissão de Justiça e Paz da Conferência Episcopal Japonesa escreveu uma carta ao ministro da Justiça pedindo-lhe, devido à vinda do papa Francisco, ao menos uma moratória nas execuções de pena capital...
(Continuará)
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Adolfo Nicolás: Se o inferno existe, ele ainda precisa estrear. “Devemos anunciar misericórdia em vez de ameaçar com o fogo eterno” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU