11 Março 2020
"A leitura, apesar do esforço que implica nos percursos mais árduos (como aquele da composição e das fontes ou a identificação das perspectivas teológicas), também conquista o profano que pode vislumbrar um âmbito específico do panorama das origens cristãs, tanto é verdade que alguns estudiosos até falaram de um 'quinto evangelho', certamente não canônico, mas não raramente marcado pelo eco da voz autêntica de Jesus", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 08-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Estas são as palavras secretas que Jesus o vivente proferiu e Judas, também conhecido como Tomé, escreveu. E ele disse: Aquele que encontrar a interpretação dessas palavras não provará a morte". É a introdução, reconstruída com base nos textos gregos e coptas que chegaram até nós, de um dos apócrifos protocristãos mais fascinantes, o Evangelho segundo Tomé, que aflorou surpreendentemente em dezembro de 1945 de uma parede rochosa, no qual se abriam cavernas destinadas ao uso funerário, na área de Nag Hammadi (Alto Egito), na margem direita do Nilo.
Os responsáveis pela descoberta foram alguns camponeses que encontraram, durante uma escavação, um frasco selado: uma vez aberto, ele não continha um tesouro (como esperado), mas um rolo de códigos de papiro escritos em copta, pelo menos 15 ou 16 séculos antes. A partir daquele momento, começou uma aventura que não podemos narrar aqui com suas múltiplas e enigmáticas reviravoltas, incluindo o fato desconcertante de que a mãe de um dos descobridores não hesitou em usar algumas dessas folhas para acender o fogo da lareira da casa.
O emaranhado de questionamentos históricos, literários, filológicos e teológicos que se reúnem em torno de um desses manuscritos, o mais famoso, o Evangelho de Tomé, que consiste em 114 ditados (ou lóghia) atribuídos a Jesus, foi desvendado de várias formas por uma imponente bibliografia que agora possui um excelente mapa sintético no estudo de Andrea Annese, pesquisador da Universidade Sapienza de Roma.
Basta pensar que em volta das cerca de vinte páginas do texto original ela espalha uma gama de quase 200 páginas de análise e notas sobre o próprio texto. No entanto, a leitura, apesar do esforço que implica nos percursos mais árduos (como aquele da composição e das fontes ou a identificação das perspectivas teológicas), também conquista o profano que pode vislumbrar um âmbito específico do panorama das origens cristãs, tanto é verdade que alguns estudiosos até falaram de um "quinto evangelho", certamente não canônico, mas não raramente marcado pelo eco da voz autêntica de Jesus.
Não por acaso todas as suas palavras, aqui registradas, também são encontradas nos Evangelhos canônicos e são talvez rastreáveis - novamente de acordo com alguns exegetas - à hipotética fonte Q pré-evangélico (do alemão Quelle, "fonte") baseada precisamente nos lóghia de Cristo.
É difícil delinear as coordenadas genéticas desse evangelho apócrifo, nascido talvez na Síria entre o final do primeiro século e o início do segundo e atribuído ao apóstolo Tomé, chamado Dídimo, ou seja, "gêmeo", bem conhecido também dos evangelhos canônicos (quem não se lembra do famoso "dedo" no peito do Cristo ressuscitado?). A reconstrução da filigrana teológica subjacente a essa antologia de sentenças é interessante. É capaz de revelar um arco-íris de temas que se reportam à tradição judaica, muitas vezes de maneira crítica, mas que ampliam o horizonte subindo por sendas ascéticas e místicas, respirando também atmosferas herméticas ou neoplatônicas.
Assim, é oferecido um retrato cristológico complexo, centrado em um sujeito capital na pregação de Cristo, ou seja, o Reino de Deus Pai. Vamos parar aqui e deixar o leitor degustar as palavras às vezes fulgurantes de Jesus, como estas: "Que aquele que busca não cesse de buscar até encontrar. Quando encontrar, perturbar-se-á. Quando se perturbar ficará maravilhado e reinará sobre o Todo" (n. 2).
Ou esta outra sentença: “Tomei o meu lugar no meio do mundo e em carne lhes apareci. Encontrei todos embriagados e não encontrei nenhum deles sedento. A minha alma ficou aflita com os filhos do homem, porque são cegos nos seus corações e não veem, porque vieram ao mundo vazios e também vazios procuram deixar o mundo" (n. 28).
Ou a sugestiva n. 77: “Rachai um pedaço de madeira, e eu estou lá. Levantai a pedra e aí me encontrareis”.
Ou ainda a desconcertante n. 56: "Quem conseguiu compreender o mundo descobriu um cadáver, e quem descobriu um cadáver é superior ao mundo".
Mas ainda mais escandaloso para nossa sensibilidade é o último ditado, 114, baseado em uma androginia machista. Há um diálogo entre Pedro, que quer mandar embora Maria (Madalena) "porque as mulheres não são dignas da vida", e Jesus que responde: "Eu mesmo a irei dirigir, a fim de a fazer macho, para que também se torne um espírito vivo semelhante a vós, machos. Pois todas as mulheres que a si mesmas se fizerem machos, entrarão no Reino do Céu".
Idealmente remexendo nos manuscritos da jarra de Nag Hammadi, eis que surge outro texto copta, o Apócrifo de João, repetido em quatro desses códigos.
Outro pesquisador da Sapienza de Roma, Francesco Berno, oferece uma nova edição: também nesse caso, as vinte páginas da tradução da obra são acompanhadas por um impressionante séquito de capítulos introdutórios, bastante difíceis até no ditado, de notas e bibliografias que ocupam as outras 150 páginas do volume. Estamos, portanto, diante de uma escavação profunda que busca reconstruir a genealogia textual e temática de uma obra que, de acordo com a afirmação peremptória de dois estudiosos, K.L. King e G.G. Stroumsa, seria "a primeira tentativa de estruturar na forma de conto narrativo o mistério da revelação cristã", mas também "a última e imperfeita manifestação mitológica do mundo clássico".
Estamos no horizonte do gnosticismo, que adota uma complexa máquina mítica e se desenvolve ao longo de trajetórias ideológicas ramificadas. Embora o atual manuscrito copta deva ser colocado entre os séculos IV e V, a matriz grega remonta aos primeiros séculos cristãos, revelando a alta qualidade que já havia atingido a especulação de uma fé ancorada nas fontes evangélicas, mas agora já pronta para enfrentar de peito aberto os desafios de um diálogo intercultural.
O editor dessa edição entra com muita precisão na floresta histórico-crítica, literária e místico-teológica, aliás, como ele a define, na "galáxia" do Apócrifo, um horizonte frequentemente destinado a acolher desvios doutrinários e a se compor em constelações mítico-místicas e apocalípticas, colocadas sob a insígnia da consciente criação livre.
Uma revelação dirigida a João se desenrola sob a aparência narrativa. O título é, de fato, significativo: "O ensinamento do Salvador e a revelação dos mistérios e das coisas ocultas no silêncio e daquelas coisas que ele ensinou a João, seu discípulo". No coração dessa manifestação cristológica, entre outras coisas, desenvolvem-se temas teogônicos, cosmogônicos e antropogônicos, nos quais o Gênesis bíblico é "reescrito" e levado a dialogar com pinceladas platônicas (do Timeu), no espírito de um confronto inter-religioso que tem, no entanto, na revelação de Cristo, entendida de acordo com categorias gnósticas, a chave interpretativa básica e, é claro, o cume. Uma revelação eletiva e esotérica que transcende a filosofia pagã, a lei judaica e até a tradição cristã da Grande Igreja Oficial da época.
Andrea Annese, Il Vangelo di Tommaso, Carocci, Roma, p. 206, 17 € (Foto: Divulgação)
Francesco Berno, L’Apocrifo di Giovanni, Carocci, Roma, pp. 178, € 16 (Foto: Divulgação)
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Palavras secretas de Jesus, segundo Tomé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU