21 Fevereiro 2020
No RaiPlay, é possível assistir à intervenção de Roberto Benigni no Festival de Sanremo e a sua exegese e leitura dos Cânticos bíblicos.
O comentário é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 07-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A performance do ator provocou reações diversas, mas certamente é um evento que não pode ser ignorado. Nunca havia acontecido que um livro da Bíblia fizesse uma irrupção tão poderosa em um festival da canção tão mundano e frequentado, com base no pequeno eixo do seu título, o “Cântico dos Cânticos”, que, traduzido para o inglês, “Song of Songs”, explicou Benigni, soa como “a canção das canções”.
Mas que canção! O rabi Aquiba, no Sínodo de Iamnia, no século I, havia dito que o mundo inteiro não vale o dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel, porque “todas as Escrituras são santas, mas o Cântico dos Cânticos é o santo dos santos”. Nos Cânticos, o amor físico não é espiritualizado e extenuado, mas sim potencializado pelo fato de ser tomado como parábola do amor de Deus, e o relevante é que a iniciativa e o desejo de amor são perfeitamente recíprocos, da esposa e do esposo: ambos são figuras de Deus.
A ideia de Benigni de levar um compêndio dessas páginas milenares entre as luzes e as lantejoulas de Sanremo foi genial, e por 40 minutos o evento televisivo se tornou outra coisa. Benigni jogou toda a sua leitura no registro do canto de amor, no sentido até mais físico e desinibido do termo, propondo uma versão do texto mais antiga do que a acolhida no cânone das Escrituras, precedendo, portanto, cada adaptação e censura, uma versão em que abundam referências pontuais e explícitas ao sexo, aos seus órgãos e às suas expressões até mais intensamente eróticas.
Para essa operação exegética, o artista disse ter se confiado a altas competências literárias e bíblicas, incluindo o cardeal Ravasi, e certamente os especialistas terão algo para discutir sobre isso. De qualquer forma, isso permitiu que Benigni insistisse no aparente paradoxo da presença na Bíblia desse livro de amor, no qual Deus é nomeado uma única vez, contra a tradição sexofóbica da literatura religiosa (não sem exceções relevantes, basta pensar em São Bernardo e nos seus nove sermões sobre o beijo) e contra séculos de moral católica em que o amor sexual, subespécie do “De sexto” (o sexto mandamento) foi apresentado e reapresentado em todos os modos como pecado.
O efeito foi explosivo, e foi drástica por parte de Benigni a liquidação da atribuição absolutória do texto a Salomão, assim como das interpretações alegóricas e espiritualistas, recorrentes nos Padres da Igreja e na apologética moderna também, que buscaram desarmar o realismo do diálogo amoroso, lendo nele o amor incorpóreo e transcendente de Deus, primeiro por Israel e depois, com a boa notícia trazida por Jesus, por toda a humanidade, sem distinções entre judeu e grego.
Desse modo, Benigni fez uma dupla revelação: revelou aos espiritualistas a carga erótica do Cântico e revelou aos cantores e aos espectadores de Sanremo do que falam realmente, para além das cautelas das “pessoas de bem”, as suas canções de amor.
Não se pode negar que a apresentação de Benigni teve uma forte, embora oculta, intencionalidade religiosa, nada dessacralizadora; ao contrário, esse amor – talvez até escrito por uma mulher, especulou Benigni – foi definido como “santíssimo”. Porque tudo levava, mesmo na crueza da linguagem, a fazer emergir a natureza de infinitude, de mistério revelado, de absoluto, de necessidade do amor humano em todas as suas formas.
Benigni questionou a todos, dizendo que todos, no amor, viveram os seus momentos de imortalidade. Teria sido bom se ele tivesse tornado mais explícito por que um livro tão profano, tão humano, tão terreno ganhou espaço incontestado na Bíblia, ou seja, naquela que a Igreja proclama todos os dias como “palavra de Deus”.
Certamente, porque esse amor lá, pela sua profundidade, intensidade e êxtase, é um símbolo poderoso do amor de Deus pelas suas criaturas. Mas também, e ainda mais, mais do que um símbolo, porque um Deus que, como dizia a Carta aos Hebreus das leituras de domingo passado, compartilhou em Cristo “o sangue e a carne” que os filhos têm em comum compartilha também o seu amor na carne e no sangue, e é o “tipo” de todo amor humano autêntico.
De fato, na tradição bíblica, ele é pai (“pai nosso”), mas também mãe (“como uma mãe consola o seu filho, também eu consolarei...”), e mesmo nos amores mais atormentados é uma figura de quem ama (“amarei a ‘Não-Compadecida’, diz o Senhor...”), e até a própria relação assume o nome de Deus, como escrevia Dietrich Bonhoeffer da prisão de Tegel: “Rever-se também é um Deus”.
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A canção das canções. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU