14 Novembro 2019
"Num tempo marcado pela migração e indigência, há que aprofundar ainda mais a relacionalidade interespécies e romper com o desgaste da compaixão, com um quadro mais amplo de reflexão, que adiciona de forma radical a dimensão ética, o trabalho ético", escreve Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF.
Tenho refletido ultimamente sobre a crise civilizacional que vai tomando conta de nosso mundo, com consequências previsíveis desastrosas. O “excesso antropocêntrico”, como assinala o papa Francisco na Laudato si' (2015), vem nos levando ao risco de um caminho catastrófico para a humanidade (LS, 116 e 161)[1]. É o tempo do Antropoceno, que revela “a grande aceleração dos limites planetários”[2]. As resistências dos povos terranos estão em curso, mas são frágeis para enfrentar a voracidade dos humanos em seu projeto sedento e ilimitado, que domina tudo. Apesar disso, os virtuosos da diversidade, mesmo sendo uma minoria cognitiva, alçam suas vozes em favor de uma nova reverência para com o criado.
No curso do processo antropocêntrico, a afirmação da excepcionalidade humana, numa visão teleológica que situa o ser humano no cume da criação, com consequências bem precisas, e que estamos assistindo com perplexidade. Já dizia Lévi-Strauss, que essa predileção pelo humano com respeito às outras espécies, provocou, na verdade, um processo progressivo de exclusão, acompanhado de muita violência[3].
Uma gama de antropólogos firma-se hoje na crítica a essa “excepcionalidade” humana, como no caso de Eduardo Kohn, em seu precioso livro: Comment pensent les forêts (2017)[4]. Ali ele propõe uma antropologia “para além do humano”, que se revela capaz de acolher uma ecologia que abrange outros si-mesmos, incluindo as florestas e demais seres da criação. O humano deixa de ser o “umbigo do mundo” e entra na ciranda da criação como parte do vivente, como uma “espécie a mais entre outras”, como “espécies companheiras”[5].
A bonita proposta que vem da antropologia, e penso aqui na reflexão de Donna Haraway, entre outras (os), é enriquecer o presente com novas reflexões, “fazer de nossa concepção do presente algo mais denso, para que não apenas se fixe no instante atual, como também abarque nossa memória e nossa história” (Haraway). O caminho que se abre é o da “regeneração”, num aprendizado cotidiano de “aprender a florescer na complexidade”[6]. Abarcar a memória é também recuperar, com urgência, a sabedoria contida nas cosmologias antigas e tradicionais, cujas inquietudes revelam-se hoje plausíveis e ameaçadoras[7]. Na clássica Carta da Terra, fala-se em “reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”[8].
Por diversas vezes, na Laudato Si' (LS), o papa Francisco toca na nervura das inter-relações. Reitera a convicção de que há uma interligação entre todas as coisas: “Visto que todas as criaturas são interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros” (LS 42). Para delinear esse significado, Gilles Deleuze e Félix Guattari, recorrem à ideia de rizoma, que expressa linhas que se remetem umas às outras. São linhas de “desterritorialização”, com diversas rotas de fuga. Na dinâmica dessa reflexão, não há centralidade definida, mas conexões que espocam em todos os lugares. O rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”[9].
Tim Ingold prefere recorrer à imagem do micélio fúngico, como algo prototípico dos organismos vivos[10]. É um exemplo que quebra qualquer rigidez. A vida, diz Ingold, não pode estar contida ou encerrada dentro de “limites absolutos de formas fixas”, mas se desenrola num processo vital que se dá num campo de fluidez. O habitar humano concretiza-se no entrecruzar de linhas, onde inexiste uma separação rígida entre dois mundos: natureza e sociedade. O cosmos participa de uma rica dinâmica onde o movimento é o traço comum. O desafio que se coloca para nós é justamente o da inserção do ser humano e o seu devir “no interior da continuidade do mundo da vida”[11]. O crescimento humano se dá nesse campo vital, e inserindo-se vitalmente no mundo, o mundo cresce nele, revelando dimensões únicas e singulares. A vida é sempre um movimento de abertura e descoberta. Os organismos e pessoas estão, juntos, participando desse espetáculo vital, como num “tecido de nós”. O “ambiente” onde se processa o crescimento humano é envolvido por um emaranhado de fios: “É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou ´emanam` ao longo das linhas das suas relações”. E é esse entrelaçamento que adorna a textura do mundo.
A crítica ao excepcionalismo humano foi igualmente desenvolvida pela antropóloga Anna Tsing, que ensina na Universidade da Califórnia em Santa Cruz (USA) e na Universidade Aarhus, na Dinamarca. Suas reflexões, embasadas em rica etnografia, revelam-se para nós de originalidade singular, com pistas essenciais para pensar o nosso tempo. Em sua visão, o excepcionalismo humano é problemático, e algo que “nos cega”, pois nos incapacita a prestar atenção à rica diversidade que nos rodeia. Junto com o excepcionalismo, uma visão míope da “autonomia” humana, que traduz o reforço de um controle nocivo, ou um impacto predatório sobre a natureza. É uma visão que acaba por bloquear o caminho essencial de pensar a interdependência das espécies[12]. Segundo essa autora,
“a maioria das espécies dos dois lados da linha, incluindo os humanos, vivem em complexas relações de dependência e interdependência. Prestar atenção a essa diversidade pode ser o início da apreciação de um modo interespecífico de ser das espécies”[13].
E por que esse cuidado? Justamente pelo fato dessa diversidade biológica e social estar “camuflada” em “margens despercebidas” de nosso olhar superficial. Anna Tsing, sublinha que essa diversidade está ali, “oculta” em selvas urbanas ou nos recantos rurais, e ganha, por exemplo, expressão na vida dos fungos do solo e outros micro-organismos, que preferem sempre as “pequenas propriedades”. Ali está exemplificada a grande riqueza da diversidade.
Anna Tsing chegou a tal conclusão estudando os cogumelos e fungos. Gosta de dizer que os cogumelos são nossos “companheiros”, delineando a dinâmica de uma simbiose benéfica e vital. Como assinala,
“na longa história da Terra, os fungos foram responsáveis por enriquecer os solos e assim permitir que as plantas evoluíssem. Há árvores capazes de crescer em solos pobres por causa dos fungos que trazem fósforo, magnésio, cálcio e outros nutrientes às suas raízes”[14].
O que seria das florestas sem os fungos? Na verdade, seriam “pilhas de madeira morta”. Os fungos revelam-se “companheiros de outras espécies”, e traduzem a beleza da uma interdependência entre os seres da criação, uma “relacionalidade multiespécies”.
O desafio de nosso tempo é este de ampliar o olhar e prestar vivamente a atenção nessa diversidade. A riqueza está ali. Essa atenção cuidadosa à especificidade de mundos de vida abre um campo novo e fundamental para os estudos em ciências humanas e sociais. É o desafio de “repensar o ´humano` após o estouro da bolha antropocêntrica”[15]. Novos estudos nos ajudam a quebrar a nefasta dicotomia que se firmou na modernidade entre natureza e cultura, indicando que os limites são bem mais “porosos” do que se configuraram na reflexão instalada. Há que “multiplicar a atenção às diferenças”[16].
Com base em experiência etnográfica nas Montanhas Meratus, na Indonésia, durante os anos de 1990, Anna Tsing concentrou sua reflexão na dinâmica da expansão do capitalismo pelo globo. Reage criticamente ao empreendedorismo ligado à liberalização econômica e a afirmação de um capitalismo regional que acabou abafando os direitos das comunidades locais, com a progressiva destruição dos meios de sua subsistência. O tema foi desenvolvido no seu livro: Friction: An Ethnography of Global Connection (Princeton University, 2005)[17]. Em vez de falar em globalização, a autora prefere utilizar o termo “fricção” (atrito). Em vez da noção usual de globalização, Tsing propõe falar “em composições sempre contingentes e emergentes entre agendas e interesses heterogêneos, alguns dos quais logram universalizar, embora de modo sempre instável”[18].
É mais que um desafio tratar dessa complexa questão das “relações multiespécies em paisagens perturbadas”. A fricção traduz de forma feliz os fluxos globais, que envolvem atritos de bens, ideias, pessoas e dinheiro. É o modo como as trajetórias globais ganham forma. Nesse mundo complexo, a atentividade pressupõe interações baseadas na diferença. Acolher o atrito é “permitir que o irregular e o inesperado façam parte de nossas estórias de história global”[19].
Num tempo marcado pela migração e indigência, há que aprofundar ainda mais a relacionalidade interespécies e romper com o desgaste da compaixão, com um quadro mais amplo de reflexão, que adiciona de forma radical a dimensão ética, o trabalho ético. Nesse tempo de interatividade, não há como manter aceso o pensamento que, de forma simplória, universaliza o particular, exclusivizando o pensamento do “nós”, em oposição aos “outros”. Trata-se do tempo difícil das bolhas identitárias e da impermeabilidade: “nós somos nós, eles são eles”. Como bem expressou Clifford Geertz,
“obscurecer essas lacunas e assimetrias, relegando-as ao campo da diferença passível de ser reprimida ou ignorada, da mera dessemelhança (...) equivale a nos isolar desse conhecimento e dessa possibilidade: da possibilidade, em termos literais e rigorosos, de mudarmos de ideia”[20].
A atenção aos outros, incluindo aqui o campo diverso das vidas na natureza, significa abrir o coração para novos relacionamentos e novas responsabilidades.
[1] PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
[2] Bruno LATOUR. Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Decouverte, 2015, p. 12 e 148.
[3] Eliane BRUM. Diálogos sobre o fim do mundo. El País, 29/09/2014 (em conversa com Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski). (acesso em 13/11/2019).
[4] Eduardo KOHN. Comment pensent les forêts. Vers une anthropologie au-delà de l´humain. Paris: Zones Sensibles, 2017, p. 48.
[5] Donna HARAWAY. Manifeste des espèces de compagnia. Paris: Éditions de l´éclate, 2003; Philippe DESCOLA. L´ecologia degli altri. L´antropologia e la questione della natura. Roma: Editions Quae, 2013; http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592682-estamos-diante-de-uma-crise-do-modelo-de-civilizacao-entrevista-com-donna-haraway (acesso em 13/11/2019).
[6] Donna HARAWAY, na entrevista do IHU, citada acima.
[7] Bruno LATOUR. Enquête sur les modes d´existence. Une anthropologie des modernes. Paris: La Décourvert, 2012, p. 452. E ainda: o prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, O recado da mata, no livro de Davi KOPENAWA & Bruce ALBERT. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 35.
[8] Leonardo BOFF. Do iceberg à Arca de Noé. O nascimento de uma ética planet´ria. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 154.
[9] Gilles DELEUZE & Félix GUATTARI. Mil platôs. vol. 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 43.
[10] Tim INGOLD. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 140.
[11] Ibidem, p. 26.
[12] Anna TSING. Margens indomáveis. (acesso em 13/11/2019)
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Thom van DOOREN; Eben KIRSKEY; Ursula MÜNSTER. Estudos multiespécies: cultivando artes de atentividade. (acesso em 13/11/2019)
[16] Ibidem.
[17] E mais recentemente: The Mushroom at the End of the World (2017).
[18] Blog Sociofilo (acesso em 13/11(2019)
[19] Ibidem.
[20] Clifford GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 76.
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O desafio de habitar a complexidade de um mundo vital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU