26 Outubro 2019
Para sinólogo, governo de Xi Jinping desencanta mídia e produção acadêmica hegemônicas, por não se render ao capitalismo financeirizado. Por isso, crescem as críticas à Nova Rota da Seda e a disputa por Hong Kong.
A entrevista é publicada por Sin Permiso e reproduzida por Carta Maior. 22-10-2019. A tradução é de Victor Farinelli.
Originário de Jiangxi, e hoje professor de estudos chineses na Austrália, na Universidade de Adelaide, Gao Mobo é uma das muitas figuras da chamada “Nova Esquerda”, termo ambíguo que designa uma linha de pensamento, internamente muito diversa, através de um foco multidisciplinar, que relê a recente história chinesa em seu contexto, indo além das categorias estabelecidas pelos ocidentais. Em consequência, alguns autores desta corrente têm se dedicado concretamente ao tema da Revolução Cultural e seu impulso transformador inicial. Além de sua projeção acadêmica, esta “Nova Esquerda” chinesa também tem suas referências políticos, e uma delas é, justamente, a obra de Gao Mobo.
Enquanto Wang Hui (também acadêmico e professor no Departamento de Língua e Literatura Chinesa da Universidade Tsinghua, em Pequim) e outros se concentram no conceito de modernidade, que alimenta o pensamento daqueles que acreditam que a China só passou a ser “moderna” a partir da chegada do capitalismo e da reforma de Deng Xiaping, Gao Mobo se enfoca em uma leitura da história chinesa que pretende revelar em termos explícitos o curto-circuito intelectual que se produz no campo dos “estudos asiáticos” de origem norte-americana, estabelecido principalmente na época da Guerra Fria – claro que isso pode afetar o relato histórico também de outros países, assim como o do sistema midiático em seu conjunto.
No recente livro Constructing China, Clashing Views of the People’s Republic (“Construindo a China: Visões Conflitantes da República Popular”, em tradução livre do título em inglês), Mobo oferece um excelente resumo do método que se baseia em devolver à China o conhecimento que a historiografia ocidental lhe havia negado. Ao mesmo tempo, ele nos presenteia com extraordinárias intuições interpretativas da China contemporânea.
Comecemos por Hong Kong e o que está acontecendo agora. Sua opinião é que tanto Hong Kong como Taiwan estão ligadas ao sentido de identidade e de nação da China. Então, o caso dos protestos em Hong Kong nos leva a perguntar, mais uma vez: o que é a China?
Sim, creio que Deng Xiaoping tinha a esperança de que, cinquenta anos depois da devolução, já não haveria “dois sistemas”, porque a China se transformaria em algo similar a Hong Kong, se não idêntico, em muitos aspectos. Entretanto, com a chegada de Xi Jinping à presidência, as coisas mudaram de forma significativa. Sua campanha contra a corrupção ameaçava os capitalistas de ambos os lados. Não obstante, colaborar efetivamente com os capitalistas de Hong Kong significa não ajudar as classes inferiores, o que produzirá, como resultado, que muitos cidadãos da antiga colônia britânica se sentirão abandonados. É preciso ver o que Jinping tentará fazer a respeito.
Em seu livro Constructing China, você destaca o caríssimo papel desempenhado pelos meios de comunicação, e os muitos estudos ocidentais, na propagação de um relato de demonização da Revolução Cultural. Entretanto, 70 anos depois do início daquele processo, até o veredito do Partido Comunista se mostra um tanto negativo. Até mesmo o atual presidente chinês, Xi Jinping, publicou recentemente um discurso no qual reiterou este veredito por parte do partido. Isso acontece por que, como você explica no livro, “o que Xiaoping fez após a morte de Mao demostra até que ponto era certo o temor de Mao: a via chinesa ao capitalismo começaria com o desmantelamento dos bens comunais”?
Sim, e muito mais que isso. Para começar, a Revolução Cultural foi destrutiva em muitos aspectos. Produziu muitas vítimas entre funcionários e intelectuais, e é muito difícil para eles e para suas famílias adotar atitudes menos pessoais e melhor informadas historicamente a respeito da Revolução Cultural, e isso é compreensível. Mas o fato é que o capitalismo é um sistema global capaz de tragar todo o mundo, incluindo os membros do Partido Comunista Chinês e seus principais líderes. Se lemos as opiniões de Zhao Ziyang (secretário do PC em 1989, destituído por suas posturas reformistas e pelo diálogo com os estudantes), expressadas durante sua prisão domiciliar, podemos perceber isso plenamente. Esta é a razão pela qual o argumento de que o socialismo não teme possibilidades de ter sucesso em nenhum país acaba soando razoável. Com respeito a Xi Jinping, seu discurso é mais complexo que isso, porque ainda tenho a sensação de que a verdadeira lógica do Partido Comunista busca, como meta principal, a melhora na vida do seu povo, razão pela qual podemos supor que o projeto que está sendo impulsado ainda é o oferecer ao mundo como alternativa ao capitalismo. Para sermos justos com Jinping, ele também declarou que não deveríamos utilizar as três últimas décadas da República Popular para denegrir seus primeiros 30 anos.
Hoje em dia, seguindo a argumentação do seu último livro, parece que a China também é capaz de determinar o que está bem e o que está mal no mundo, ao menos com respeito ao seu passado. Porém, que imagem da China o Partido Comunista está disposto a revelar ao mundo?
Não há consenso nesta questão. Nestes tempos, a maioria dos dirigentes (do PC) carecem de ideias e de ideais. Estão onde estão somente para fazer carreira. Wang Qishan, Xi Jinping e Li Keqiang tiveram algumas ideias sobre como responder a esta questão. A articulação mais explícita é a de Jinping, de perseguir o destino comum da humanidade, encontrando um terreno comum e deixando de lado as diferenças a favor da coexistência e o desenvolvimento pacífico, origem da ideia da Nova Rota da Seda. Se supõe que isso deve se manter, permitindo as diferenças pertinentes, tanto no plano internacional como no plano político interno.
No caso da China, qual é a diferença entre o que você chama de “conhecimento” e “atitude”?
Na atualidade, a produção de conhecimento da humanidade é dominada pelo Ocidente e pelo capitalismo. Boa parte da elite intelectual chinesa termina sendo ofuscada por esse sistema de produção. A atitude para com a China é particularmente dura, porque nem a esquerda nem a direita ocidentais acham a China realmente confiável. A esquerda acredita que a China é capitalista demais, e a direita acha que é comunista demais. Logo, existem atitudes racistas para com a China. O conhecimento reforça as atitudes, e as atitudes levam a certo tipo de produção do conhecimento. Se alimentam um ao outro.
Durante a década de governo de Hu Jintao, havia a impressão de que a China podia mudar, quero dizer, não em um sentido democrático, mas sim no sentido de dar maior atenção à redistribuição e às distorções geradas pelo seu modelo de desenvolvimento. Logo, esse processo foi interrompido. Por que?
Se introduziu uma mudança muito positiva com a abolição de todos os tipos de taxas agrícolas. Foi a primeira vez que se fez algo assim em toda a história chinesa, de mais de 2000 anos. Provavelmente, o que Jintao queria era fazer mais nesse sentido, mas era frágil demais para isso. Não sabemos muito sobre as metas políticas que ficaram ocultas atrás dos muros vermelhos do Zhongnanhai (quartel-general do Partido Comunista), mas creio que a razão principal que norteou essas iniciativas pode ser encontrada nos interesses criados, que eram o reflexo de muitos setores, especialmente os interesses de autoproteção, o significa que os objetivos políticos podiam sair de dentro do Zhongnanhai nessa época. Suspeito que esta era a razão pela que Jinping queria criar muitos grupos políticos pequenos sob sua liderança. Creio que esta é sua solução para esquivar os diversos obstáculos ministeriais que afetam a celeridade na realização das medidas políticas. O que eu chamo “interesses criados” é o mundo das empresas de propriedade estatal, dos “principezinhos” (uma facção do Partido Comunista formada por filhos e parentes de funcionários) e da “elite compradora”.
Como você vê o uso que Xi Jinping faz da imagem de Mao Tsé-Tung?
Ele tem a convicção de que o Partido Comunista poderia e deveria servir melhor à China e ao povo chinês. Sua insistência no conceito de “chuxin” (algo como “a inspiração original”) não é mera retórica, mas sim uma tentativa real de restaurar o espírito e a legitimidade do partido.
Foi reativado na China o debate sobre o conceito de “tianxia” (conceito político-filosófico com inspiração no confucionismo, que segundo alguns analistas, é o principal inspirador do projeto internacionalista chinês). Em parte, devido à Nova Rota da Seda. Que opinião você tem a respeito? Como isso pode ajudar a China a propor um sistema de governança global?
Posso entender a intenção do debate, mas não creio que seja um concepto útil neste mundo. Creio que o “destino comum através do desenvolvimento pacífico” é um conceito mais aceitável fora da China. “Tianxia” pode significar um centro de poder e uma hierarquia. Não se trata de um conceito aceitável no mundo moderno.
O livro The Chinese Model (“O Modelo Chinês), de Daniel A. Bell, acaba de ser publicado na Itália. Em primeiro lugar, qual é a sua opinião sobre a visão que ele traz? Não acha que o conflito entre democracia e meritocracia é limitador porque se inserta dentro de uma lógica capitalista, sem imaginar outras possibilidades? Para ir além desse paradigma, o modelo chinês seria capaz de se diferenciar da evolução do capitalismo ocidental?
Bell tem o mérito de mostrar que as escolhas não deveriam constituir o único critério de legitimidade com o qual se deve avaliar um governo. Até agora, a voz de Bell é a única disposta a combater o discurso político dominante no Ocidente, e é importante que seja levada a sério. Se trata de uma conquista enorme. Mas também tem suas limitações, se analisamos detalhadamente. Logo, a respeito de se há ou não um modelo chinês que possa proporcionar uma alternativa, não se trata de um argumento que tenha levado a una resposta definitiva até agora, e talvez jamais exista uma resposta. Dependerá de dois fatores principais: se a China conseguirá resolver suas contradições e perplexidades, e o grau em que o Ocidente está disposto a estrangular a China antes dela ter o sucesso que se espera.
Há algum tempo, a China tem impulsado um extraordinário empreendimento tecnológico, que é o do “big data”, que inclui inteligência artificial e um sistema de crédito social. Parece que a China avança pelo mesmo caminho dos países ocidentais, na direção de um “Estado de vigilância”, em um mundo caracterizado pelo “capitalismo de vigilância”. O que você acha disso? Que lições da história chinesa podem ser resgatadas neste debate sobre as hipóteses de controle social?
Sim, isso é preocupante para as pessoas como nós, que somos individualistas e autônomos. Mas pode não ser tão ameaçador (mas acho que ainda não é) para muitos na China. Na opinião dos chineses, de uma forma geral, se eles obedecem as regras e as leis, não deveriam ter problemas, não a vigilância a qual são submetidas. Para alguns, isso pode ser até positivo em termos de segurança pessoal. Esta é a atitude que muitos adotam na China, sobre o experimento do chamado crédito social. É difícil imaginar, na atualidade, como se pode colocar em prática na China um conjunto de regulamentos que seja realmente efetivo, mesmo aquelas que demonstram ter as melhores intenções. Na China tradicional, invadir a liberdade e privacidade pessoal, em geral, não supõe um problema social, pois a tradição acentuava a obrigação social, a responsabilidade nas relações mútuas. Contudo, a, China mudou bastante, e as pessoas já não se preocupam com o espaço pessoal. Logo, creio que isso pode ser um problema no futuro.
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Como a China se afasta do Ocidente. Entrevista com Gao Mobo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU