08 Outubro 2019
“O motivo do anonimato dos "numerosíssimos" (que não assinam a carta anônima ao Papa questionando o Instrumentum Laboris do Sínodo da Amazônia) não sejam os "expurgos" a evitar, como eles mesmos tentam dar a entender, mas o rubor na face a não ser provocado, com a presunção de dirigir uma advertência eclesial ao Papa e aos bispos que se revela não estar à altura nem do belo desafio sinodal que está prestes a começar, nem da grande tradição que os numerosíssimos não-signatários gostariam de defender, mas que demonstram não conhecer em absoluto”.
O comentário é de Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Como se non, 04-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um "grupo internacional de padres" - do qual não se conhece nem a identidade nem o número e que se promove autodenominando-se em latim Coetus internationalis Patrum – publicou uma carta anônima identificando "4 proposições" do Instrumentum Laboris (= IL) para o Sínodo sobre a Amazônia, das quais considera "inaceitável" o conteúdo. No texto explica que procedeu "de acordo com o método clássico". Na realidade, de clássico não há nada em tais linhas. Apresento o texto e depois vou desmontar sua frágil estrutura, baseada em uma reconstrução caricatural e enganosa das palavras do documento.
Ao Papa e aos Padres sinodais
Nós, numerosíssimos prelados, padres e fiéis católicos de todo o mundo, destacamos que o Instrumentum Laboris preparado para a próxima assembleia do Sínodo apresenta sérias questões e levanta gravíssimas reservas, por sua contradição tanto com os pontos individuais da doutrina católica sempre ensinados pela Igreja, como com a fé no Senhor Jesus, único Salvador de todos os homens. Destacamos, de acordo com o método clássico, quatro proposições na forma de "tese", reportando os termos do documento. Em consciência e com grande franqueza, o ensino que eles transmitem é inaceitável.
1. A diversidade amazônica, especialmente a religiosa, evoca um novo Pentecostes (IL 30): respeitá-la é reconhecer que existem outros caminhos de salvação, sem reservá-los exclusivamente à própria fé. Grupos cristãos não-católicos ensinam, aliás, outras modalidades de ser Igreja, sem censuras, sem dogmatismos, sem disciplinas rituais, formas eclesiais (IL 138), das quais a Igreja Católica deveria integrar algumas. É destrutivo do próprio credo reservar a salvação exclusivamente ao próprio credo (IL 39).
Contra, entre outros: Dominus Jesus, 14 e 16.
2. O ensinamento da teologia pan-amazônica, que leva em consideração especialmente os mitos, os rituais e as celebrações das culturas de origem, é solicitado em todas as instituições educacionais (IL 98 c 3). Os rituais e celebrações não-cristãos são propostos como "essenciais para a saúde integral" (IL 87) e se pede par "adaptar o rito eucarístico às suas culturas" (IL 126 d). Sobre os ritos: IL 87, 126.
Contra: Dominus Jesus 21.
3. Entre os lugares teológicos (isto é, entre as fontes da teologia, como as Escrituras Sagradas, os Concílios, os Padres), encontram-se o território [da Amazônia] e o grito de seus povos (IL 18, 19, 94, 98 c 3, 98 d 2, 144).
Contra: Dei Verbum 4, 7, 10.
4. Sugere-se conferir a ordenação a pessoas idosas, que tenham famílias, e conferir "ministérios oficiais" a mulheres. Propõe-se assim uma nova visão da ordem que não provém da Revelação, mas dos usos culturais dos povos amazônicos (que preveem, entre outras coisas, uma autoridade rotativa). Dever-se-ia fazer uma separação entre o sacerdócio e o munus regendi (IL 129 a 2, 129 a 3, 129 c 2).
Contra: Lumen gentium 21, Presbyterorum ordinis 13, Pastores dabo vobis 26;
e também contra: Sacerdotalis cælibatus integre e spec. 21 e 26, Ordinatio sacerdotalis 1, 3 e 4; Pastores dabo vobis 29.
Na breve premissa às 4 teses, como eu dizia, anuncia-se proceder "de acordo com o método clássico". Na realidade, o estilo clássico deveria prever duas etapas essenciais:
- identificar corretamente o que o documento sinodal diz;
- mostrar a contradição com o magistério.
Ambas as operações são conduzidas de maneira muito aproximativa e completamente incorreta. E é fácil "vencer" quando a posição do oponente é reconstruída como a de um boxeador "parado" e de "guarda baixa". Esse é um procedimento típico da pior teologia: reconstrói a posição do inimigo de maneira caricatural, a fim de mais facilmente ter razão sobre ele. Cada um dos quatro pontos indicados como "inaceitáveis" na realidade soa, no texto da IL, de modo totalmente diferente. Ofereço um exemplo examinando todos os erros de leitura encontrados na primeira das teses.
Como pode ser visto a partir dos números da IL entre parênteses a que a primeira tese se refere, é feita uma colagem de textos - presente na IL, mas citados não literalmente - e tiradas dos n. 30, 138 e 39. Mas o fato grave é que, ao descontextualizar as afirmações, são radicalmente traídas em suas intenções e desfiguradas, levando-as a dizer o que não dizem. Parece-me que quem compilou as teses procedeu de maneira muito grosseira, incompetente e nada fiel. Aqui estão as "fontes" reconstruídas em seu teor literal e contextual:
a) IL 30 reconstrói o caminho da Igreja Amazônica em relação ao desenvolvimento impresso na evangelização pelo Concílio Vaticano II. Por esse motivo, termina com a "evocação de um novo Pentecostes", que só pode ser entendida dentro desse percurso histórico de continuidade em relação aos últimos 60 anos. É essa continuidade com o Vaticano II que a tese não apenas "ignora", mas quer fazer esquecer;
b) IL 138 está falando, ao contrário, em outro contexto, de outros grupos de evangelização, na floresta, que garantem uma proximidade aos pobres e que constituem um exemplo de eficaz presença junto ao povo. De maneira alguma, a partir da leitura do texto, pode-se deduzir a identificação com a qual a tese - inserindo palavras que não existem – dá a entender que o "novo Pentecostes" se identifica com esses grupos. São "outros" dos quais podemos aprender algo de fundamental.
c) Finalmente, a IL 39 é citada de maneira completamente enganosa, como se o documento incitasse a uma destruição de sua própria tradição e a um sincretismo sem identidade. O tema, de que se está tratando nessa parte do documento é, em vez disso, o diálogo. IL 39 ressalta o quão preciosa seja uma abertura para o outro como estrutura do próprio ato da fé. Aqui está o texto, que deve ser lido na íntegra:
Muitos povos amazônicos são constitutivamente dialógicos e comunicativos. Existe um amplo e necessário campo de diálogo entre as espiritualidades, crenças e religiões amazônicas, que exige uma abordagem cordial das diferentes culturas. O respeito por este espaço não significa relativizar as próprias convicções, mas sim reconhecer outros caminhos que procuram desvendar o mistério insondável de Deus. A abertura não sincera ao outro, assim como uma atitude corporativista, que reserva a salvação exclusivamente ao próprio credo, são destruidoras desde mesmo credo. Assim o explicou Jesus ao Doutor da Lei, na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 30-37). O amor vivido em qualquer religião agrada a Deus. “Através de um intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem” (EG, 246).
Como é evidente, a citação que encerra a tese n.1, usando com demasiada liberdade algumas palavras do texto, desconectadas do contexto em que aparecem e reconstruídas arbitrariamente em uma nova frase de tom apodítico, trai irrevogavelmente o próprio texto, o desfigura e pode torna-lo o "inimigo" que se opõe a Dominus Jesus. Na realidade, não há nenhuma contradição entre o IL nem com Dominus Jesus, nem com Dei Verbum, nem com Lumen Gentium ou com Presbyterorum Ordinis.
Nossos "numerosíssimos", mas também "incompetentíssimos", não entenderam o Concílio Vaticano II e realmente não leram o IL: fizeram um resumo malfeito e unilateral, que não tem outra função senão uma visceral oposição à Igreja que caminha e está em saída. Eles encontram apenas descontinuidades e rupturas onde há profunda continuidade no progresso das instituições e na vida que muda.
Portanto, inclusive para mim, é inaceitável o conteúdo das 4 proposições. Mas elas não têm nada a ver com IL por causa de um "método de argumentação" que não honra a teologia católica clássica. E talvez entre os numerosíssimos "prelados, pastores e leigos" que corajosamente não assinaram a carta, faltem justamente os recursos teológicos mínimos para dar sentido a uma operação desse tipo.
Já perdi muito tempo atrás de um texto confuso, cheio de erros e sem espessura. Mas quis examinar em detalhes pelo menos uma das quatro teses, para demonstrar a todos os leitores que o anonimato da carta corresponde à incompetência de seus autores. De fato, creio que o motivo do anonimato dos "numerosíssimos" não sejam os "expurgos" a evitar, como eles mesmos tentam dar a entender, mas o rubor na face a não ser provocado, com a presunção de dirigir uma advertência eclesial ao Papa e aos bispos que se revela não estar à altura nem do belo desafio sinodal que está prestes a começar, nem da grande tradição que os numerosíssimos não-signatários gostariam de defender, mas que demonstram não conhecer em absoluto.
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Quão falsa é essa Amazônia anônima! Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU