17 Junho 2019
Em março de 1969, as tropas da China e da antiga União Soviética (URSS) se enfrentaram numa batalha que durou meses e marcou por mais de duas décadas as relações entre os dois países.
A reportagem é publicada por BBC News Brasil, 16-06-2019.
Mais de 50 anos depois, pouco parece ter restado das velhas tensões e das cicatrizes dos conflitos. Agora, os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping, afirmam que os vínculos entre Pequim e Moscou estão em seus "melhores momentos" e que "resistiram às provas do tempo e às turbulências".
Os dois líderes se reuniram na semana passada numa cúpula em São Petersburgo, assinaram 30 acordos e prometeram reforçar a cooperação entre as nações.
"Nos últimos seis anos, nos reunimos quase 30 vezes. A Rússia é o país que mais vezes visitei, e o presidente Putin é meu melhor amigo e colega", disse Xi a jornalistas na semana passada.
"Conseguimos levar nossa relação ao nível mais alto de nossa história", acrescentou Xi, que visitou com Putin ursos que seu país presenteou à Rússia como parte de sua tradicional "diplomacia do panda" (os animais como símbolo da vontade de diálogo político).
Putin, por sua vez, afirmou que os laços entre Rússia e China se encontram num "nível sem precedentes" e seguem "melhorando".
"Estamos prontos para ir de mãos dadas com vocês", disse o líder russo, que destacou a visão comum entre os dois países sobre as tensões na Península Coreana, sobre a crise na Venezuela e o conflito na Síria.
A nova aproximação entre Moscou e Pequim é vista por muitos como uma resposta a um inimigo comum: os Estados Unidos.
Desde 2014, Washington mantém o Kremlin isolado do Ocidente, em represália pela anexação da Crimeia pela Rússia. Nos últimos dois anos, as sanções cresceram após o Congresso dos EUA propor novas medidas contra a Rússia por sua interferência nas eleições americanas de 2016.
Agora, outro fator internacional aproxima russos e chineses: a guerra comercial que Donald Trump declarou contra a China.
Após mais de um ano de tensões comerciais, em maio passado, Trump impôs novas barreiras de mais de US$ 200 bilhões a produtos chineses.
Pequim respondeu com novos impostos às importações oriundas dos EUA, que somam US$ 60 bilhões, a partir de junho.
Sem uma solução aparente a curto prazo para a guerra comercial, Pequim parece ter constatado que o inimigo de seu inimigo pode ser seu melhor aliado.
A China, que por mais de um ano deixou em fogo baixo sua guerra comercial com os EUA, empregou há mais de um mês sua máquina de propaganda contra Washington.
"Toda a China e seu povo estão sendo ameaçados. Para nós, isso é uma verdadeira 'guerra do povo'", afirmava em maio um editorial publicado pela agência Xinhua e pelo Diário do Povo, porta-voz do Partido Comunista.
Enquanto isso, no fim do mês passado, o governo chinês acusou os EUA de "terrorismo econômico".
Putin, por sua vez, acusou Washington nesta semana de protagonizar um "egoísmo econômico desenfreado" e criticou os "esforços" da Casa Branca para barrar um gasoduto russo na Europa e a "campanha" contra a chinesa Huawei, maior fabricante global de equipamentos de telecomunicação que enfrenta severas sanções nos EUA.
Como resposta, ele propôs à companhia chinesa levar a rede 5G à Rússia.
"Neste ano, cumpre-se o septuagésimo aniversário do estabelecimento das relações entre China e Rússia. É um ano para novos tratados e acordos, mas logicamente há algo mais", diz ao programa PRI The World o colaborador da BBC em Moscou Charles Maynes.
"Os dois países foram forçados a exercer esse papel pelos EUA, e agora têm de unir as forças contra as sanções que ambos enfrentam", diz.
Mas a nova aliança entre a Rússia e a China é um caminho que muitos viram surgir há algum tempo.
Nos últimos anos, a China se tornou a principal parceira comercial da Rússia.
Em 2017, a Rússia exportou aos chineses o equivalente a US$ 39,1 bilhões, e importou US$ 43,8 bilhões, segundo dados do Observatório de Complexidade Econômica, ligado ao Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT). No ano anterior, as cifras eram US$ 30,3 bilhões e US$ 35,5 bilhões, respectivamente.
Previsões indicam que as cifras podem dobrar num futuro próximo.
Sob a iniciativa da nova Rota da Seda, que busca ampliar o comércio chinês no mundo, Pequim investiu US$ 373 milhões na construção de sua parte de uma ponte sobre o rio Amur unindo a província de Heilongjiang e a cidade russa de Blagoveshchensk.
Segundo especialistas, a obra pode facilitar ainda mais o transporte de produtos agrícolas.
Há vários anos, os dois países também aprimoraram sua cooperação no setor de energia e promoveram a estabilidade do rublo e do yuan como uma tentativa de reduzir a dependência do dólar e outras moedas ocidentais.
Em resposta à escalada na guerra comercial, Pequim reduziu significativamente suas importações de gás natural líquido dos EUA nos últimos meses. A falta do produto poderá ser compensada quando começar a operar um oleoduto que ligará a Sibéria e a China.
Segundo dados do Observatório da Complexidade Econômica, nos últimos anos, a Rússia ampliou suas exportações de petróleo, carvão, fertilizantes e peixe congelado para a China. Mas o mesmo não ocorreu no sentido inverso.
O comércio entre os dois países mostra uma balança desigual: as importações de produtos chineses por Moscou em 2017 representaram apenas 1,8% das exportações de Pequim, ante 20% das compras feitas pelos Estados Unidos.
A Rússia ocupa o décimo lugar no ranking de exportações chinesas e não está nem entre as dez primeiras em importações ou comércio total.
Esse fato, somado às limitações da economia russa, fazem muitos especialistas duvidarem de que, além das promessas diplomáticas da semana passada, Xi possa encontrar um alívio na Rússia para as sanções americanas.
Porém, além do fator econômico, a maioria dos especialistas concorda que uma consolidação da aliança entre as duas potências pode virar uma dor de cabeça para os EUA por outras razões.
Segundo a agência estatal russa TASS, durante a visita de Xi à Rússia, os dois líderes assinaram cerca de 30 acordos que trataram de comércio a energia até o "fortalecimento da estabilidade estratégica, que inclui temas internacionais de interesse mútuo, assim como temas de estabilidade estratégica global".
Na última sexta-feira (7/6), um caso insólito foi interpretado como um potencial sinal para outros acordos: um navio militar americano e uma embarcação russa estiveram a ponto de se chocar nas águas do Pacífico Oriental.
Cada país apresentou uma versão distinta sobre o ocorrido e sobre a responsabilidade pelo incidente. Mas as duas coincidiram num ponto: ela ocorreu no disputado Mar da China Meridional, uma região de mais de 3 milhões de quilômetros quadrados que Pequim considera seu território.
E se os incidentes navais e aéreos entre forças americanas e russas são frequentes, eles não costumam ocorrer em uma zona que diz respeito à China.
Daí que o episódio, ocorrido dias depois do encontro entre Xi e Putin, ser visto não só como uma mensagem do Kremlin para seu aliado, mas também como um sinal para Washington.
Uma possível aliança militar entre a China e a Rússia foi um pesadelo potencial para os EUA por muitos anos.
Pouco antes de morrer, em 2017, Zbigniew Brzezinski, que foi conselheiro de Segurança Nacional do presidente americano Jimmy Carter, havia alertado que o "cenário mais perigoso" não eram guerras múltiplas, mas "uma grande coalizão entre China e Rússia, unidas não por ideologia, mas por queixas comuns".
1961: China condena formalmente a versão soviética do comunismo
1969: Guerra fronteiriça entre as duas nações
1976: As tensões começam a diminuir após a morte de Mao Tsé-Tung
1992: O presidente russo, Boris Yeltsin, visita a China
1998: Comunicado conjunto prometendo uma relação "igualitária e confiável"
2001: Assinatura de tratado estabelecendo uma estratégia de 20 anos para trabalhar juntos
2009: Assinatura de mais de 40 contratos num valor aproximado de US$ 3 bilhões
2010: Finalização do primeiro gasoduto entre China e Rússia
2014-2019: Consolidação das relações sob os governos de Xi e Putin
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Como aproximação 'sem precedentes' entre Rússia e China materializa pesadelo dos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU