13 Março 2019
“‘Nenhuma pessoa deve ser pobre demais para viver.’ Como seres humanos, nós temos direito à saúde, alimentação, educação e trabalho para ‘levar uma vida digna’: essa é uma visão socialista democrática que está profundamente enraizada nas Escrituras judaicas e cristãs e na doutrina social católica.”
A opinião é do teólogo e eticista social estadunidense Alex Mikulich, em artigo publicado em National Catholic Reporter, 12-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto começamos a Quaresma, um dos sinais do nosso tempo são os implacáveis ataques à deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez AOC (Nova York), que abalou o ex-chefe do Partido Democrata do Queens, Joe Crowley, depois de ele ter cumprido 10 mandatos no Congresso.
As pessoas de fé que buscam aprofundar o seu amor ao próximo nesta Quaresma, creio eu, devem abraçar a visão e a prática que Ocasio-Cortez representa.
Como uma latina de 29 anos de idade inspira tamanho desprezo? Revendo a longa lista de difamações e insultos, parece que fortes doses de preconceito etário, sexismo e racismo certamente compõem uma mistura venenosa.
Alexandria Ocasio-Cortez (Foto: Wikimedia Commons)
Como relata a Newsweek, Ocasio-Cortez, também conhecida como AOC, ganhou o apelido de “rainha das réplicas selvagens”. Cheia de alegria e paixão pelos seus eleitores e pela democracia dos EUA, AOC desvia os críticos com um implacável senso de humor e ironia.
Stephen Colbert entrevistou AOC em seu programa poucos dias depois de sua vitória em junho de 2018. Colbert começou admitindo que não sabia o nome dela antes que ela ganhasse. Então ele perguntou como ela superou um déficit de 36 pontos nas pesquisas e ganhou por 15 pontos, uma surpreendente mudança de 51 pontos.
As pesquisas geralmente estão erradas, explicou ela, porque tentam prever quem vai aparecer para votar; ela ganhou porque sua campanha “mudou quem apareceu”. Ela foi capaz de atrair jovens e outros eleitores que tipicamente não votam em uma eleição de meio de mandato.
Na recente Conferência de Ação Política Conservadora, o ex-funcionário da Casa Branca, Sebastian Gorka advertiu que AOC e os democratas “querem reconstruir a casa de vocês. Eles querem tirar os hambúrgueres de vocês. Era com isso que Stalin sonhava, mas nunca conseguiu”. A presidente do Partido Republicano, Ronna McDaniel, referiu-se ao fato de as pessoas estarem “comendo comida de cachorro para sobreviver. É para esse caminho que os democratas estão nos empurrando”.
Então, parece que o que realmente irrita os políticos poderosos, especialmente o Partido Republicano e alguns democratas conservadores, é a apaixonada defesa de Ocasio-Cortez pela visão e pelas políticas dos Socialistas Democráticos da América [organização política membro da Internacional Socialista] e pelo novo eleitorado que apoia isso.
Há uma ironia desconcertante para a acusação de “comunismo-marxismo” por parte do Partido Republicano quando um presidente republicano se encontra com o presidente russo, Vladimir Putin, uma segunda vez sem nenhum tradutor ou anotador estadunidense.
Embora a ridícula hipocrisia da acusação de “comunismo-marxismo” por parte do Partido Republicano seja risível, a retórica revela uma ironia mais profunda do nosso tempo. A retórica do Partido Republicano afirma que AOC e os democratas estão tirando o “nosso” bife, as “nossas” casas e o “nosso” estilo de vida. “Nossos” bens e o “nosso” modo de vida superam todas as outras preocupações sociais e morais.
No entanto, a suposição da retórica do “nós” do Partido Republicano leva ao cerne da doutrina social católica e ao porquê eu me tornei membro dos Socialistas Democráticos da América em 1988 sob a inspiração do socialista democrata católico John Cort, quando eu era estudante na Weston Jesuit School of Theology.
Cort foi um operário católico com Dorothy Day durante a Grande Depressão, ajudou a fundar a Associação dos Sindicalistas Católicos em 1937 e trabalhou com Michael Harrington para iniciar os Socialistas Democráticos da América. Cort foi descrito como “uma das grandes figuras do catolicismo norte-americano do século XX” pelo historiador do catolicismo norte-americano James Fisher.
Na epígrafe do seu livro “Christian Socialism” [Socialismo cristão] (1988), Cort cita a persistente admoestação de São Gregório de que os bens da Terra são “comuns a todos e alimentam igualmente a todos. Futilmente, então, os homens se consideram inocentes quando monopolizam para si mesmos o dom comum de Deus. Ao não darem o que receberam, trabalham pela morte de seus próximos: todos os dias, destroem todos os pobres famintos, cujos meios de alívio estocam em casa”.
Três bispos patrísticos da Capadócia – Basílio, o Grande, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo – sublinharam a principal obrigação bíblica de compartilhar os bens da criação de Deus com todos, especialmente aqueles que, de qualquer forma, são destituídos.
São João Paulo II ensinou repetidamente esse ponto. Não é a “nossa” opção de caridade. É uma obrigação espiritual e moral para com Deus e o próximo.
Por exemplo, na Sollicitudo rei socialis, sobre as preocupações sociais da Igreja, João Paulo II escreveu que uma das maiores injustiças no mundo contemporâneo é a “má distribuição dos bens e dos serviços originariamente destinados a todos”.
“Ter”, como posse de bens, continuou o papa, não contribui para a perfeição humana ou para o bem comum, a menos que contribua para amadurecer e enriquecer o “ser” humano.
Dito em outros termos da tradição social, o capital é obrigado a estar a serviço do trabalho; a economia, a serviço das pessoas; e não o trabalho a serviço do capital ou da economia (veja-se a Laborem exercens sobre o trabalho humano).
O Papa Francisco estendeu essa compreensão primária do amor gratuito de Deus e da doutrina social católica na Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum, na forma como ele desenvolve uma “ecologia integral”, em que “toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum”.
Então, quando AOC disse a Colbert que ela é uma socialista democrática porque, “em uma sociedade moderna, moral e rica, nenhuma pessoa nos EUA deve ser pobre demais para viver”, e, como seres humanos, nós temos direito à saúde, alimentação, educação e trabalho para “levar uma vida digna”, ela está articulando uma visão socialista democrática que está profundamente enraizada nas Escrituras judaicas e cristãs e na doutrina social católica.
Essa é uma visão por meio da qual os norte-americanos ainda podem alcançar uma democracia plenamente funcional.
Mais importante ainda, essa é uma visão moralmente rica de como podemos adorar autenticamente a Deus e integrar a nossa obrigação primária de amar a Deus e ao próximo. É uma visão e uma prática enraizadas no Evangelho, por meio da qual podemos promover apaixonadamente “uma fé que faz justiça” na nossa jornada quaresmal.
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Por que eu sou um socialista democrático católico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU