21 Janeiro 2019
A editora Gallimard publica “Les aveux de la chair”, em que Michel Foucault traça a gênese da confissão na perspectiva do tema que o aflige no início dos anos 1980: a relação do sujeito com a verdade.
O comentário é de Andrea Calzolari, publicado no caderno Alias Domenica, do jornal Il Manifesto, 13-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde que Pierre Janet, em 1903, escreveu que a confissão parecia ter sido inventada por um alienista genial que pretendia estudar as obsessões, a analogia entre o confessor e o psicanalista foi repetidamente reproposta, tornando-se um lugar-comum.
Mas, um século antes de Janet, as “Liaisons dangereuses” tinham mostrado outro aspecto da confissão na página em que Merteuil, protagonista “má” do romance, conta sobre quando era adolescente e, para se informar sobre os prazeres proibidos do sexo, havia declarado falsamente ao confessor que tinha feito “aquilo que todas as mulheres fazem”; as indagações e as perguntas do sacerdote, ansioso por salvar a alma da penitente muito jovem, haviam-na, assim, conscientizado justamente dos sedutores vícios de que o padre queria desviá-la.
Nesse episódio, Laclos encena a espiral de saber, poder e gozar que Foucault pôs no centro de “A vontade de saber”: “Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir”.
Quem não se lembra dessa brilhante página? Se não se conhece esse livro, ignora-se um dos vértices da consciência contemporânea e se fica surdo a perguntas que não deixam, e por muito tempo não deixarão, de nos fazer pensar.
Mas depois de “A vontade de saber” (datado de 1976), primeiro volume de “A história da sexualidade”, o projeto pareceu encalhar: nos anos seguintes, Foucault não publicou nada, enquanto os cursos no Collège de France e a intensa atividade de conferências testemunham tanto o deslocamento dos seus interesses da Idade Moderna à antiguidade, quanto uma remodulação dos vetores de pesquisa.
Em 1984, no mesmo ano da morte do autor, foram publicados “O uso dos prazeres” e “O cuidado de si”, os dois volumes sobre “a experiência greco-latina dos aphrodisia”.
Alguns meses atrás, na França, também foi finalmente publicado o quarto volume, “Les aveux de la chair" (As confissões da carne, sobre o cristianismo das origens, editado por Frédéric Gros, Ed. Gallimard, 427 páginas), na redação, que Foucault não considerava como definitiva, entregue a Gallimard em 1982 e, portanto, antes dos dois trabalhos anteriores.
Se restam traços da falha de elaboração final (quatro fragmentos que não se sabe onde colocar estão anexados no apêndice), o livro já está completamente organizado, esplendidamente escrito e tão concentrado que é até difícil extrapolar algumas exemplificações deles.
Basta uma menção a dois tremas cruciais, com os quais Foucault parece responder antecipadamente às objeções do filósofo medievalista Alain de Libera, que, na ponderosa “arqueologia do sujeito” na qual estava trabalhando há cerca de 10 anos, criticava tanto Foucault quanto Heidegger, aos quais, porém, se inspirava declaradamente, por terem defendido que o sujeito é uma invenção moderna.
Na realidade, no pensamento medieval, séculos antes do cogito cartesiano, a questão do nexo entre a subjetividade (o sujeito-substância, suporte de atributos: o substantivo gramatical) e a subjetividade (o sujeito como eu pensante e/ou agente) foi levantada e discutida, mesmo que, em grande parte, sob a forma de debates teológicos ou até mesmo cristológicos (aliás, nada alheios a refinadas análises lógicas).
Agora, “Les aveux de la chair” reconhece o papel crucial do pensamento cristão das origens na constituição do sujeito chamado de moderno, a partir precisamente da instituição da confissão: a gênese do sacramento nos primeiros séculos da Igreja, já longamente estudada pelos especialistas, é traçada novamente por Foucault na perspectiva dos temas que o afligem nos anos em que ele escreve o livro, aqueles em que ele estuda a relação do sujeito com a verdade.
Não por acaso, o livro insiste na distinção conceitual entre dois modos de confissão, a exomològesis e a exagòreusis, que, na prática, se sobrepõem. A exomologesis é propriamente um “fazer-verdadeiro” (uma “veri-ficação”), já que envolve não só admitir as próprias culpas, mas também demonstrar na prática, ou seja, performar o próprio arrependimento em relação à comunidade com jejuns e mortificações de todos os tipos. Essa penitência, que vai acabar dando o nome ao sacramento, é apenas um aspecto, complementar à exagòreusis, o “dizer-verdadeiro” (ou “veri-dicção”), isto é, o compromisso de declarar os próprios pecados da maneira mais exaustiva: o que pressupõe um “exame ininterrupto de si”, conectado com “a confissão incessante ao outro”, de tal modo, observa Foucault, que se pode considerar esta última como o “lado exterior do exame, a sua face verbal voltada ao outro”.
A exomologesis, a exagòreusis e o exame, veri-ficação e veri-dicção, desembocam na obediência absoluta ao diretor espiritual: referindo-se a Cassiano e aos outros teóricos do monaquismo, Foucault recorda que o ideal monástico comportava até a abdicação a uma vontade própria.
No mesmo ambiente monástico, além disso, foi elaborada a doutrina relativa à direção espiritual, descrita por Gregório Nazianzeno como “a arte das artes, a ciência das ciências”, em que se estabelece que só pode dirigir quem que, por sua vez, sabe obedecer.
Assim, foi se definindo a estrutura do complexo aparato institucional, que se consolidou ao longo dos séculos, em que o sujeito cristão molda a si mesmo e no qual se fundou o poder da Igreja. É nesse quadro que se insere o tema da sexualidade, cujo tratamento (focada no amor casamento e na virgindade) culmina no capítulo final de “Les aveux de la chair”, dedicado à concepção agostiniana da libido, que, defende Foucault, marca uma passagem fundamental na história, não apenas teológica, do conceito.
No fogo das polêmicas contra maniqueus e pelagianos, Agostinho havia delineado um quadro destinado, mesmo com desenvolvimentos posteriores, a durar por séculos, movendo-se a partir de uma questão muito discutida na época: existia uma sexualidade no paraíso terrestre? Para os maniqueus, a sexualidade produzida pelo demiurgo malvado, era irredimível; para os pelagianos, tendo sido criada por Deus, não podia ser em si pecaminosa (só eram condenáveis os excessos, como para os moralistas clássicos).
Para Agostinho, no paraíso terrestre, o sexo era dócil como qualquer outro órgão, isto é, desempenhava a sua função, como a mão, por exemplo, sem qualquer obscenidade e imune à atual violência paroxística. Essas perversões, de acordo com Agostinho, são o efeito da queda: com uma espécie de contrapasso, assim como Adão se rebelou contra Deus, assim também o sexo se rebela contra a vontade humana, uma rebelião que se atesta precisamente na motilidade autônoma, positiva ou negativo (ereção ou impotência) do sexo masculino.
Nessa perspectiva principalmente fálica, o sexo – escreve Foucault em uma fórmula deslumbrante – “é para o homem aquilo que o homem é para Deus: um rebelde. Homem do homem, erguido diante dele e contra ele”.
O fato de a libido ser herdada por todos os homens que vêm ao mundo (tanto é verdade que ela também caracteriza necessariamente a sexualidade lícita do matrimônio) não significa, porém, que o pecado se deva à ação de uma força externa à alma (a carne que subverte o espírito) ou a um conflito entre a razão e a vontade (“et veggio ‘l meglio, et al peggior m’appiglio”).
A libido, de fato, não é algo diferente da própria vontade, pois ela é apenas a sua forma decaída. Por mais forte que seja a pulsão da libido, ela nunca poderia se traduzir em ato, sem o consentimento – conceito fundamental em Agostinho – da vontade, que, no pecado, “quer aquilo que a concupiscência quer”; e é esse consenso que torna o sujeito de concupiscência sujeito de direito, responsável pelas próprias ações.
Esta é a novidade do cristianismo de acordo com Foucault: enquanto para o pensamento antigo não se tratava de analisar a sexualidade, mas sim “de colocá-la em uma economia geral dos prazeres e das forças”, o cristianismo, com Agostinho, funda “a analítica do sujeito da concupiscência, em que estão ligados, com nós que a nossa cultura mais reforçou do que afrouxou, o sexo, a verdade e o direito”.
É nessas palavras, as últimas do livro, que se deveria ler, provavelmente, a transformação, mas também a continuidade, daquele circuito de saber, poder e gozar de que falava “A vontade de saber”.
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''O sexo é rebelde contra o homem assim como o homem a Deus'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU