09 Setembro 2018
Há 20 anos, Simão dos Santos, de 57 anos, vive da pesca usando uma canoa que percorre os igapós da floresta alagada pelas águas do igarapé Mauazinho, um braço do rio Negro, na zona leste de Manaus. Na região, ele tirava até 200 peixes num só dia. Apesar de estarmos no mês setembro, período da fartura do pescado, o barco do pescador está vazio.
A reportagem é de Vandré Fonseca, publicada por Amazônia Real, 06-09-2018
O motivo da falta de peixes é que no último dia 27 de agosto, 1.800 litros de óleo combustível, que tem alta concentração de enxofre, vazaram de um rebocador que naufragou no Porto da Ceasa. A embarcação pertence à empresa J F de Oliveira Navegação, que faz parte do Grupo Chibatão, responsável pelo principal porto privado que atende às indústrias da Zona Franca de Manaus. A empresa ainda não foi multada pelo crime ambiental.
“Só que agora não está dando nada, por causa do óleo”, lamenta o pescador Simão. “O peixe sente o óleo e atravessa para o outro lado, não passa aqui de jeito nenhum.”
Resignado, o pescador diz que a única solução agora é esperar. “A gente tem que aguardar, né? Esperar passar o óleo, quando (o rio) secar mais, que é para levantar esse óleo. Enquanto não sair o óleo de dentro da água não fica bom”, continua a lamentar, enquanto mostra a parte externa da canoa, escurecida pelo óleo.
Segundo o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo estadual, além do Mauazinho, foram atingidos pelo crime ambiental os igarapés Aleixo e Mauá. São mais de 100 famílias (ou 500 pessoas) afetadas pela contaminação das águas pelo combustível no bairro Colônia Antônio Aleixo, que fica na zona leste de Manaus. O Censo do IBGE contabilizou mais de 16 mil moradores do bairro em 2010.
De acordo com o Ipaam, o rebocador era usado para empurrar uma balsa de combustível no transporte até Porto Velho (RO), mas no momento do incidente estava ancorado no porto da Ceasa.
Com o vazamento do óleo combustível, desapareceram das águas dos igapós espécies de peixes como jaraquis e curimatãs, entre outras. Animais domésticos dos ribeirinhos, como patos e galinhas, também foram atingidos pelo óleo. Não foi observado mortandade de peixes.
Segundo o Ipaam, o rebocador estava com uma escotilha do reservatório aberta quando afundou. O órgão diz que a empresa possuía as licenças necessárias para operar, mas não deu detalhes sobre o processo de licenciamento ambiental da empresa, como número do processo e possível existência de condicionantes.
Na segunda-feira (03), a empresa J F de Oliveira Navegação foi notificada pelo Ipaam a tomar providências para a limpeza do rio e áreas onde há acúmulo de óleo e restauro de “todas as estruturas flutuantes direta ou indiretamente afetadas, tais como barcos, balsas, bote, residências flutuantes, etc”.
Além disso, segundo o Ipaam, a empresa deverá repor bens materiais danificados às famílias afetadas pelo óleo derramado. A notificação, que exige a apresentação até sexta-feira (07) de evidências que demonstrem as providências tomadas, determina que a J F de Oliveira Navegação preste assistência socioeconômica e cultural às famílias direta ou indiretamente atingidas das comunidades ribeirinhas do bairro Colônia Antônio Aleixo. Também determinou que a empresa pague o atendimento médica às famílias, entregue de cestas básicas e água potável, assim como comunicar os riscos do consumo e utilização da água para banhos.
Os estragos provocados pelo combustível se espalharam por 10 quilômetros rio Negro abaixo, de acordo com o Ipaam. O funcionamento do porto Chibatão foi embargado, depois que o instituto considerou que as medidas de contenção tomadas pela empresa logo após o vazamento foram falhas e não impediram que o óleo de espalhasse pela orla do rio. O Ipaam não divulgou o valor da multa que poderá ser dada à empresa.
O órgão ambiental disse que está recebendo apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na elaboração do laudo sobre o crime ambiental, e da área ambiental da Petrobrás, que tem uma equipe especializada na contenção de vazamento de poluentes no rio Negro.
De acordo com a concessionária de água Manaus Ambiental, o sistema de abastecimento a partir do ponto de captação do Programa de Águas para Manaus (Proama) está dentro da área atingida pelo vazamento do combustível da balsa da J F de Oliveira Navegação, mas não houve interrupção no fornecimento.
O sistema atende cerca de 500 mil pessoas que moram nas zonas leste e norte da cidade. Por precaução, segundo a concessionária, a água tem passado por testes periódicos para verificar se está contaminada.
De acordo com um especialista ouvido pela Amazônia Real, que não quis ter o nome divulgado, esse tipo de óleo combustível que derramou no rio Negro carrega uma enorme proporção de enxofre, elemento químico encontrado no petróleo, que pode contaminar a água e a atmosfera. No rio, a substância torna o ambiente mais ácido, provocando o desaparecimento dos peixes. Também contém gases que pode contribuir para o aquecimento global.
Informações disponíveis no site da Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês), entidade das Nações Unidas responsável pela segurança e proteção de navios e prevenção da poluição provocada pela navegação, explicam que óxidos de enxofre (substâncias produzidas pela combinação dele com o oxigênio) são conhecidos provocarem doenças respiratórias. “Na atmosfera, SOX (representação química dos óxidos de enxofre) podem levar a chuvas ácidas, que afetam cultivos agrícolas, florestas e espécies aquáticas, e contribuem para a acidificação dos oceanos”, afirma o texto.
Para efeito de comparação, o Diesel S-10 vendido em postos possui 10 ppm (partes por milhão) de enxofre. Já o óleo combustível, semelhante ao derramado no Rio Negro, possui até 35 mil ppm, segundo manual técnico da Petrobrás de 2013, embora um acordo discutido pelo Comitê de Proteção ao Meio Ambiente Marinho da IMO (Mepc) determine que essa concentração deva ser de no máximo 5 mil ppm, em combustível para navegação, a partir de 2020.
Um grupo de aproximadamente 120 pescadores da orla do bairro Mauazinho, na zona leste de Manaus, reclama dos prejuízos provocados pelo vazamento de combustível da balsa da empresa JF de Oliveira Navegação.
“Os pescadores aqui do Mauazinho estão todos parados”, afirma Júnior Rocha, de 38 anos. “Não tem condições de meter a nossa rede numa água dessas cheia de óleo. E o peixe também não boia”, completa o pescador.
Ele faz parte de um grupo de seis pescadores, que juntos tiveram um prejuízo de R$ 10 mil por não poder pescar. Eles reclamam também de estragos provocados pelo óleo, que afetou barcos e apetrechos de pesca, justamente no período em que eles estariam capturando o jaraqui, um dos peixes preferidos no mercado de Manaus. O pescador conta ainda que para pescar em áreas mais distantes precisaria investir na compra de gelo, o que é inviável para o grupo.
Arlem dos Santos Tomás, de 40 anos, outro pescador do grupo mostra a rede que teve de ser descartada após contato com o óleo. “Não tem mais como aproveitar, porque está cheia de óleo”, reclama. “Só essa parte aí vai custar uns novecentos reais”, calcula.
Além de peixes, animais de criação de moradores da orla também foram afetados. A família de Mário Gilson Lima de Magalhães, que além da mulher e dos filhos conta ainda com a nora dele, depende dos peixes do rio e da criação de patos e galinhas para sobreviver.
Ele conta que dos dez patos que mantinha no quintal, quatro morreram devido ao óleo na água. Os que sobreviveram continuam com as penas escurecidas pelo combustível. “Nós queremos saber como vai ficar a nossa situação. Tivemos despesas e estamos todos parados”, reclama o pescador.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público Estadual afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que o assunto deveria ser tratado com a Procuradoria da República, por se tratar de um “rio federal”. Já a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal informou que determinou a instauração de um procedimento para investigar o incidente no Negro.
Em nota, a J F de Oliveira Navegação disse estar “prestando todo o suporte às famílias afetadas pelo incidente ocorrido no último dia 27”, sem esclarecer quais ações são executadas. No mesmo comunicado, informou que 40 pessoas “trabalhando incessantemente no ocorrido e que está aguardando os laudos dos órgãos competentes com as informações oficiais e detalhadas da situação.”
Não é a primeira vez que a empresa JF de Oliveira Navegação é acusada de crime ambiental por poluir o Rio Negro, cuja nascente é na Colômbia e a foz em Manaus, quando então se encontra com o rio Solimões, formando assim o famoso Encontro das Águas.
Em 2005, o naufrágio de um rebocador da empresa provocou o derramamento de 15 mil litros de óleo diesel no manancial. O vazamento formou uma mancha de 4 quilômetros de extensão. Segundo investigações à época, a empresa estava com a licença ambiental atrasada e não tinha plano de emergência para acidentes ambientais.
O grupo Chibatão é proprietário também do terminal portuário onde dois trabalhadores morreram em um desmoronamento ocorrido em outubro de 2010. A empresa chegou a ser autuada por operar em uma área, sem licença adequada. Outro acidente ocorreu em outubro de 2012, quando um deslizamento de terra derrubou um muro de contenção do porto.
Em 2017, uma operação da Polícia Federal, da Receita Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apreendeu no Porto Chibatão um carregamento com mais de 80 contêineres contendo madeira ilegal da Madeireira Nova Colina. A carga de madeira serrada foi explorada ilegalmente, segundo a investigação, da Floresta Amazônica, em Rorainópolis, na rodovia BR 174, em Roraima. O destino inicial do carregamento, segundo a Polícia Federal, era os portos de Salvador (BA) e de Santos (SP).
O biólogo Bruce Forsberg, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), estudou durante dois anos e meio os impactos de um derramamento de óleo, de dutos que abasteciam uma termelétrica no bairro Mauazinho, em Manaus, ocorrido em janeiro de 1996.
Forsberg faz a ressalva de que não sabe se o combustível que escapou do empurrador é o mesmo ou semelhante ao utilizado na usina de energia na década de 1990. De acordo com ele, por ser um combustível ‘pesado’, ou seja, que não evaporava com facilidade, o óleo derramado não provocou a contaminação da água.
Na época, 15 mil litros de óleo combustível vazaram e atingiram o Igarapé Cururu, onde está a Vila da Felicidade, vizinha ao Porto da Ceasa, uma área próxima de onde ocorreu o acidente da semana passada. Forsberg conta que pretendia analisar também os níveis de mercúrio, um produto que pode entrar na cadeia alimentar e chegar ao ser humana, provocando problemas neurológicos, mas não foi possível. “Na natureza, o mercúrio é encontrado associado ao enxofre, mas não foi possível fazer os testes”, lamenta.
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Vazamento de combustível no rio Negro impacta ribeirinhos em Manaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU